Bases Gerais do Sistema de Segurança Social
Intervenção do Deputado Lino de Carvalho
11 de Julho de 2002
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,
Um relatório recente do Instituto de Seguros de Portugal afirmava que as reformas "estruturais dos sistemas públicos de repartição" (leia-se Sistema Público de Segurança Social) "serão decisivas para a renovação do mercado português de fundos de pensões" e que, de acordo com os estudos do Instituto, poderá suportar pelo menos 4,2 mil milhões de contos de volume potencial de negócios.
É seguramente devido a tão apetecidas perspectivas que a revista das Associações de Fundos de Pensões Europeus, no seu número de Maio passado, afirmava que esperavam em Portugal "pela abertura de uma janela de oportunidade" porque, assim escreviam, o "novo Governo de centro-direita em Portugal iria estímular o desenvolvimento dos planos privados de pensões". Sinal dessa expectativa "é o facto do novo Ministro da Segurança Social, António Bagão Félix, ser um antigo administrador da Companhia de Seguros Bonança, subsidiária do Banco Comercial Português" (e consultor deste) cuja àrea de negócios dos Fundos de Pensões, centrada na "PensõesGere", acrescentamos nós, detém cerca de 25% da quota de mercado, liderando o ranking, com um volume de activos de cerca de 700 milhões de contos. Não se enganaram as Associação dos Fundos de Pensões Europeus. É até caso, senhor Presidente, para se exigir ao Sr. Ministro uma declaração prévia de conflito de interesses nesta matéria.
Porque esta é que é a questão central da Proposta de Lei que o Governo nos apresenta: abrir - com pézinhos de lã - o enorme fluxo de volumes financeiros da Segurança Social (3.000 milhões de contos/ano dos quais cerca de 2.000 milhões de contos correspondem a contribuições, para além do Fundo de Estabilização Financeira cujas reservas atingirão brevemente os 2.000 milhões de contos) ao mercado de capitais transformando assim um sistema de solidariedade social, vital para todas as gerações, num instrumento dos mercados bolsistas e dos negócios especulativos.
Claro que não é isto que o Governo nos vende. Nas múltiplas sessões de propaganda, sem possibilidade de contraditório, sustentado numa boa imprensa, com que o Ministro Bagão Felix nos tem brindado o que tem sido dito, de forma demagógica e populista, é que com a proposta governamental as pensões e outras prestações sociais vão aumentar, o Estado vai deixar de pagar indecorosas pensões altas, os cidadãos vão ter liberdade de escolha. Parece o paraíso anunciado. Parece mas não é!. Este paraíso é uma fraude!
Fraude, desde logo, porque o que está na proposta nada tem a ver com as promessas eleitorais do PSD e do CDS-PP, em especial de Paulo Portas. Vinha aí a pensão mínima para todos. Afinal é tudo falso. A pensão social ficará, no máximo em metade do SMN líquido; a pensão dos rurais em 60% e as pensões mínimas do regime geral só a partir dos 30 anos de carreira contributiva é que terão uma pensão mínima igual ao SMN. E isto tudo só será atingido em 2007 (ou 2008). Mas mais. Oculta-se que a actual Lei de Bases já consagra essa progressão e que, com ela, partindo-se da média dos aumentos verificados nos últimos cinco anos e projectando-os para 2007, o valor das pensões atingirão e nalguns regimes ultrapassarão mesmo largamente os valores da proposta de Lei, como demonstramos no mapa que distribuimos: a Pensão Social (sem o complemento extraordinário) ficaria praticamente nos 50%; a dos agrícolas em 70% e as do regime geral atingiriam os 100% a partir dos 33 anos de carreira contributiva. É óbvio que as pensões pagas em Portugal são muito baixas e que somos o País com o mais baixo nível de prestações sociais da União Europeia, à excepção da tão cantada Irlanda: 19,7% do PIB contra uma média de 26,4% do PIB na UE-15. Por isso mesmo o PCP tem proposto (e já o fez na actual legislatura) - e continuará a propôr - aumentos para as pensões e outras prestações sociais com o voto sistematicamente contra das bancadas da direita (e também do PS). Mas isto nada tem a ver com o gato por lebre que o Governo agora quer vender: acenando com a cenoura de melhores pensões, que não vão ser diferentes das actuais, o que se quer é esconder o objectivo central de abertura à privatização do Sistema Público de Segurança Social.
Acresce que a modificação de escalões que é proposta para as pensões mínimas do regime geral é injusta e subverte o princípio da correspondência com a carreira contributiva. Ao fechar a malha dos escalões e propondo que tanto faz, por exemplo, descontar-se 30 ou 40 anos que se tem sempre a mesma pensão mínima, o que o Governo está é a convidar à fuga às contribuições e a penalizar quem desconta mais tempo.
O tema das pensões altas é outra componente do discurso propagandistico e populista do Governo. É preciso recordar que o Sistema de Segurança Social encerra uma relação contratual e solidária que é estabelecida durante a vida activa dos trabalhadores e outros contribuintes do Sistema. Aos descontos sobre as suas remunerações, no fundo à poupança de uma vida de trabalho, corresponde o Estado com a obrigação de assegurar um rendimento em situação de velhice e invalidez e de cobrir os riscos sociais em situação de desemprego, doença, etc. O valor da pensão de reforma e de outras prestações corresponde ao nível das cotizações. E quando não se descontou ou se descontou pouco entram em funcionamento os mecanismos da solidariedade por via das transferências do Orçamento de Estado ou da própria capacidade redistributiva do sistema. Ora, ao fixarem-se limites superiores para as contribuições (o plafonamento) o que o Governo está é a pôr em causa o princípio da solidariedade e a enfraquecer a capacidade redistributiva do Sistema. As próprias cotizações passam a ter uma natureza regressiva: quanto mais elevada é a remuneração mais baixa é a taxa de contribuição efectiva para a Segurança Social. O que o Governo pretende é captar para o mercado de capitais as contribuições mais elevadas. E com isso enfraquece a própria sustentabilidade financeira do Sistema Público. Como demonstrou a Comissão do Livro Branco o plafonamento "antecipa mesmo o início da derrapagem do Sistema" e "poderá criar ainda mais dificuldades adicionais no médio prazo". Como é fácil de apreender, no imediato, haverá quebra de receitas. E as eventuais poupanças só se farão sentir, se se fizerem, daqui a 30 anos ou mais. Por esta via também se enfraquece a própria reserva de capitalização pública. Acresce que a proposta prevê um terceiro patamar, acima do qual nenhuma contribuição é obrigatória, seja para que regime fôr, recuperando nesta parte a filosofia original do projecto de lei de bases do CDS-PP apresentado na última legislatura. Ao aplicar obrigatoriamente este novo modelo aos jovens trabalhadores que entram no Sistema e aos que tenham idade igual ou inferior a 35 anos e uma carreira contributiva não superior a dez anos, o que o Governo está é a penalizar as jovens gerações, a tentar dividir os trabalhadores por classes geracionais, a animar uma cultura da imprevidência quanto à salvaguarda do futuro de cada um e a introduzir no tecido social o espirito do individualismo, do cada um por si em prejuízo de uma cultura de solidariedade.
Quanto à tão falada "liberdade de escolha" e "partilha de riscos" não passa também de ganga ideológica. A liberdade de escolha significa, como bem realça o parecer da CGTP-IN, a liberdade de não ser solidário, a "liberdade" de optar entre o Sistema Público, que partilha entre toda a comunidade direitos e obrigações colectivas, e os Sistema privados onde obviamente o que vigora são os princípios dos mercados financeiros e do individualismo. Para além dos níveis de plafonamento não estarem definidos, o que constitui um verdadeiro cheque em branco passado ao Governo - tanto mais que é retirada força vinculativa ao parecer da Comissão Executiva do Conselho Nacional de Segurança Social - a verdade é que se no art.º 44.º n.º 4 se fala de "livre opção dos beneficiários entre o sistema público e o sistema complementar" já no art.º 94.º se dispõe que "os regimes complementares legais" assumem "natureza obrigatória". Afinal em que ficamos ?
Quanto à partilha de riscos não é partilha mas patranha! Os riscos assumem-nos exclusivamente os que optarem por transferirem uma parte dos seus descontos para os Fundos de Pensões ficando com uma parte da sua pensão de reforma dependente da variabilidade e da instabilidade das cotações bolsistas, da rentabilidade dos activos financeiros. São as reformas à mercê dos mercados, reféns do capital financeiro. Basta ver o que se passa já há alguns anos nos países que decidiram privatizar uma parte do seu sistema público de segurança social. Começou por ser de opção livre. Mas como essa solução não deu o resultado que interessava aos Fundos de Pensões a pressão agora é para tornar obrigatórios os descontos para os Fundos de Pensões privados, como na Alemanha. No Reino Unido, onde os Fundos de Pensões, devido ás aplicações financeiras especulativas e de alto risco, estiveram quase na falência sendo necessário então que o Orçamento de Estado os financiasse com cerca de mil milhões de contos para evitar o seu colapso e o não pagamento das pensões, hoje o que se passa, face á quebra crónica das cotações bolsistas, é que as empresas estão a negar-se a contribuir e a aconselharem os trabalhadores ou a aumentarem as suas contribuições ou a regressarem ao sistema de pensões do Estado. É este perigoso caminho que o Ministro Bagão Félix quer abrir em Portugal, com a agravante de que no modelo que nos propõe só os trabalhadores contribuem para os Fundos de Pensões privados. As empresas ficam isentas.
Mas a patranha é mais vasta. Quase nenhuma instituição financeira garante um valor seguro para o complemento de reforma a receber no final da vida activa. E os poucos Fundos de Pensões que o fazem não arriscam uma taxa de remuneração superior a 3% ou 4%. Basta então fazer um exercício tal como também demonstramos nas projecções que construimos. Comparando o valor da pensão que um jovem de hoje receberá no final da sua vida activa através do Sistema Público de Segurança Social (sem plafonamento) com o que receberia se uma parte das suas contribuições fossem encaminhadas para um Fundo de Pensões, o resultado é claro: não só a pensão do Sistema Público é segura contra a incerteza do resultado das aplicações financeiras das Sociedades Gestoras dos Fundos de Pensões como o montante da pensão pública é sempre superior à que resultaria da introdução do plafonamento.
Sr. Presidente,
O Sistema de Segurança Pública não se resume ao pagamento de pensões de reforma. Ele configura todo um sistema de solidariedade social que protege os trabalhadores em situações de risco, na doença, no desemprego ou noutras eventualidades. Com o plafonamento também uma parte destes riscos deixa de ser coberta. E os acidentes de trabalho, de acordo com a proposta, perdem a perspectiva de integração no Sistema da Segurança Social, continuando nas mãos das Seguradoras, caso único na União Europeia, que fazem dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais um negócio, à medida das necessidades de lucro dos seus accionistas.
Na acção social o Governo fala-nos numa maior participação das famílias. O que se pretende com a desresponsabilização do Estado em matéria de protecção aos grupos sociais mais vulneráveis, em particular aos idosos, é imputar directamente às famílias maiores responsabilidades financeiras, privilegiar a perspectiva caritativa o que acabará por se traduzir numa fragilização das próprias IPSS's e numa efectiva diminuição da protecção aos idosos e às pessoas mais carenciadas.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
A Lei de Bases aprovada na última legislatura introduziu o princípio da diversificação das fontes de financiamento. O Governo do PSD/CDS-PP para resolver essa questão aponta o caminho da privatização. Contudo, há outras soluções para garantir a sustentabilidade financeira futura da Segurança Social como as que o PCP apresentou em três projectos de lei: pagamento das dívidas do Estado; medidas de combate á fraude e evasão das contribuições e alteração da forma de financiamento com base no Valor Acrescentado Bruto, que é o projecto que hoje também se encontra em discussão. Propomos o que os especialistas há muito consensualizaram mas que os interesses das empresas mais poderosas não permitem pôr em prática. Primeiro - mantemos as contribuições com base nas remunerações. Segundo - no final de cada exercício, calculado o Valor Acrescentado Bruto de cada empresa, aplica-se sobre ele uma taxa de 9,5% (que corresponde ao peso médio actual no VAB das contribuições sobre as remunerações). Terceiro - apurado o produto desta taxa compara-se com o somatório das contribuições pagas com base nas remunerações. A diferença para mais será entregue nos cofres da Segurança Social. Quarto - Durante um período de transição de três anos o Governo estudaria a aplicação de taxas diferenciadoras que beneficiassem as empresas de trabalho intensivo, por exemplo, no sector do têxtil, vestuário, calçado, vidro, etc.
Com esta nossa proposta as receitas da Segurança Social poderiam aumentar na ordem dos 200 milhões de contos; corrigir-se-iam distorções no mercado entre empresas de capital intensivo e trabalho intensivo; estas, normalmente com maiores problemas de produtividade, seriam beneficiadas; as empresas de maior composição tecnológica pagariam um pouco mais, sem pôr em causa a sua capacidade competitiva e estimular-se-ia a criação de emprego. Tudo, sem nenhuma necessidade de privatização do Sistema e do desvio de uma parte das cotizações dos trabalhadores para as seguradoras e os Fundos de Pensões.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,
Os Sistemas Públicos de Segurança Social são uma conquista civilizacional dos trabalhadores. São um sistema de solidariedade colectiva inter-geracional e intra-geracional. Não foram criados para servir de alimentador aos mercados de capitais. A proposta de lei que o Governo nos apresenta, escancarando as portas à transferência de vultuosos recursos financeiros provenientes das cotizações dos trabalhadores para as Seguradoras e os Fundos de Pensões, põe em causa este edifício solidário, hipoteca o futuro das jovens gerações aos mercados bolsistas, contribui para o agravamento das desigualdades, mina a coesão social, encaminha o Sistema Público para uma filosofia assistencialista e caritativa, onde ficariam os mais pobres e mais carenciados, beneficiários de prestações mais baixas.
De todo não acompanhamos esta visão neo-liberal e profundamente
conservadora. As forças à esquerda deste hemiciclo têm o
dever histórico de rejeitarem e lutarem contra esta sensivel e perigosa
diminuição da função social do Estado, em detrimento
de quem trabalha e dos mais desfavorecidos e a favor do capital financeiro.
Da nossa parte, PCP, assumimos as nossas responsabilidades. E mesmo que a maioria
de direita venha a aprovar esta gravosa Proposta de Lei não nos demitiremos
e continuaremos a luta em defesa do Sistema Público de Segurança
Social, universal e solidário.