Intervenção da
deputada Odete Santos
Planeamento Familiar
10 de Fevereiro de 1999
Senhor Presidente
Senhores Deputados:
Debater o planeamento familiar é muito mais do que debater o estado dos serviços de saúde. Os próprios indicadores estritamente relacionados com o direito individual ao controle da própria fertilidade, servem, em última análise o objectivo de se saber o grau de realização dos direitos sexuais e reprodutivos, como autênticos direitos humanos de mulheres e homens. Mas sobretudo das mulheres. Porque são elas que suportam gravidezes indesejadas porque não planeadas. Porque são elas que se confrontam com o exercício abusivo do poder, por parte do Estado, que as priva da liberdade de consciência e do direito à dignidade. São elas que, nessa situação extrema, falhado o acesso aos métodos contraceptivos, ou perante a ineficácia dos métodos utilizados, sofrem a invasão da sua privacidade através do terror penal que deifica apenas a sua função reprodutora ao serviço de um Estado que desta forma lhes nega o direito de cidadania na sua componente do direito à igualdade.
O ainda recente referendo sobre o aborto contém dramáticos exemplos da forma autoritária como alguns se arrogam do direito de decidir sobre a saúde e a vida das mulheres.
E esta questão não pode cindir-se do debate sobre o controle da fertilidade por parte dos casais, por parte das mulheres, bem como não podem do mesmo ser cindidos todas as outras componentes dos direitos sexuais e reprodutivos, tal como foi estabelecido na plataforma do Cairo em 1994:
O direito à saúde sexual e reprodutiva como componente da saúde em geral durante toda a vida.
O direito a decidir em questões relacionadas com a fertilidade, como o direito à opção em matéria de formação de família e da determinação do número de filhos, e do momento do seu nascimento.
O direito à igualdade entre mulheres e homens para que as opções sejam livres e bem fundamentadas em todas as esferas da vida.
O direito à segurança sexual e reprodutiva incluindo o direito à ausência de violência e coacção sexuais e o direito à vida privada.
Os indicadores conhecidos quer a nível mundial, quer a nível nacional, indicam-nos que os direitos sexuais e reprodutivos, nos quais se inclui o direito ao planeamento familiar, não têm sido encarados, na sua efectivação, como verdadeiros direitos, e conhecem um elevado grau de irrealização.
O próprio planeamento familiar, a nível internacional, é encarado muito mais como uma forma urgente de resolver os problemas da segurança alimentar do planeta, do que como um direito das mulheres e homens à autodeterminação na esfera da saúde sexual e reprodutiva.
Ora, o planeamento familiar só, passará a ser um direito quando, sem constrangimentos, sem o constrangimento da fome, por acumulação das riquezas nas mãos dos senhores do mundo, mulheres e homens possam decidir do momento da procriação. E não quando os mais pobres carreguem sobre os ombros a tarefa de garantir a segurança alimentar dos ricos.
O planeamento familiar só passará a ser um direito quando, sem os constrangimentos do mercado de trabalho, mulheres e homens posam ter os filhos que desejam sem por em risco a sua carreira profissional.
Só passará a ser um direito quando um filho não representa mais um fardo que sobrecarrega orçamentos familiares, colocando em risco o agregado familiar.
Só passará a ser um direito quando, por via da função biológica da maternidade, as mulheres não sofram constrangimentos; quando através delas não se perpetue uma forma de desigualdade entre os seres humanos, a juntar a tantas outras que discriminam homens e mulheres.
Só passará a ser um direito quando deixar de ser, como ainda é para alguns um meio de controlo da população destinado a garantir o desenvolvimento sustentado de meia dúzia.
Quando o progresso científico esteja nas mãos dos povos para desenvolver os recursos do planeta.
Quando as baixas taxas de natalidade que se verificam, por exemplo, na Europa, não possam ser assacadas a razões referidas no Inquérito à Fecundidade e Família - 1997 do Instituto Nacional de Estatística.
É, de facto verdade, o que consta dos resultados preliminares desse Inquérito.
Desde 1982 a população portuguesa deixou de assegurar a substituição de gerações - média de 2,1 crianças por mulher - atingindo em 1997 o nível de 1,5 crianças por mulher, um dos mais baixos da Europa.
Segundo tais resultados preliminares as causas da quebra da fecundidade devem-se:
À evolução para uma sociedade altamente competitiva, com uma filosofia de vida global em que se foi evidenciando a necessidade de realização material, pessoal ( afirmação ,profissional) e social do indivíduo.
À progressiva emancipação da mulher, com o seu gradual acesso aos diversos níveis de ensino e integração crescente no mercado de trabalho, com a consequente procura de realização profissional.
Ao facto de, neste contexto, interligado com o desenvolvimento económico e a transformação das estruturas produtivas, a criança não ter mais um elevado valor como factor produtivo no âmbito da actividade económica familiar para passar a representar objectivamente um custo significativo e um factor negativo na procura da realização profissional e material pelos progenitores.
À alteração das crenças e dos valores através dos tempos.
O simples enunciado destas causas logo nos indica claramente que o neoliberalismo, como outrora o liberalismo, contrapôs à conquista de direitos individuais, nomeadamente dos direitos de cidadania das mulheres, todo o negativismo resultante da exploração dos seres humanos a todo o custo.
Transformando a maternidade e a paternidade num objectivo fora do horizonte, para muitos.
Os dados do inquérito à fecundidade revelam que a quebra da fecundidade se deve a mais do que um factor, e não apenas aos avanços de facto conseguidos) a nível do planeamento familiar.
De facto, a elevação da idade média do casamento, o aumento da taxa de divorcialidade, e do número de famílias monoparentais e mesmo unipessoais, mostram que por alguns dos motivos atrás indicados, se foi fazendo planeamento familiar não em benefício da saúde sexual e reprodutiva , não como um direito, mas à custa desse mesmo direito.
À custa do direito à felicidade.
E se é certo que os resultados preliminares desse inquérito revelam avanços no uso de métodos contraceptivos modernos, a verdade também é que não pode deixar de impressionar o peso do uso do preservativo masculino relativamente à pílula.
Que indiciando os reflexos da necessidade de prevenção do vírus da imunodeficiência adquirida, mostram também as dificuldades que se continuam a colocar aos jovens no acesso a consultas de planeamento familiar e ao fornecimento de meios contraceptivos gratuitos.
Sabido como é que Portugal continua a ter uma das mais altas taxas de gravidezes adolescentes da Europa, há muito que se impõem medidas que nem o Governo do PSD nem o actual Governo tomou, para prevenção da saúde sexual e reprodutiva dos jovens.
A lei sobre educação sexual, matéria em que o PCP foi pioneiro, já é de 1984. E pode dizer-se que não existe educação sexual nas escolas. Se tabus e crenças vão sendo arredados na sociedade, a verdade é que aqueles e estes ainda se movem.
Por que não foi implementada na disciplina de desenvolvimento pessoal e social a educação sexual? Porque razão é que esta disciplina não existe na maioria das escolas, mesmo naquelas onde há alunos que optam pela mesma?
Por que foi preciso o abanão dos Projectos de lei do PCP sobre interrupção voluntária da gravidez para, de súbito, mesmo os que no passado se opuseram à educação sexual e ao planeamento familiar descobrirem que era só essa a solução.
Não. Não é só essa a solução. E os dados do inquérito à Fertilidade dizem-nos que essa não pode ser a resposta exclusiva. Mas por ora importa que se diga que tendo sido anunciado pelo Senhor 1º Ministro, na campanha eleitoral, que a educação era a sua paixão, temos de concluir, face ao atraso anunciado da efectivação da lei, que se tratava de uma paixão platónica, irrealizável, geradora de frustrações. Imposta, quiçá, pelos métodos naturais da regulação dos nascimentos.
Face à realidade retratada ainda que em esboço, no Inquérito à Fertilidade, entendemos ser urgente a implementação da educação sexual nas escolas, a própria execução de uma política de planeamento familiar no âmbito da disciplina em que a mesma for ministrada, a distribuição de preservativos aos jovens a preços reduzidos ou até gratuitamente. Entendemos ser urgente garantir aos jovens o direito à privacidade e à confidencialidade no acesso aos cuidados da saúde sexual e reprodutiva. O direito a investimentos que lhes garantam direitos humanos básicos.
Direitos humanos que exigem também relativamente aos adultos uma política de saúde que definitivamente encare o direito à saúde sexual e reprodutiva coo fazendo parte dos cuidados primários de saúde.
A verdade, é que muitas mulheres não têm acesso a contraceptivos gratuitos, mesmo nos centros de saúde, porque recorrem à consulta no âmbito da medicina geral.
A verdade é os Centros de Saúde lutam com falta de meios humanos e o planeamento familiar faz-se à custa do esforço acrescido dos profissionais. A verdade é que as mulheres perdem o direito à remuneração e a prémios de assiduidade e de produtividade para irem às consultas de planeamento familiar.
A verdade também é que nem os avanços científicos se encontram ao dispor das mulheres nos centros de saúde.
A contracepção de emergência, aquela que com elevada taxa de eficácia evita o recurso ao aborto não existe nos centros de saúde.
Sendo um método contraceptivo, já disponível no mercado pela combinação de diversas pílulas, entendemos ser necessário organizar os centros de saúde por forma a que as mulheres possam recorrer àquele método, que lhes evitará na maioria dos casos, a queda nos meandros do aborto clandestino com todo o rol de indignidades em que se encontra bem colocada a indignidade do Estado.
Apesar das reservas colocadas no Inquérito à Fecundidade, dado o melindre sentido pelos inquiridos na resposta às questões colocadas, afirma-se no Relatório preliminar que os valores obtidos relativamente ao número de abortos, apesar de eventualmente subavaliados indicam que entre 10% a 40% das gravidezes ocorridas entre os 35 e os 44 anos terminaram em interrupção voluntária da gravidez. E depois dos 45 anos em cada 100 gravidezes quase 70 acabaram em aborto.
E ainda segundo o referido inquérito os ratios mais elevados são obtidos até aos 19 anos. Em cada 1000 gravidezes ocorridas entre os 15 e os 19 anos, cerca de 100 terminam em interrupção voluntária da gravidez.
E termina o Relatório preliminar do inquérito:
Existindo gravidez a IVG continua a constituir, no entanto, um último recurso, no caso de não se pretender ter o filho.
Estas, com outras razões já sabidas e consabidas determinam o PCP a apresentar, na próxima legislatura, o seu Projecto de Lei sobre a despenalização do aborto a pedido da mulher.
Senhor Presidente
Senhor 1º Ministro
Senhores Deputados
Sendo o planeamento familiar um direito, indissociável das várias vertentes dos direitos sexuais e reprodutivos como atrás enunciei, importará deixar, ainda que de forma telegráfica, algumas questões:
Como pode o Governo garantir aqueles direitos quando se apresta para fazer aprovar um diploma que colocará nomeadamente as mulheres na situação de trabalhadoras a tempo parcial, com salário reduzido, aumentando a taxa de feminização da pobreza? O direito à adopção de decisões em questões que têm a ver com a saúde reprodutiva, não passará de um mero simulacro de direito.
Como pode o governo garantir o direito à liberdade de decisão se se apresta para aprovar um diploma segundo o qual será descontado nas férias o tempo utilizado nas consultas médicas, para acompanhamento dos filhos, para acesso ao planeamento familiar?
Como, pode o Governo garantir este direito se a maioria das mulheres portuguesas continuam a ocupar a enorme faixa da população portuguesa ( 80%) que se fica pelo ensino básico?
Como quer o Governo garantir a segurança sexual e reprodutiva, se passados 4 anos ( a acrescer aos 4 anos do governo do PSD) ainda não regulamentou a lei que estabelece uma protecção especial às mulheres vítimas de crimes violentos que tendo sido aprovado por unanimidade, surgiu, sem qualquer alteração de um Projecto de Lei do PCP?
Quando pensa o Governo pôr em execução a lei que garante os alimentos devidos a menores nascido de um Projecto de Lei do PCP?
Como pode o Governo garantir a igualdade entre mulheres e homens se toda a sua política na área laboral assenta na mis feroz desregulamentação do trabalho.
Ou seja, e em conclusão:
Como pode o Governo garantir os direitos sociais e reprodutivos se a sua política assenta na desresponsabilização do Estado relativamente às funções sociais?
Disse.