Sobre a anunciada reforma dos Cuidados
de Saúde Primários
Declaração de Jerónimo de Sousa Secretário-geral
do PCP
9 de Fevereiro de 2006
Como é do conhecimento público são crescentes as dificuldades sentidas por todo o país para se aceder em tempo útil a consultas nos Centros de Saúde, dificuldades que serão agravadas com o plano de encerramento generalizado de Serviços de Atendimento Permanente dos Centro de Saúde.
Tais dificuldades são o resultado do desinvestimento de que foram alvo os Cuidados de Saúde Primários por parte dos governos do PSD, PSD-CDS e PS, mantendo-os em instalações inadequadas durante décadas, não os dotando do equipamento e do pessoal necessários ao cumprimento da sua missão. Desde a década de 80 até hoje, a fatia de financiamento desta importante área de cuidados, relativamente à área hospitalar foi reduzida de cerca de 50% para os cerca de 23 % actuais. Também relativamente aos médicos de família, desde 1985 o seu número reduziu-se de 8100 para cerca de 7000 e enquanto há 12 anos existia 1 médico de família para 2 hospitalares, hoje caminha-se a passo acelerado para uma proporção de um médico de família para 4 médicos hospitalares, revelando uma tendência contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde. A falta de profissionais de saúde, em particular de Médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar e de Enfermeiros é crítica. Ascende a muitas centenas de milhar – mais de 750 mil de acordo com o Ministro – o número de utentes sem médico de família.
Os serviços de Cuidados de Saúde Primários, a quem caberia um papel decisivo na promoção da saúde e na prevenção da doença, foram sendo cada vez mais empurrados para privilegiar a prestação de cuidados curativos em situação de doença aguda, com o consequente sofrimento que para os doentes e sobrecarga para os profissionais de saúde. As acções de promoção da saúde e prevenção das doenças, principal actividade realizada pelos enfermeiros na comunidade e especialmente nas escolas, foram relegadas para segundo plano e ignorando-se a orientação da Organização Mundial de Saúde de se implementar o enfermeiro de família.
Esta situação de ruptura é da responsabilidade dos últimos governos do PSD/CDS e do actual governo do PS que adoptaram uma política de medidas avulsas e contraditórias nos seus efeitos, culminando na medida economicista de encerramento dos Serviços de Atendimento Permanente sem que se apresente uma alternativa mais favorável ao atendimento das necessidades das populações, bem ilustradas no aumento do atendimento de urgência que passou de 3,3 milhões em 1990 para 5,5 milhões em 2000. Não é, pois, surpresa nenhuma que estas medidas tenham despoletado um vivo descontentamento e justo protesto das populações, em movimento generalizado a todas as regiões do País que o PCP saúda e apoia.
Tal como o PCP previu e atempadamente preveniu, este é o resultado de uma política deliberadamente orientada para a mercantilização da saúde e de privatização dos serviços de saúde, assente na desresponsabilização do Estado do seu dever de assegurar o direito à saúde em clara violação do espírito e do texto da Constituição da República, transferindo para os utentes o pagamento de uma parte substancial das despesas com a saúde. No espaço europeu Portugal é hoje um dos países com menor investimento público em que mais de 30 % das despesas são pagas directamente pelas famílias, quando a média europeia se situa abaixo dos 20%.
A anunciada “Reforma dos Cuidados de Saúde Primários”, utilizando motivos de justo descontentamento das populações e dos profissionais nos Cuidados de Saúde Primários e parecendo pretender dar satisfação a algumas das suas reivindicações, insere-se nas dinâmicas dos planos do grande capital que visam de facto a concretização do mesmo processo de mercantilização e privatização da saúde, que desde sempre acalentou e que está na origem da desmotivação e da luta dos profissionais e do protesto e da resistência das populações.
Ao mesmo tempo que manifesta a necessidade urgente de uma Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, o PCP considera que as mudanças a efectuar têm de realizar-se em ruptura com as políticas que têm sido seguidas, no quadro de um Serviço Nacional de Saúde público, de qualidade e para todos, no respeito pela Constituição.
O PCP considera que os problemas críticos dos Cuidados de Saúde
Primários são:
- o subfinanciamento crónico;
- a falta de profissionais, em particular de médicos de Medicina Geral
e Familiar e de enfermeiros, mas também de outros especialistas e de
pessoal administrativo preparado para o cumprimento da exigente missão
de um moderno serviço de saúde;
- a inexistência de uma adequada organização e gestão
dos serviços, participada pelos profissionais e supervisionada pelos
utentes.
Para esta questão, embora abordada no Plano de Acção proposto pelo Governo, não são apontadas as medidas que a sua gravidade e urgência aconselham, antes se adoptando uma linha de enfraquecimento do vínculo público e de desresponsabilização do Estado. Neste sentido a bondade da reforma terá de ser medida pelo respeito dos direitos dos profissionais, pela sua integração nas carreiras e pela conclusão de negociação de contratos colectivos de trabalho que abranjam todos os trabalhadores. A organização de listas de utentes sem limites territoriais e o pagamento predominantemente «à peça» irão aumentar as despesas, sem necessariamente aumentarem os ganhos em saúde.
Sem medidas claras, firmes e urgentes em matéria de recursos humanos no quadro do serviço público, a «centralidade» e a «prioridade absoluta» dadas à constituição das Unidades de Saúde Familiares, começa por ser um exercício de marketing político, orientado para a neutralização da resistência dos profissionais, para terminar como instrumento da entrega dos Cuidados de Saúde Primários como um negócio aos grandes grupos privados, em prejuízo das populações e desses mesmos profissionais.
Inseridas num quadro global tendente à privatização da rede hospitalar, as concepções a que obedecem a constituição das Unidades de Saúde Familiar e as Unidades Locais de Saúde, com a adopção do princípio do “prescritor-pagador” na relação entre os serviços de cuidados de saúde primários e os hospitais, só podem ser motivo da mais profunda preocupação para quem o objectivo central do sistema de saúde seja o interesse do utente/doente. Lembramos a experiência inglesa com aquele sentido, que acabou por ser abandonada há cerca de 3 anos, tendo a sua actividade das unidades de saúde passado para empresas privadas e grandes consórcios, nomeadamente ligados a seguradoras.
Sem prejuízo das parcerias que, voluntariamente, seja possível estabelecer entre as autarquias locais e as direcções dos Centros de Saúde no âmbito dos previstos Conselhos Consultivos dos Centros de Saúde, é despropositada e demagógica a pretensão anunciada de transferir para as autarquias responsabilidades na prestação de cuidados domiciliários, na protecção da saúde dos grupos sociais de risco e nos incentivos à fixação dos profissionais, matérias que são da inteira responsabilidade do governo.
Apresentado como um projecto de reforma conduzido “de baixo para cima”, é evidente que contraditoriamente lhe falta na sua concepção e linhas de aplicação, a opinião e intervenção dos principais interessados e destinatários: as populações. Da mesma forma a participação individual de técnicos com responsabilidades na direcção de associações de profissionais de saúde na elaboração de documentos e estudos, ou na aplicação do projecto de reforma agora anunciado, não pode ser entendida como o sinal de aceitação acrítica das medidas propostas por parte dos sindicatos e outras associações representativas de classe. Na opinião do PCP a intervenção das Comissões e Movimentos de Utentes dos Serviços Públicos de Saúde e das organizações sindicais e dos profissionais de saúde, são indispensáveis à sustentabilidade e ao êxito de qualquer reforma dos Cuidados de Saúde Primários e à defesa do Serviço Nacional de Saúde.
Face à situação existente, o PCP considera que o carácter das medidas anunciadas e os traços de voluntarismo e aventureirismo patentes no seu calendário, pode resultar numa situação de completa anarquia nos Cuidados de Saúde Primários, agravando-a a curto prazo, para surgir depois como uma nova justificação para a sua privatização. Não se dispensando de a todo o momento reavaliar todo o processo e cada uma das medidas que em concreto venham a ser tomadas, o PCP considera que a vigilância, a mobilização, a organização e a luta das populações e dos profissionais continuam a ser a principal garantia de uma efectiva reforma dos Cuidados de Saúde Primários no quadro de um SNS público e para todos.