Serviço Nacional de Saúde
Intervenção do deputado Bernardino Soares
5 de Maio de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Ao fim de 20 anos de actividade, está amplamente provado que o Serviço Nacional de Saúde é indispensável para garantir o acesso à saúde do povo português. A existência de um serviço público de saúde é um instrumento fundamental para que todos possam ter acesso aos cuidados sanitários.

Mas as carências continuam a existir, reflectindo sobretudo as dificuldades sócio-económicas existentes. E a verdade é que o Serviço Nacional de Saúde foi sempre um alvo privilegiado de todos os interesses que pretendem ocupar de assalto este lucrativo sector. E que sucessivos Governos foram executores de uma política de delapidação dos recursos públicos na saúde. A verdade é que ao longo dos anos se sucederam as medidas que degradaram o Serviço Nacional de Saúde, sempre com o intuito de abrir a porta à privatização e à diminuição para um espaço residual da prestação pública, limitando-a a uma função de assistência caritativa.

O subfinanciamento foi constante, impedindo um investimento adequado e o funcionamento adequado e suficiente das instituições; a política de recursos humanos comprometeu a capacidade de resposta dos serviços, e continua a não ser alterada sendo o quadro de futuro cada vez mais negro; procedeu-se a uma privatização dissimulada da prestação de saúde em diversas áreas, quase sempre à custa dos fundos públicos; permitiu-se e estimulou-se a promiscuidade entre o sector público e o privado, numa situação de inaceitável parasitagem.

E o curioso é que são os mesmos que durante décadas atacaram e desvalorizaram o SNS, que agora aparecem a dizer que é preciso caminhar para outra solução, necessariamente privatizadora, porque o sistema público não funciona.

Querem convencer-nos que os serviços públicos de saúde não têm outro remédio senão ser burocráticos, ineficientes, desperdiçadores e mais caros.

Mas foram estes mesmos que detiveram durante 20 anos a pasta da saúde, contribuindo decisivamente para a situação existente.

O actual Governo do PS não fez uma verdadeira inversão da política antes seguida. Nem sequer cumpriram muitas das promessas com que acenaram ao povo português. Por tudo isto é necessário um grande discernimento na avaliação de certos discursos que falam da reforma de que o Serviço Nacional de Saúde necessita. Querem dizer privatização.

O Partido Comunista Português defende a necessidade de uma reforma do Serviço Nacional de Saúde, mas uma reforma democrática, que aumente a participação das populações, que valorize os profissionais e, sobretudo, que produza mais e melhores cuidados de saúde.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O Partido Comunista Português é um partido de crítica mas também de propostas. Hoje discutimos três importantes Projectos de Lei do PCP, que a serem aprovados serão importantíssimas mudanças no Estado actual do Serviço Nacional de Saúde.

A Lei Quadro de financiamento do Serviço Nacional de Saúde é uma resposta à situação de asfixia financeira do Serviço Nacional de Saúde e à má distribuição dos recursos existentes. Existe uma carência de recursos que limita gravemente o funcionamento do SNS. A necessidade de racionalizar a utilização dos recursos existentes, encontrando as melhores formas de organização e funcionamento, combatendo os gastos desnecessários e atacando as enormes margens de lucro dos interesses económicos que pirateiam o orçamento da saúde, não pode esconder esta carência.

Os recursos atribuídos têm sido determinados segundo critérios economicistas e também eleitorais e partidários, sem atender às necessidades objectivas das populações.

O financiamento na área da saúde não é uma mera despesa mas, sim, um verdadeiro investimento social, de importância fundamental para a qualidade de vida da população, sendo igualmente um importante motor do desenvolvimento do país.

É isso que fingem esquecer os arautos da racionalidade económica, que fazem inevitavelmente coincidir com a privatização da gestão ou até da prestação.

O projecto de lei de finanças da saúde que apresentamos consagra o financiamento suficiente do SNS pelo Orçamento do Estado, de forma a garantir a prestação de cuidados de saúde de qualidade.

Para a definição de um orçamento justo e suficiente é necessário que sejam atribuídas anualmente a cada Administração Regional de Saúde as verbas necessárias à prestação de cuidados de saúde à população residente em cada região, com base em critérios sócio-económicos, demográficos e sanitários, tendo em conta as necessidades e os recursos existentes e visando objectivos de equidade social.

Por sua vez, a atribuição de financiamento às entidades prestadoras deve ter como base orçamentos-programa contratualizados com as agências de cada Administração Regional de Saúde.

É preciso pôr fim à gestão centralizada e completamente alheada das necessidades reais que tem sido a realidade do SNS.

Por outro lado sabemos que a actual gestão dos dinheiros públicos permite a promiscuidade entre a prestação pública e privada. Para nós a prestação de cuidados de saúde no SNS tem de assentar no pressuposto do aproveitamento integral da capacidade instalada da sua rede de serviços e de que o recurso a meios externos só pode ter lugar em situações de insuficiência ou esgotamento da capacidade instalada e com custos que não sejam superiores aos constantes das tabelas do SNS. E não se deturpe esta nossa proposta dizendo que ela significa deixar utentes sem assistência. Sabemos que há diversas áreas do SNS em que a prestação pública não é neste momento suficiente e em que por isso temos de continuar a recorrer à prestação privada.

Mas já não é possível entender que havendo capacidade disponível nos serviços públicos ela não seja plenamente aproveitada, esquecendo olimpicamente as regras da boa gestão. Nem é aceitável que não se invista no SNS de forma a ir suprindo as carências existentes.

O Projecto do PCP de Lei quadro da administração e gestão democrática das unidades de saúde é uma resposta à ideia de que os serviços de saúde funcionam mal, não porque estão sujeitos a uma política de asfixia financeira, à gestão incompetente e à falta de participação das populações e dos trabalhadores dos serviços mas, sim, porque os sistemas públicos teriam uma tendência inevitável para o desperdício e para a ineficiência.

A verdade é que as possibilidades de aperfeiçoamento dos mecanismos de gestão e administração dos serviços públicos de saúde nunca foram aproveitadas pelos vários governos, apenas tendo sido percorridos os caminhos da desresponsabilização do Estado, da privatização dos cuidados de saúde ou da diminuição dos direitos dos trabalhadores desta área como aliás fez o Governo PS.

A defesa do Serviço Nacional de Saúde e a sua reforma democrática passa também pela melhor aplicação dos recursos existentes, independentemente de continuar a existir uma situação de sub-financiamento. O aumento da articulação entre os vários serviços e a responsabilização da sua gestão no sentido do aumento e da melhoria da prestação de cuidados de saúde são vectores fundamentais de uma política que vise uma verdadeira defesa do SNS.

O enquadramento legislativo existente opõe-se a uma política que assegure o direito à protecção da saúde tal como está constitucionalmente consagrado.

A desgovernamentalização do SNS e a substituição progressiva dos mecanismos de comando burocrático administrativo por processos de autonomia e de autoregulação democrática constituem eixos estratégicos da reforma democrática do SNS que o PCP há muito sustenta.

É de acordo com esta perspectiva geral que o PCP defende a adopção de mecanismos de administração e gestão democrática baseados em princípios de equidade, dos centros de saúde, hospitais e sistemas locais de saúde, entre os quais se referem:

1 - A adopção do concurso como método de selecção dos membros dos conselhos de administração dos hospitais e das direcções dos centros de saúde sendo a base do concurso o caderno de encargos elaborado pela Administração Regional de Saúde.

2 - A constituição em cada hospital e em cada centro de saúde de um conselho consultivo, constituído por representantes de associações de utentes e de organizações sindicais, bem como por representantes, respectivamente, das assembleias municipais e das assembleias de freguesia das suas áreas de influência e dotado de amplas atribuições.

3 - A definição da qualidade dos serviços de saúde como um objectivo de desenvolvimento contínuo.

4 - O desenvolvimento de uma política de estímulos aos serviços e aos profissionais do SNS, tendo como objectivo a prestação de cuidados de saúde com melhor qualidade e com maior eficácia.

A defesa da privatização da gestão dos serviços de saúde, ficando dependente de uma lógica de lucro, tem passado pela imposição de uma gestão pouco adequada às necessidades dos serviços de saúde públicos. Mas é possível gerir bem dentro do quadro público e sem diminuir os direitos dos trabalhadores. E é isso que prova o projecto do PCP.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

O Governo continua a permitir que os grandes interesses estabelecidos no sector da saúde absorvam o grosso dos recursos do Serviço Nacional de Saúde, situação que é especialmente grave na área dos medicamentos.

Portugal é um país que se encontra completamente vulnerável face aos interesses da indústria multinacional de medicamentos, os quais determinam, em grande medida, o perfil de receituário dos serviços, verificando-se um largo consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.

As sucessivas derrapagens orçamentais e o aumento da despesa com medicamentos, sem que isso se traduza em qualquer ganho para a população, mas tão só em fabulosas margens de lucro para os interesses privados, não são inevitáveis.

Para afrontar a voracidade dos grandes interesses económicos é preciso tomar medidas contra o seu favorecimento ilegítimo, atacando o consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.

O sistema actual de comparticipação de medicamentos e a forma como são prescritos favorecem os medicamentos mais caros.

Os utentes e o SNS são, assim, penalizados à custa do favorecimento dos interesses económicos do sector dos medicamentos.

A indústria leva à prática um marketing agressivo que pressiona os médicos no sentido de prescreverem os medicamentos mais caros. Quanto às farmácias, elas obviamente obtêm maiores margens de comercialização com os medicamentos mais caros.

O Governo português, no seu próprio programa, prometeu tomar medidas para incentivar a prescrição por princípio activo e para desenvolver o mercado de genéricos, mas até agora não houve progressos.

Observe-se que o preço dos medicamentos genéricos é normalmente 20 a 30% mais baixo que os correspondentes de marca e que nos próximos três anos grande parte dos medicamentos com cotas significativas do mercado terão as patentes caducadas aumentando, assim, as possibilidades de aumento da quantidade de genéricos.

Em praticamente todos os países da União Europeia estão em curso medidas visando a contenção de gastos com os medicamentos e nos últimos anos diversos países (Espanha, França, Itália, Holanda, por exemplo) têm vindo a tomar medidas no sentido de promover o mercado dos medicamentos genéricos. Por outro lado, a carestia dos medicamentos afecta cada vez mais os portugueses, que pagam do seu bolso uma grande parte dos cuidados medicamentosos a que têm direito.

Para o PCP não é defensável que continue a penalizar-se a população e a desbaratar os recursos do Serviço Nacional de Saúde e que se assista passivamente ao embolsar ilegítimo de recursos públicos pelos grandes interesses económicos.

Assim, o PCP apresenta o «Programa de redução dos gastos com medicamentos», onde se incluem diversas medidas de comprovada eficácia na redução e racionalização dos gastos com medicamentos, quer do SNS quer dos utentes.

As medidas apresentadas visam alterar diversos aspectos do regime de prescrição e de comparticipação que actualmente favorecem os medicamentos mais caros à custa dos utentes e do orçamento do SNS.

Assim, a prescrição médica em todo o Serviço Nacional de Saúde por substância activa, nome genérico ou denominação comum internacional, e a implantação de um Formulário Nacional de Medicamentos, acompanhada pelo desenvolvimento do mercado de genéricos e da função de farmácia no âmbito do SNS, significa uma poupança na ordem das dezenas de milhões de contos por ano e, simultaneamente, menos custos e mais comodidade para os utentes.

Finalmente, é incompreensível e inaceitável que existam medicamentos prescritos nos serviços do SNS cujo custo de comparticipação seja superior ao que se gastaria com a compra directa e dispensa aos utentes nos próprios estabelecimentos do SNS. Daí que a sua dispensa gratuita seja uma medida inadiável e com ganhos substanciais tanto para o SNS como para os utentes.

Sr. Presidente
Srs. Deputados

É possível reformar o Serviço Nacional de Saúde num sentido democrático, que aumente as garantias para o direito à saúde do povo português.

Com estas propostas dar-se-ão passos decisivos nesse sentido nas áreas em causa.

Estar do lado da defesa do SNS não é só dize-lo. É preciso tomar medidas concretas. A manutenção da situação actual e a degradação progressiva do SNS só aproveitam a quem o quer privatizar.

Por isso o PCP assume a defesa do Serviço Nacional de Saúde como fundamental para o bem estar e o progresso do nosso povo.

Disse.