Regulamentação das técnicas de procriação
medicamente assistida
Intervenção do deputado Bernardino Soares
4 de Junho de 1998
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
A evolução da ciência e da técnica na área da reprodução medicamente assistida
é provavelmente um dos mais fascinantes caminhos percorridos pela Humanidade
nas últimas décadas.
Desde 1978 vivemos na época pós Lousa Brown, primeiro bebé proveta, em que a
procriação medicamente assistida passou a ser uma hipótese real e praticável.
E isto é inegavelmente progresso! Progresso no conhecimento, na busca constante
de uma maior proximidade da verdade científica. Progresso na diminuição do sofrimento
e das dificuldades do Homem, o que é afinal o objectivo de toda a evolução científica.
Por isso, a investigação científica é em si um facto positivo e deve ser estimulada.
O que não significa que nos devemos conformar em absoluto com as novas realidades
que a investigação científica e técnica nos proporciona. O avanço científico
deve ser avaliado passo a passo, à luz dos princípios que perfilhamos, o que
é bem diferente de limitar a priori a busca de novas respostas e novas soluções.
A história da Humanidade fez-se sempre, e continuará a fazer-se, do aproveitamento
do progresso científico e técnico, que é progresso humano, em prol da Humanidade,
da resolução dos seus problemas e da melhoria das suas condições de vida.
A procriação medicamente assistida encerra em si mesma enormes potencialidades,
nomeadamente na resposta ao problema da infertilidade.
A infertilidade é um problema de saúde grave. E tanto mais grave quanto mexe
com um dos maiores e mais fortes desejos dos homens e das mulheres - o de serem
pais e mães - e que quando não é concretizado tantas vezes torna mais difícil
a felicidade. É um problema de saúde que deve ter tratamento adequado. O tratamento
da infertilidade não é, ou não deve ser, encarado como um capricho, como algo
de supérfluo ou acessório. O tratamento médico da infertilidade é um direito,
que é o mesmo que dizer que, a par de outras formas de tratamento, o recurso
à procriação medicamente assistida deve ser garantido a quem sofre daquela patologia.
O acesso às técnicas de procriação medicamente assistida é hoje claramente discriminatório,
já que há poucos estabelecimentos em que se pratiquem estas técnicas, sendo
que, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde as carências são ainda maiores.
Na Maternidade Alfredo da Costa as inscrições para recurso às técnicas de reprodução
assistida estão fechadas e há já intervenções programadas até ao ano 2002. Noutros
estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde as listas de espera são igualmente
consideráveis. Quer isto dizer que em grande medida o recurso a estas técnicas
está limitado a quem possa pagar várias centenas de contos nas instituições
privadas.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
A proposta de lei tem pelo menos a virtude de criar um quadro de regras, de
que a nossa legislação carece, para a utilização das técnicas de procriação
medicamente assistida.
Mas isto não quer dizer que todas as soluções preconizadas pela lei sejam as
mais correctas. É o caso da limitação dos beneficiários destas técnicas às pessoas
que vivam em situação conjugal. Se a reprodução assistida é uma terapêutica
para responder à questão da infertilidade, por que se excluem as mulheres que
não vivem em situação conjugal? Não sofrem de um problema de infertilidade?
Não têm o direito de procriar e constituir família?
Provavelmente os defensores da solução da proposta de lei argumentam com a prevalência
do direito à identidade do indivíduo nascido fruto da utilização destas técnicas.
Neste caso, contudo, estão igualmente em causa outros direitos fundamentais,
que são o direito à saúde da mulher e o seu direito a constituir família.
É que com o alargamento do conceito de família que se tem produzido na nossa
sociedade ele abrange hoje a família monoparental.
E é real a multiplicação de situações de monoparentalidade nos dias de hoje.
O próprio regime da adopção, em que notoriamente o principal interesse a proteger
é o da criança, permite a adopção por indivíduos singularmente considerados,
sem que nessas situações se possa concluir que está menos acautelada a protecção
da criança.
Também o Código Civil, ao prever a investigação da paternidade confina a possibilidade
de propor acção com esse fim a um período de tempo relativamente limitado e
logo não atribui ao conhecimento da paternidade um valor absoluto.
Portanto, o direito do indivíduo à historicidade pessoal não incluí obrigatoriamente
o conhecimento da paternidade sem que com isso fique beliscado o seu direito
à identidade.
A verdade é que existem muitas mulheres que optam por ter filhos fora de situações
conjugais ou similares, mesmo sem recorrerem à reprodução assistida e hoje inaceitável
sujeitá-las a qualquer condenação ou ostracismo, muito menos a uma menoridade
imposta por lei.
Não há portanto nenhuma razão para a limitação do acesso, no exercício do seu
direito à saúde, de uma mulher às técnicas de procriação medicamente assistida
apenas porque não vive em situação conjugal.
A proposta de lei proíbe igualmente, não só a criação deliberada de embriões
para fins de experimentação, mas qualquer utilização de embriões para a investigação
científica. Quer isto dizer que, na difícil regulação do destino a dar aos embriões
excedentários que não sendo deliberadamente criados existirão inevitavelmente,
a lei visa excluir a hipótese da sua utilização para fins de investigação.
É uma solução diversa da adoptada por várias outras legislações na Europa como
a alemã, a francesa, a espanhola, a inglesa, a italiana ou a dinamarquesa, que
admitem, em diferentes extensões e com diferentes requisitos, a investigação
em embriões, nomeadamente os supranumerários ou inviáveis.
De resto a proposta do Governo não regula o que fazer nos casos de embriões
inviáveis ou em que não haja consentimento dos beneficiários nem autorização
do tribunal para a sua utilização noutros destinatários.
É preciso dizer que esta proposta, caso seja aprovada na generalidade, carece
de aturado debate e ponderação na especialidade.
A ponderação a fazer das soluções que finalmente acabem por vigorar deve ter
como pano de fundo a vantagem para a humanidade dos avanços científicos e técnicos,
que não é contraditória com a sua regulação por princípios justos.
O que é preciso garantir é o caminho sem temores para o progresso e para uma
vida melhor para homens e mulheres.
Disse.