Conferência de Imprensa do PCP
A situação na área da saúde
e quatro propostas urgentes do PCP
7 de Dezembro de 1999
1. A semana dedicada aos problemas da saúde pelo Presidente da República e a polarização do debate da proposta de Orçamento Rectificativo nas contas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) contribuíram, nas últimas semanas, para uma particular mediatização dos problemas deste sector estratégico da vida nacional.
Diga-se, em abono da verdade, que estes problemas não são novos nem são problemas sem solução.
Não podem por isso serem iludidas as responsabilidades dos partidos que há muitos anos têm assumido a direcção política desta área.
Pela parte do PCP temos vindo a alertar, repetidamente, para a gravidade da situação existente.
Denunciámos os interesses ilegítimos que proliferam no sector e a promiscuidade existente entre o sector público e o sector privado como obstáculos fundamentais que é necessário enfrentar para resolver os problemas do SNS.
E apresentámos propostas fundamentadas no domínio da política de saúde, cuja adopção teria permitido travar a degradação da situação, alcançar uma melhoria imediata na prestação de cuidados de saúde e, ao mesmo tempo, levar por diante uma profunda e inadiável reforma democrática do Serviço Nacional de Saúde.
2. O catastrofismo patenteado há poucos dias pela actual responsável do Ministério da Saúde em relação às contas do SNS impõe um imediato e completo esclarecimento por parte do Governo.
Detendo o PS responsabilidades governativas há quatro anos, nelas incluída a apresentação anual da proposta de Orçamento do Estado (da elaboração da qual a actual ministra da Saúde, no desempenho de outras funções governativas, registe-se o pormenor, foi a responsável directa durante cerca de metade da legislatura), importa que - doa a quem doer - seja reposta a verdade das contas públicas.
É indispensável que o país fique a conhecer com verdade as causas do défice do SNS: se ele tem sido ao longo dos anos e no fundamental um défice oculto através de práticas governamentais de sub-orçamentação (com sub-financiamento das despesas e empolamento das receitas próprias previsíveis); ou se ele tem a ver com agravamento imprevisto de despesas ou com má gestão, sendo que neste caso o Governo tem o imperativo dever de fornecer uma detalhada desagregação da despesa pública para que sejam conhecidos as rubricas responsáveis pelo aumento da despesa pública e os interesses que terão sido beneficiados com ela.
Perante uma opinião pública esclarecida não colhe o evidente propósito da actual ministra da Saúde e de outros altos responsáveis do PS alijarem culpas em relação à situação do SNS, de que o PS é o único responsável desde há quatro anos, e de procurarem bodes expiatórios de última hora.
Se o catastrofismo da ministra Manuela Arcanjo não passar, afinal, de um pretexto para o Governo abandonar a linha de regeneração do Serviço Nacional de Saúde (que teve expressão na última legislatura em diversos diplomas que apontavam nesse sentido) e retomar abertamente uma política privatizadora - com entrega à gestão privada de mais instituições públicas e o desvio de mais recursos públicos para o financiamento da prestação privada de cuidados de saúde - poder-se-á afirmar que o país estará colocado perante uma alteração de rumo de pesadíssimas consequências.
Uma alteração que conduzirá em linha recta ao agravamento das despesas públicas - pois é conhecido, tanto a nível nacional como internacional, que os grandes interesses privados na saúde constituem um factor de insaciável despesismo. E que conduzirá, igualmente, a não ser sustida esta política neo-liberal, à destruição do Serviço Nacional de Saúde como garante público do direito à saúde de todos os portugueses, independentemente da sua capacidade económica, e à sua substituição por um sistema em que a grande maioria dos utentes (para além de uma zona de mínimos de carácter assistencial) verá fortemente agravadas as despesas de saúde que já pagam directamente do seu bolso.
3. É conhecido que o PCP recusa firmemente um caminho que acentue a divisão dos portugueses, do ponto de vista da garantia do seu direito à saúde, em cidadãos de primeira e de segunda. E que conduza à divisão entre aqueles que têm capacidade económica (ou capacidade para se endividarem) para usufruírem da prestação de cuidados de saúde de qualidade, e os restantes portugueses, a grande maioria, que não tendo essa capacidade económica ficariam condenados ao acesso apenas a um sistema residual e caritativo de saúde, com cuidados de saúde e outras prestações de nível inevitavelmente inferior.
O PCP assume por isso abertamente uma política de defesa do Serviço Nacional de Saúde.
Não do SNS como está, desfigurado pelas continuadas orientações que têm sido postas em prática, mas do SNS regressado à filosofia e à inspiração democrática e humanista inicial, ajustado às novas condições de progresso tecnológico, aos problemas que o crescimento dos custos e a evolução organizativa colocam, aos novos e mais exigentes padrões de saúde possíveis e por isso acessíveis a todos os seres humanos.
Em coerência com esta postura o PCP tem assumido a necessidade de uma reforma democrática do Serviço Nacional de Saúde, assente num conjunto de orientações estratégicas tais como a autonomia e a regionalização, um novo sistema de financiamento, a gestão democrática das unidades de saúde, e a separação do público e do privado. E tem defendido, em simultâneo, a adopção de políticas prioritárias nos domínios da concretização do direito à saúde, da qualidade dos serviços, da valorização dos cuidados de saúde primários, das listas de espera, dos medicamentos, da promoção dos direitos dos utentes, e que preste uma particular atenção aos problemas da saúde mental, da toxicodependência, e da SIDA.
De entre o conjunto de propostas do PCP entendemos chamar a atenção do País para quatro medidas urgentes, centradas na questão das listas de espera, da política de medicamento, da melhoria da oferta de cuidados primários de saúde e da adopção de um plano de separação do público e do privado.
1ª - Listas de espera
Os atrasos no atendimento dos utentes do SNS e a existência de situações em que foram excedidos os tempos clinicamente aceitáveis (listas de espera) constitui uma realidade absolutamente inadmissível que sucessivos governos não enfrentaram nem quiseram resolver.
Assumir que este é um problema solucionável e mobilizar todos os recursos necessários, e em primeiro lugar os do próprio SNS, para a resolução sustentada do problema das listas de espera, tem sido pois uma prioridade nacional na área da saúde, que há muito o PCP vem reivindicando.
Defendendo o interesse nacional e os interesses dos próprios utentes o PCP propôs na última legislatura um projecto de lei e a Assembleia da República aprovou-o, consagrando um Programa Especial de Acesso aos Cuidados de Saúde.
Este Programa consagra o princípio do aproveitamento da capacidade do Serviço Nacional de Saúde através da contratualização com as instituições do próprio SNS de forma a aumentar a resposta dada por estes serviços. E prevê a concretização de várias medidas, entre as quais são de sublinhar:
- o recenseamento rigoroso dos utentes em listas de espera, regularmente actualizado;
- a avaliação da capacidade instalada do SNS em recursos humanos, infra-estruturas e equipamentos e sua mobilização para a resolução sustentada do problema das listas de espera, mediante acordos entre as Agências das Administrações Regionais de Saúde e as instituições do SNS, que estabeleçam as medidas organizativas e de apoio indispensáveis;
- o estabelecimento do princípio de que o recurso a meios externos ao SNS só terá lugar em situações de insuficiência ou esgotamento da capacidade instalada;
- a atribuição ao Programa Especial de Acesso aos Cuidados de Saúde de uma dotação orçamental adicional e própria.
O Governo ficou obrigado a prestar contas regularmente da concretização deste Programa, mas até ao momento não enviou à Assembleia da República qualquer informação.
O PCP torna público que através do seu Grupo Parlamentar requereu recentemente ao Governo o fornecimento urgente do balanço de execução do Programa Especial de Acesso. E que irá prosseguir, por todas as formas ao seu alcance, o acompanhamento de uma questão de vital importância para a garantia em tempo útil do acesso da população à prestação de cuidados de saúde.
2ª - Política do Medicamento
Portugal é um dos países europeus com maiores gastos de medicamentos e continua vulnerável à propaganda da indústria multinacional de medicamentos, a qual determina em larga medida o perfil de receituário dos serviços, verificando-se um largo consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.
É sabido como o sistema actual de comparticipação de medicamentos e a forma como são prescritos favorecem os medicamentos mais caros.
Os utentes e o SNS são assim penalizados à custa do favorecimento dos interesses económicos do sector dos medicamentos.
A indústria leva à prática um marketing agressivo que pressiona os médicos no sentido de prescreverem os medicamentos mais caros. Quanto às farmácias elas obviamente obtêm maiores margens de comercialização com os medicamentos mais caros.
O Governo português prometeu tomar medidas para incentivar a prescrição por princípio activo, mas até agora não houve progressos. Observe-se que o preço dos medicamentos genéricos é normalmente 20 a 30% mais baixo que os correspondentes de marca e que nos próximos 3 anos grande parte dos medicamentos com cotas significativas do mercado terão as patentes caducadas aumentando assim as possibilidades de aumento da quantidade de genéricos.
O PCP defende em relação aos medicamentos, entre outras, as seguintes 17 medidas:
- dispensa gratuita aos utentes do SNS do conjunto de medicamentos que lhes sejam prescritos cuja comparticipação financeira sai mais cara ao erário público do que a sua dispensa gratuita nos hospitais e centros de saúde;
- a prescrição de medicamentos comparticipáveis pelo SNS terá de ser efectuada com indicação da substância activa ou denominação comum internacional seguida de dosagem e forma farmacêutica;
- implantação de um formulário nacional de medicamentos que tenha em conta o balanço entre o custo e o benefício terapêutico dos fármacos nele incluídos;
- enquanto o formulário nacional de medicamentos não entrar em vigor defendem-se transitoriamente os seguintes procedimentos:
- caso o médico deseje optar pela marca de um determinado laboratório, para além da indicação da substância activa, dosagem e forma farmacêutica, terá de escrever em seguida entre parêntesis a marca pretendida ou nome comercial;
- se o médico não escrever na receita o nome comercial ou marca o farmacêutico terá de dispensar o medicamento incluído na lista oficial dos medicamentos comparticipáveis, que tenha o preço mais baixo correspondente à substância activa ou denominação comum internacional, dosagem e forma farmacêutica prescrita pelo médico devendo o director técnico ou o seu substituto legal rubricar a receita;
- no caso do médico optar por indicar uma determinada marca comercial que não seja a de preço mais baixo o farmacêutico terá de informar o utente qual o medicamento comparticipável com igual composição qualitativa e quantitativa, com o preço mais baixo;
- caso o utente opte pelo medicamento de igual composição mas mais barato a receita terá de ser rubricada pelo utente e pelo director técnico ou o seu legal substituto;
- alteração do sistema de comparticipação de medicamentos com eliminação dos medicamentos que tenham uma eficácia terapêutica actualmente considerada discutível e os que tenha preços relativamente excessivos de forma a se poder aumentar o valor da comparticipação nos medicamentos essenciais;
- promoção da utilização dos medicamentos genéricos, devidamente certificados, de acordo com as normas de patentes vigentes internacionalmente;
- aperfeiçoar a lista de medicamentos comparticipados a 100% pelo Estado de forma a contemplar entidades nosológicas de carácter crónico cujas características clínicas e sociais são equivalentes às de outras já contempladas;
- utilização de critérios mais rigorosos e eficientes na autorização dos medicamentos de forma a que em Portugal não sejam aprovados medicamentos cujo balanço entre o benefício terapêutico e o risco seja discutível;
- desenvolvimento de estruturas a nível das farmácias dos hospitais que permitam a distribuição de medicamentos aos doentes que acedem às urgências e consultas externas;
- aperfeiçoar a legislação sobre ensaios clínicos com medicamentos de forma a que a investigação nesta área se desenvolva em Portugal salvaguardando os direitos dos doentes e a transparência nas relações entre a indústria farmacêutica e os investigadores;
- alteração da legislação sobre publicidade de medicamentos de forma a que se restrinja a sua prática nos grandes meios de comunicação social e se controlem de forma mais eficaz as pressões sobre os profissionais de saúde e os consumidores;
- desenvolvimento de uma política estruturada de informação científica independente destinada aos profissionais de saúde utilizando novas tecnologias de informação;
- intervenção mais activa nas instâncias da União Europeia e da OMS que têm um papel determinante na definição das políticas relacionadas com o medicamento de forma a se salvaguardarem os interesses nacionais nos aspectos económicos, científicos e culturais;
- criação de linhas de apoio à investigação nomeadamente em fármaco-epidemiologia e tecnologia farmacêutica;
- política de apoio ao investimento produtivo na indústria farmacêutica nacional, que dificulte a transferência para outros países da produção local de medicamentos;
- garantir a produção e a distribuição de manipulados e outros medicamentos não existentes no circuito comercial;
- criação de um laboratório de referência oficial para o controle da qualidade dos medicamentos.
O Grupo Parlamentar do PCP irá apresentar na Assembleia da República, na próxima 5ª feira, um projecto de lei que consagra a adopção de algumas destas medidas e que integram um “Programa de Redução dos Gastos com Medicamentos”.
3ª - Melhoria da oferta de Cuidados de Saúde Primários
Aos cuidados de saúde primários compete conduzir o diagnóstico de saúde da comunidade, desenvolver programas de prevenção da doença e promoção da saúde e prestar cuidados básicos às populações. Compete ainda gerir o encaminhamento dos doentes para os cuidados diferenciados hospitalares e outros.
É pois, indispensável recentrar nos cuidados primários a gestão dos doentes e o controle das principais patologias.
Nesta perspectiva importa concretizar uma nova articulação entre cuidados primários e secundários que rompa com a visão burocrática-administrativa que tem prevalecido no SNS.
É pois, necessário aprofundar o processo de articulação, integração e democratização dos serviços, facilitando assim a continuidade de cuidados.
O PCP defende as seguintes dez medidas, entre outras, para melhorar a oferta de cuidados de saúde primários:
- o reforço prioritário do investimento nos cuidados primários, considerando que esta medida é uma condição essencial para o bom funcionamento do sistema de saúde;
- a renovação e criação de novas instalações e equipamentos para os cuidados primários de saúde atendendo ao insuficiente e deteriorado parque de saúde existente; com esta finalidade o PCP propõe a duplicação do investimento nesta área na próxima legislatura;
- uma nova política de pessoal que, para além do redimensionamento e preenchimento dos quadros, valorize a adequada gestão das carreiras profissionais, garantindo a pertinente requalificação dos trabalhadores da saúde;
- a articulação através de ligações horizontais flexíveis entre centros de saúde e serviços hospitalares, na base do interesse mútuo e orientadas por objectivos concretos de saúde;
- a adequada expressão da vontade das populações na direcção dos centros de saúde, através de representação electiva, de forma a fazer reflectir no funcionamento e organização dos centros de saúde, os reais interesses da população e dos profissionais;
- a promoção de uma política de estímulos que promova a inovação organizativa, designadamente a aproximação dos horários aos períodos de conveniência da comunidade e o desenvolvimento do apoio domiciliário e as transferências de tecnologia dos cuidados secundários para os cuidados primários;
- o desenvolvimento de programas de prestação de cuidados de especialidade nos Centros de Saúde, da responsabilidade dos hospitais de referência;
- o reforço da produtividade, através da inovação tecnológica e organizativa, da motivação dos profissionais, e da facilitação dos contactos entre utentes e profissionais de saúde;
- a reforma da legislação de enquadramento dos Cuidados Primários de Saúde que consagre uma nova filosofia de gestão democrática, mudança organizativa, nova política de recursos humanos e financiamento contratualizado;
- a garantia da qualidade dos cuidados de saúde através de uma avaliação da adequação de recursos, dos processos de prestação e dos resultados alcançados, em termos de ganho em saúde.
4ª - Adopção de um Plano de separação do público e do privado
Os interesses ilegítimos que se foram instalando na área da saúde e a promiscuidade existente entre o sector público e o privado constituem um dos mais sérios obstáculos à resolução dos problemas do SNS.
O PCP defende uma política de aproveitamento integral da capacidade instalada na rede de serviços do SNS, em que o recurso a meios externos ao SNS só tenha lugar em situações de clara insuficiência ou de esgotamento dessa capacidade.
Impõe-se a necessidade de adopção de um Plano de separação do sector público e do sector privado, com a adopção de um conjunto de medidas tais como:
- alteração do sistema que permite o desenvolvimento de medicina privada no interior dos estabelecimentos públicos;
- introdução, em simultâneo, de modalidades remuneratórias que permitam fixar no SNS técnicos de elevada competência;
- estabelecimento de um código de conduta que torne ilícito aos médicos do SNS o desvio de doentes para consultórios privados;
- consagração do carácter público da gestão de todos os estabelecimentos públicos e cessação dos contratos de gestão privada de estabelecimentos do SNS, actualmente existentes.