Declaração política verberando a política de saúde do Governo
Intervenção de Bernardino Soares
23 de Fevereiro de 2006

 

 

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Os últimos dias e semanas têm sido especialmente ricos em debates sobre o Serviço Nacional de Saúde. As recentes declarações do Ministro da Saúde procurando abrir caminho a um crescente pagamento dos cuidados de saúde, através do chamado pagamento diferenciado, não podem ser consideradas uma surpresa. De facto, elas correspondem a uma linha fundamental da política deste Governo que segue sem alterações a filosofia do governo anterior.

O Governo tem uma política de saúde contrária à Constituição, senão vejamos.

A Constituição fala em Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito; o Governo pretende que ele seja tendencialmente pago.

A Constituição fala em cobertura racional e eficiente de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde; o Governo promove o encerramento e a restrição do funcionamento de unidades em todo o país.

A Constituição fala em orientar a acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos; o Governo transfere cada vez mais, nos medicamentos e noutros cuidados, os custos para os utentes.

A política do Governo está orientada para a degradação do Serviço Nacional de Saúde e dos seus serviços vários; para a privatização de áreas fundamentais, como serviços hospitalares, centros de saúde e outros, e dos novos hospitais; para a desresponsabilização do Estado nos custos de saúde; para a imposição de uma política economicista e subordinada ao défice na saúde.

A questão da diferenciação dos pagamentos é disso um bom exemplo. Foi, aliás, aplaudida pela Direcção do CDS-PP, que «regista como interessantes as ideias recentemente proferidas pelo Ministro da Saúde sobre a hipótese de encarar, no futuro, uma mudança do modelo de financiamento da saúde». Com elogios destes da Direcção do CDS-PP, como é que não podemos qualificar esta política do Governo como de direita?

Esta medida é, desde logo, inconstitucional, porque não se pode transformar o tendencialmente gratuito da Constituição em tendencialmente pago.

É socialmente injusta num país onde os utentes já suportam mais de 30% dos custos com a saúde, sendo certo que isso é tanto mais grave quanto somos o país com um dos mais baixos rendimentos da União Europeia.

É duplamente injusta porque repetiria a injustiça que todos reconhecem existir no sistema fiscal, onde os trabalhadores por conta de outrem já suportam a maior fatia da carga fiscal, o que passaria a acontecer também no serviço de saúde.

É errada, do ponto de vista da política de saúde, porque penaliza mais os que mais doentes estão.

É uma porta aberta a uma cada vez maior redução do acesso aos serviços públicos a uma faixa residual da população, com a desprotecção da restante e a inevitável degradação dos mesmos.

É uma medida de favorecimento do mercado privado, uma vez que empurraria os utentes penalizados para os «braços» dos seguros de saúde e similares, se para isso tivessem recursos.

É uma medida que não afecta os mais ricos porque estes ou não vão aos serviços públicos ou, se forem, não lhes pesa o aumento de forma significativa.

É uma medida demagógica porque pretende apresentar-se como equitativa, quando afinal o que traduz é, mais uma vez, a desresponsabilização do Governo perante a impunidade fiscal dos que mais têm. O que nos deve preocupar não é que os ricos não paguem a saúde, é que os ricos não paguem os impostos!!

O que dirão então os Deputados do Partido Socialista sobre esta anunciada intenção de o seu Governo se preparar para fazer aquilo que a direita não conseguiu.

Mas a política do Governo não ataca só os utentes e as populações! A política do Governo, debaixo de uma capa de aparente coragem e determinação, cede em toda a linha aos interesses privados dominantes!!

O recente acordo com a Indústria Farmacêutica é disso um bom exemplo.

O Governo fez a sua propaganda: que tinha conseguido convencer a indústria a reduzir o crescimento da despesa, a comprometer-se a uma devolução do excedente de crescimento, etc., etc. A realidade é, contudo, bem diferente: o protocolo assinado é uma verdadeira capitulação perante a Indústria Farmacêutica.

Anuncia-se que pela primeira vez está abrangido o mercado hospitalar, mas todas as empresas ficam com a opção de excluir esse mercado e de aderirem apenas ao acordo na parte do ambulatório.

Anuncia-se um crescimento de 0% para 2005, um crescimento igual ao crescimento do PIB em 2006 na despesa no ambulatório e a devolução do excedente ao Estado nos casos de maior crescimento. Parece um verdadeiro «bodo aos pobres». Mas será assim?

Desde logo se percebe que 2008 e 2009 serão ainda piores.

Mas em 2006 a comparação far-se-á não com a efectiva despesa com medicamentos, mas apenas com os encargos com a comparticipação. Ora, todos sabemos que o Governo restringiu em 2005, e vai continuar a restringir em 2006, as comparticipações, isto significa que a um real crescimento da venda de medicamentos irá corresponder um crescimento nominal de zero ou próximo disso, uma vez que o termo de comparação é com as comparticipações e não com o crescimento real dos medicamentos. Claro que quem sai prejudicado é o utente.

Mas pensarão alguns que mesmo assim é positivo, que pode haver alguma devolução. Estão enganados se pensam que ela é total, porque, afinal, é de apenas 69,6% do eventual acréscimo.

Será ainda alguma coisa, dirão os mesmos. Só que há ainda um outro limite, isto é, a devolução não pode exceder os 35 milhões de euros em qualquer caso.

Ainda é dinheiro, dirão novamente os mesmos. Só que essa verba não é abatida à dívida do Estado à Indústria Farmacêutica, nem vai para o financiamento do Serviço Nacional de Saúde. Não, ela reverte obrigatoriamente para um fundo de apoio à investigação científica. Para apoiar quem? Já adivinharam: a Indústria Farmacêutica.

Mas há mais: está previsto que esta devolução, que é para depois receber adiante, seja considerada para efeitos fiscais. Essa é, aliás, uma das condições que, a não ser cumprida, extingue todas as obrigações da Indústria Farmacêutica. Isto é, a indústria devolve, recebe novamente e daquilo que supostamente devolveu ainda beneficia, em temos fiscais, para abater aos seus lucros e pagar menos impostos.

Outra proibição, que aliás faz suspender qualquer das cláusulas deste contrato, é a de o Governo não poder, até 2009, tomar qualquer medida no sentido da baixa de preços dos medicamentos.

Mas há muitas outras, e graves, questões.

No mercado hospitalar assume-se um crescimento de 4% sem qualquer referência de base e que será determinado — imaginem!... — a partir apenas das informações das próprias empresas da Indústria Farmacêutica.

Vai estabelecer-se um novo regime de preços que encarecerá os novos medicamentos. Por um lado, introduz-se um novo país de referência, a Grécia, para juntar à Itália, à França e à Espanha, e está por provar que os preços na Grécia sejam mais baixos do que nos outros três países. Seja como for, outra grande diferença é que o preço deixa de ser o mais baixo dos países de referência para passar a ser a média dos países de referência, isto é, o preço vai ser mais caro do que era até aqui, os novos medicamentos vão ser mais caros.

Quanto aos preços dos genéricos, apesar de o Governo se ter queixado tanto, nesta Assembleia, de serem altos, permite agora um novo escalão em que a diferença em relação aos preços dos medicamentos de marca não precisa de ser de 35% para baixo e já pode ser apenas de 20%. Pelos vistos, os genéricos deixaram de ser, para o Governo, uma preocupação por serem dos mais caros da Europa.

O Estado compromete-se ainda — pasme-se! — a promover os medicamentos sem receita médica, coisa muito do agrado, aliás, da Indústria Farmacêutica. E o Presidente da Apifarma já avisou que a seguir há que rever as comparticipações, solicitando igual colaboração do Governo. Bem o compreendemos...!

De facto, este acordo é um verdadeiro euromilhões para a Indústria Farmacêutica, é um acordo que lhe garante receitas para o presente e para o futuro, com a completa subordinação do interesse público ao interesse privado; é um acordo que tem de ser denunciado a bem da defesa do interesse público e da idoneidade dos negócios do Estado!