Intervenção do
deputado Carlos Carvalhas
Interpelação ao Governo centrada
na defesa do Serviço Nacional de Saúde
e a política do Governo para o Sector
18 de Fevereiro de 1999
Senhor Presidente
Senhores Deputados
Senhores Membros do Governo
A questão da saúde é uma questão séria de mais para se deixar ao sabor de paixões, quer sejam elas serôdias ou pré-eleitorais.
Como é sabido o PCP tem vindo a alertar repetidas vezes para a gravidade da situação existente na área da saúde.
São os atrasos no atendimento de utentes.
São as enormes listas de espera, que só nas áreas clínicas consideradas prioritárias ascendem a um total estimado de cerca de oitenta e cinco mil doentes.
São os problemas com a qualidade e com a humanização da prestação de cuidados de saúde em muitas unidades e serviços.
É o crescente e cada vez mais incomportável recurso ao sector privado para obtenção de cuidados de saúde e para a utilização de meios complementares de diagnóstico, quando há capacidades instaladas não aproveitadas no SNS.
É a carestia dos medicamentos, e o preço especulativo que as multinacionais praticam em muitas especialidades farmacêuticas.
E, consequência de tudo isto, é a situação paradoxal em que nos encontramos: enquanto o país gasta com a saúde, em relação ao produto, acima da média da União Europeia, os portugueses são, entre os europeus, os que mais pagam directamente para a saúde, para além do que desembolsam através dos impostos (mais de 40% das despesas de saúde, em 1995, quando a média da UE não excedia os 25%).
O que motiva a interpelação que o PCP hoje dirige ao Governo, não é o repisar da descrição dos problemas existentes em muitos hospitais e centros de saúde, porque eles são, infelizmente, bem conhecidos e sentidos pelos portugueses. O que justifica e impõe esta interpelação é sobretudo o exame das razões porque esta situação tem permanecido no fundamental inalterada e as medidas necessárias para as ultrapassar.
Não nos move o propósito de obtenção fácil de dividendos eleitorais.
Como acontece com outros, que depois de terem sido responsáveis pela área da saúde durante quase década e meia, desde o VIº Governo Constitucional, só recentemente descobriram a sua "paixão" pelo sector.
E como se observa, igualmente, com o senhor Primeiro Ministro, que necessitou de quase uma legislatura para reconhecer, há poucos dias, no Congresso do PS, que a saúde deve constituir uma prioridade da acção governativa.
A postura e a posição do PCP são bem diversas.
Prosseguimos hoje aqui uma luta que travamos desde há muito tempo.
Uma luta contra as políticas neoliberais que têm procurado destruir o Serviço Nacional de Saúde - universal, geral e tendencialmente gratuito, como é proclamado pela nossa Constituição - e substituí-lo por um sistema puramente residual e caritativo de prestação de cuidados de saúde para os pobres, a par do fomento do mercado capitalista de prestação de cuidados de saúde para a restante população.
Uma luta contra a desresponsabilização do Estado no que respeita aos seus deveres básicos de garantir a protecção de saúde a todos os portugueses.
Uma luta contra os processos privatizadores na área da saúde, nas suas diversas modalidades, conducentes em linha recta a mais desigualdades e a mais discriminações sociais, e a um aumento incontrolado das próprias despesas com a saúde.
E um combate, iniciado há mais de seis anos, pela concretização de uma profunda Reforma Democrática dos Serviços de Saúde.
Uma reforma susceptível de reconduzir o Serviço Nacional de Saúde à filosofia e à inspiração democrática e humanista iniciais.
Capaz de o ajustar em relação às novas condições de progresso tecnológico e aos problemas que o crescimento dos custos e a evolução organizativa colocam, de forma a colocar novos e mais exigentes padrões de saúde à disposição de todos os portugueses e que valorize e dignifique os profissionais da saúde.
Ao longo da legislatura, o PCP reclamou insistentemente do actual governo uma verdadeira inversão da política neoliberal, de mercantilização da saúde e de destruição do Serviço Nacional de Saúde, conduzida nomeadamente pelos anteriores governos.
É um facto e por isso o reafirmamos que nos últimos anos foram apresentadas oficialmente orientações para alcançar ganhos em saúde para os portugueses e para afirmar o "papel estratégico essencial do sector prestador do Serviço Nacional de Saúde", que o PCP avaliou de forma positiva.
Mas apesar do dedicado empenho de muitos profissionais do sector e de inegáveis melhorias pontuais, o balanço da situação no terreno, no seu conjunto, não evidencia progressos.
Isto acontece porque apesar das orientações traçadas, o Governo continuou a não querer enfrentar, antes cedendo às pressões dos grandes interesses que disputam e absorvem o grosso dos recursos públicos disponibilizados para o sector - as multinacionais dos medicamentos e dos equipamentos, a área das convenções, os grandes grupos económicos empenhados na privatização da saúde.
E porque o Governo, em vez de privilegiar os interesses dos utentes, tem objectivamente deixado alastrar o autêntico cancro que é a promiscuidade entre o público e o privado no interior do Serviço Nacional de Saúde. Nada nos move contra a existência do sector privado, mas sim contra a utilização abusiva e desnecessária dos dinheiros públicos.
Desta forma não se vai para lado nenhum.
Foram necessários quase três anos e meio de mandato do Governo, e a marcação desta Interpelação pelo PCP, para que o Conselho de Ministros, na sua última reunião, tivesse finalmente aprovado diplomas relativos a questões tão essenciais como os centros de saúde e os sistemas locais de saúde. Mas questões como o sistema de qualidade, e outras importantes matérias, permanecem em longa fila de espera legislativa.
Quanto aos diplomas relativos às convenções e ao controle de preços de medicamentos comparticipados, seja pela modéstia dos objectivos visados pelo Governo, seja pela falta de vontade política para vencer as resistências opostas pelo sector privado, a verdade é que tudo ficou praticamente na mesma.
Os problemas do Serviço Nacional de Saúde não se compadecem com mais demoras, nem com mais hesitações.
E muito menos podem estar à espera da "paixão" que o Primeiro Ministro começou a prometer para a próxima legislatura, se for essa a vontade do eleitorado.
Em relação à resolução do problema das listas de espera é naturalmente importante que a Assembleia da República tenha aprovado o projecto de lei apresentado pelo PCP. Correspondendo a votação final ao que nós propusemos, isto significa que passará a ser imposta por lei a realização de um recenseamento rigoroso e actualizado dos utentes em lista de espera, ou seja, de todas as situações em que foram excedidos os tempos clinicamente aceitáveis. Significa ainda que será feita a avaliação da capacidade instalada do SNS em recursos humanos, infra-estruturas e equipamentos e a mobilização de todos os meios para a resolução sustentada do problema. Significa que passará a existir uma dotação orçamental adicional e própria para o efeito. E significa, ainda que o recurso a meios externos ao SNS terá apenas lugar em situações de insuficiência ou esgotamento da capacidade instalada. E significa, fundamentalmente, que com ele se poderá, finalmente, fazer face ao drama das listas de esperas.
E digo poderá fazer porque não é suficiente a existência de legislação para resolver uma situação que tem a dimensão e a gravidade que são conhecidas. É decisivo que o Ministério da Saúde assuma rapidamente a concretização do nosso projecto de lei como uma prioridade nacional e que acompanhe muito de perto as medidas de ordem prática indispensáveis à concretização dos objectivos nele afirmados.
Pela parte do PCP fazemos a proposta que a partir de Março passe a ser fornecida à Comissão Parlamentar de Saúde informação bimestral sobre o grau de concretização desses objectivos.
Compreendemos a Reforma do Serviço Nacional de Saúde como um processo complexo, desdobrado em objectivos múltiplos e faseado no tempo. Mas há questões fundamentais, como a do primado do interesse público sobre os interesses privados, que não podem deixar de ser frontalmente assumidas pelo Governo para que tenha verdadeiramente sentido falar-se na reforma de um serviço público, para mais numa área de tão decisiva importância social como é esta.
A este respeito é conhecido que o PCP assume a necessidade de se concretizar um plano de separação do público e do privado no SNS.
E reafirmamos a necessidade de serem urgentemente dados sinais e adoptadas medidas concretas, tais como: a alteração do sistema que permite o desenvolvimento de medicina privada no interior dos estabelecimentos públicos, em simultâneo com a introdução de modalidades remuneratórias que permitam fixar no SNS técnicos de elevada competência; o estabelecimento de um código de conduta que torne ilícito aos médicos do SNS o desvio de doentes para consultórios privados; e a garantia de gestão pública de todos os estabelecimentos públicos.
O Governo, ao fim de três anos e meio, que medidas tomou neste domínio? E que medidas práticas tem em vista e para quando a sua concretização?
Tomaria muito tempo a esta Assembleia abordar o problema dos medicamentos com o desenvolvimento que a importância da matéria exige.
Direi apenas, algo telegraficamente, que o país e os utentes não podem continuar à mercê de interesses ilegítimos das multinacionais de medicamentos, as quais não estão a actuar apenas como fornecedores, mas como entidades que simultaneamente e por diversas formas, influenciam de forma significativa o perfil de receituário dos serviços, conduzindo assim a um largo consumo de medicamentos desnecessários, ineficazes e dispendiosos.
Nós afirmamos que não são inevitáveis as sucessivas derrapagens orçamentais e o aumento da despesa com medicamentos, sem que isso se traduza em ganhos para a população, mas tão só em fabulosas margens de lucro para os interesses das multinacionais.
É sabido como o sistema actual de comparticipação de medicamentos e a forma como são prescritos favorecem os medicamentos mais caros e penalizam o SNS e os utentes.
Em praticamente todos os países da União Europeia estão em curso medidas visando a contenção de gastos com os medicamentos e nos últimos anos diversos países (Espanha, França, Itália, Holanda, p. ex.) têm vindo a tomar medidas no sentido de promover o mercado dos medicamentos genéricos.
O Governo, no seu programa, prometeu tomar medidas para incentivar a prescrição por princípio activo e para desenvolver o mercado de genéricos. Mas cedendo mais uma vez às multinacionais, limitou-se na prática a abrir a porta aos genéricos de marca, dificultando o efectivo desenvolvimento do mercado de genéricos.
Observe-se que o preço dos medicamentos genéricos é normalmente 20 a 30% mais baixo que os correspondentes de marca e que nos próximos 3 anos grande parte dos medicamentos com cotas significativas do mercado terão as patentes caducadas aumentando assim as possibilidades de aumento da quantidade de genéricos.
Por outro lado, a carestia dos medicamentos afecta cada vez mais os portugueses, que pagam do seu bolso uma parte cada vez mais significativa dos cuidados medicamentosos a que têm direito.
Não é defensável que continue a penalizar-se a população e a desbaratar os recursos do Serviço Nacional de Saúde e que se assista, passivamente, ao embolsar ilegítimo de recursos públicos pelos grandes interesses económicos.
Por isso o PCP apresentou publicamente um fundamentado "programa de redução dos gastos com medicamentos" onde se incluem diversas medidas de comprovada eficácia na redução e racionalização dos gastos com medicamentos, quer do SNS quer dos utentes.
E em que são apontadas medidas tais como: a prescrição médica em todas as unidades do Serviço Nacional de Saúde passar a ser feita pela substância activa; a implementação de um Formulário Nacional de Medicamentos; o desenvolvimento do mercado de genéricos e da função farmácia no âmbito do próprio SNS; a dispensa gratuita ou a preço simbólico aos utentes, após prescrição num estabelecimento do Serviço Nacional de Saúde dos medicamentos cuja comparticipação pelo Estado seja mais dispendiosa do que a sua dispensa gratuita.
Daqui fazemos uma pergunta ao Governo e deixamos um desafio. E estendemo-lo também às bancadas do PSD e do PP, que quando ouvem falar em redução dos gastos com medicamentos e em atingir interesses ilegítimos das multinacionais, fogem logo como o diabo da cruz.
Que medidas assumem, que medidas propõem para promover a urgente e efectiva racionalização dos gastos públicos e dos gastos dos utentes na área do medicamento?
E se não assumem qualquer intervenção significativa neste domínio, que explicação apresentam ao país para recusarem as medidas que o PCP propõe e que podem representar, para além da poupança directa no bolso dos utentes, uma poupança de dezenas de milhões de contos de recursos públicos por ano, o que permitiria, por exemplo, aumentar significativamente a comparticipação por parte do Estado de muitos medicamentos ?
Deixaria para último tópico a momentosa questão do aproveitamento integral da capacidade do SNS, que é quase sinónimo do não recurso a meios exteriores sem que esteja prévia e comprovadamente esgotada a utilização dos existentes nos serviços públicos.
Pois não constitui um absurdo que tantos dos nossos concidadãos suportem demoras que são absolutamente inaceitáveis do ponto de vista clínico; que tantos se queixem de dificuldades de acesso a serviços de saúde; que tantos exprimam críticas em relação à qualidade e à humanização dos serviços; ou que tantos se vejam empurrados para a prestação privada de cuidados de saúde, onde em muitos casos lhes exigem elevadas somas; quando existem muitos recursos humanos e materiais no Serviço Nacional de Saúde que estão longe de serem integralmente aproveitados ?
Põem-se aqui, evidentemente, questões que têm a ver com orientações e medidas, de natureza estruturante, ao nível do aperfeiçoamento da direcção e da gestão dos hospitais e dos centros de saúde, mas nós deixamos a sua discussão para o momento em que subir ao plenário da Assembleia o projecto de Lei-Quadro que o PCP aqui apresentou relativo à Administração e Gestão Democrática dos Centros de Saúde, Hospitais e Sistemas Locais de Saúde do SNS.
Mas isso não dispensa, em nosso entender, uma consideração do problema no curto prazo.
Daí a questão que colocamos ao Governo sobre as medidas implementadas e as que tenciona concretizar até ao final do seu mandato no sentido do aproveitamento do conjunto da capacidade instalada na rede de serviços do SNS.
O PCP tem apresentado propostas fundamentadas no domínio da política de saúde, cuja adopção já teria permitido há muito tempo travar a degradação do Serviço Nacional de Saúde, globalmente avaliada, e atingir uma efectiva melhoria da prestação de cuidados de saúde.
E tem ligado essas propostas à indispensável concretização de uma profunda reforma democrática do SNS, cujas linhas fundamentais foram oportunamente apresentadas.
É nossa convicção que a adopção destas medidas, inteiramente viáveis e cuja concretização poderia já ter sido iniciada, representaria uma rápida inversão no panorama actualmente existente no Serviço Nacional de Saúde. E criaria, ao mesmo tempo, condições muito favoráveis para as reformas de fundo que se impõem para a construção de um futuro com mais saúde para todos os portugueses.
É para contribuir para este propósito que aqui viemos interpelar o Governo sobre a situação existente na área da saúde. Dele reclamando que governe de acordo com os princípios constitucionais e legais que incumbem o Estado de concretizar o direito à saúde de todos os portugueses.
Em relação à campanha populista em torno dos problemas da saúde desencadeada por outros partidos, não nos deixamos impressionar.
Essa campanha constitui uma indecorosa tentativa de alijarem responsabilidades em relação aos problemas do SNS provocados pelas políticas que levaram a cabo durante o período que tiveram responsabilidades governativas. E representa uma operação contra o Serviço Nacional de Saúde e contra o direito à saúde que a sua existência visa assegurar.
Estamos certos que o povo português, que aspira por um moderno e reformado SNS, compreende bem o que está em causa. E que apoiará uma corajosa resolução dos problemas do SNS que estão cada vez mais na ordem do dia.