1. Um ano decorrido desde a tomada de posse do governo do PS constitui uma baliza temporal suficiente para a avaliação da actividade governativa na área da Saúde - um dos sectores cujos problemas se repercutem de forma grave no conjunto da população portuguesa e onde, sem dúvida, as orientações neo-liberais do cavaquismo criaram uma situação particularmente crítica.
Radicam neste quadro as principais críticas que se podem dirigir aos actuais responsáveis do Ministério da Saúde: a ausência de uma definição e de uma intervenção políticas globais em relação aos graves problemas que atingem o Serviço Nacional de Saúde que no seu conjunto continua a degradar-se; uma intervenção de carácter predominantemente conjuntural e que se vai esgotando na contemporização com grandes interesses instalados no sector; e na manutenção - praticamente inalterada - das traves mestras legislativas, de inspiração governamentalizadora e neo-liberal, que os governos do PSD ergueram ao longo de uma década.
Um milhão de portugueses continua sem médico de família. Obstáculos de natureza económica e social e inadmissíveis problemas de acessibilidade à prestação de cuidados de saúde no SNS, que afectam de forma muito particular os portugueses que vivem numa situação de pobreza (cerca de um terço da população), estão a atingir também outros sectores que se situam num nível menos baixo de rendimentos.
Este quadro geral não pode - sem risco de grave deterioração da situação na área da saúde - continuar a prolongar-se.
Quando já não é possível adiar por muito mais tempo um conjunto de importantes decisões, a equipa responsável do Ministério da Saúde encontra-se claramente perante uma encruzilhada: ou faz prevalecer os interesses da saúde pública e opta claramente por orientações e critérios que defendam o Serviço Nacional de Saúde, elemento indispensável à concretização do direito à saúde dos utentes; ou claudica perante as pressões dos poderosos interesses para quem a área da saúde não representa mais do que um importantíssimo sector de negócios cujos lucros pretendem ver ainda mais aumentados. A manutenção de um cenário de paralisia, em que não é encetada uma reforma urgente e democrática do SNS, estimula os adeptos do neoliberalismo, que dispõem de fortíssimas posições no seio do próprio PS, a retomar a ofensiva.
2. Sem dúvida que para além das linhas estratégicas para a área da saúde, são diversos os problemas que podem ser equacionados e diversos também os passos que podem ser dados para iniciar a sua resolução. São de referir desde já alguns pontos.
Observando as pressões que têm vindo a ser desenvolvidas por parte das multinacionais produtoras de medicamentos para impor um novo e significativo aumento dos seus preços, é com preocupação que se anota a receptividade, a nível oficial, em relação às pretensões dessas empresas, e a inclinação para uma política de diminuição das comparticipações do Estado e portanto de agravamento da já elevada comparticipação dos utentes. Impõe-se alertar vivamente a opinião pública em relação a esta área da política de saúde, de importância crucial, e deixar o apelo para o combate activo a essas pressões e projectos.
Neste quadro, em que os grandes interesses que intervêm na área da saúde - multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, construtores de infra-estruturas, sector convencionado, crescentemente dominado por monopólios na hemodiálise e nas análises clínicas - procuram manter e alargar a quota parte dos recursos públicos que absorvem, constituiria uma grave opção que o Governo, em vez de contrariar interesses ilegítimos, prosseguisse uma política fortemente restritiva em relação à área dos recursos humanos e suas condições de trabalho, onde se registam fortes carências.
Em relação ao "projecto Alfa", surgido na Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, regista-se a concepção inicial objectivamente desagregadora dos centros de saúde e voltada para cuidados exclusivamente curativos. A sua ulterior evolução e inserção num quadro programático, que se encontra em debate aberto - a "estratégia regional de saúde" - pode porém criar condições favoráveis a um processo reformador dos centros de saúde. Quanto a essa proposta de "estratégia regional de saúde", observando que ela é portadora de indiscutíveis inovações de natureza funcional do SNS e que assume correctamente os cuidados de saúde primários como prioridade estratégica, não se considera todavia clarificado o problema da suficiência de recursos humanos e materiais e de algumas das suas opções políticas fundamentais (estatuto e financiamento das instituições de saúde, formas de remuneração e condições de trabalho dos profissionais, designadamente). Além disso ela é omissa em relação ao (indispensável) papel da medicina preventiva.
No que respeita à gestão hospitalar, a legislação vigente constitui um ilustrativo exemplo da política neo-liberal do PSD com a subordinação dos aspectos técnicos e científicos da prestação de cuidados de saúde, aos ditames de uma linha de comando autoritária e economicista, não poucas vezes posta ao serviço de interesses clientelares. Ao actual Ministério da Saúde não pode deixar de ser dirigida a crítica de ter continuado a manter intocado o fundamental do sistema vigente. E de ter procedido apenas a uma revisão pontual e insuficiente do diploma da gestão hospitalar no que respeita à auscultação dos médicos e enfermeiros para a ulterior nomeação governamental do Director Clínico e do Enfermeiro Director.
Numa altura em que a nível internacional, na Conferência de Vancouver, foi realizado um balanço extremamente severo no que respeita aos efeitos perniciosos das políticas neo-liberais em relação à saúde das populações, a nível nacional assiste-se também à falência de várias iniciativas privadas de prestação de cuidados de saúde da qual importa que sejam tiradas todas as indicações e ensinamentos.
Neste contexto não podem deixar de ser anotadas negativamente algumas afirmações recentes de responsáveis do Ministério da Saúde encarecendo a gestão privada de unidades de saúde e a pulverização e privatização de actividades na área das instalações e equipamentos.
Também em relação à gestão privada de unidades do Serviço Nacional de Saúde, o que se tem passado com o Hospital Amadora - Sintra constitui um cabal desmentido das "vantagens" que os interesseiros arautos do neo-liberalismo proclamavam. Porque os portugueses, através dos impostos, estão a pagar muito mais à gestão privada do que pagariam pela administração em regime público dessa importante unidade hospitalar. Porque a gestão privada, empenhada no aumento dos seus lucros, procura parasitar por todas as formas o próprio Serviço Nacional de Saúde, ao ponto de haver profissionais - numa situação de promiscuidade incompreensivelmente tolerada pelo Ministério da Saúde - a exercerem simultaneamente funções em serviços públicos e no Hospital Amadora - Sintra. E por último e não menos importante, pelo grau de insatisfação em relação ao funcionamento actual deste Hospital, como é testemunhado pela Comissão de Utentes que já reclamou a denúncia por incumprimento do contrato assinado pelo Estado com a gestão privada.
3. A situação existente na área da saúde - resultante da política de direita conduzida pelo cavaquismo durante uma década e do desempenho notoriamente insuficiente do actual governo - impõe a quantos não se conformam com o presente estado de coisas a necessidade de uma acrescida e mais dinâmica intervenção pela defesa e modernização do Serviço Nacional de Saúde .
É neste mesmo sentido que o PCP pretende contribuir para uma mais activa mobilização social e política dos profissionais do sector e dos seus utentes. E assume igualmente o propósito de reforçar a sua intervenção política directa, na sociedade e ao nível das instituições democráticas.
A Comissão Nacional para as Questões da Saúde do PCP, que apresentou ao país um aprofundado diagnóstico da situação existente neste sector acompanhado de um conjunto articulado e coerente de propostas, irá privilegiar nos próximos meses a par da defesa das orientações estratégicas e medidas com vista à sua reforma democrática do SNS, o debate e a intervenção em torno, entre outras, das seguintes questões concretas:
- Orçamento do Estado: defesa do aumento das dotações para a saúde de modo a que, em conjunto com uma política racionalizadora das despesas, se verifique uma efectiva elevação dos recursos postos à disposição do SNS.
- Acessibilidade aos centros de saúde e unidades hospitalares: acompanhamento da evolução dos indicadores mais críticos (em que se registam inadmissíveis filas de espera e atrasos no atendimento de utentes, mesmo quando portadores de graves doenças); exigência de medidas extraordinárias até à normalização funcional da resposta dos vários serviços; aperfeiçoamento das áreas funcionais atribuídas aos vários estabelecimentos de saúde.
- Recursos humanos: inventariação das principais carências imediatas e a prazo e das dificuldades que se levantam em relação à sua superação; defesa da adopção e calendarização das políticas correspondentes.
- Política do medicamento: combate ao aumento dos preços e à elevação da comparticipação por parte dos utentes; numa linha racionalizadora de custos e que contrarie a promoção que as multinacionais vêm fazendo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos, defender a efectiva introdução dos medicamentos genéricos e a elaboração de um formulário nacional para o ambulatório (a exemplo do que já existe a nível hospitalar).
- Infra-estruturas: redefinição de prioridades à luz de níveis mínimos da cobertura da população que importa garantir.
- Direcção e gestão dos serviços de saúde: defesa da desgovernamentalização e da progressiva substituição de mecanismos de comando burocrático administrativo central por processos de autonomia e de auto-regulação democrática em que concorram e se equilibrem os poderes da tutela, das comunidades servidas pelos serviços e dos profissionais de saúde. Com este objectivo o PCP têm vindo a debater e apresentará oportunamente na Assembleia da República dois projectos de lei relativos à direcção e gestão dos Serviços de Saúde, contemplando a sua regionalização, e ao financiamento do Serviço Nacional de Saúde.