Revogação das taxas moderadoras
Intervenção de Bernardino Soares
6 de Janeiro de 2006

 

 


 

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

 

 

Com a iniciativa que hoje discutimos, a que propõe a revogação das injustamente chamadas taxas moderadoras, o PCP dá cumprimento a um dos seus compromissos eleitorais.

O fim das taxas moderadoras é uma medida de inteira justiça do ponto de vista social. E é também uma medida que vai ao encontro do Serviço Nacional de Saúde universal, geral e tendencialmente gratuito previsto na Constituição.

É aliás muito esclarecedor relembrar no início da aplicação das referidas taxas, a justificação com que foram impostas, bem como a alteração constitucional que transformou o Serviço Nacional de Saúde de gratuito em tendencialmente gratuito.

As taxas foram sempre apresentadas como um instrumento para moderar consumos excessivos de cuidados de saúde. Mas na verdade as taxas moderadoras não se destinam a moderar qualquer consumo excessivo de cuidados de saúde, mas sim a introduzir um princípio de pagamento em matéria de acesso aos cuidados de saúde, constituindo mais uma forma de transferir custos para o utente.

Na generalidade das situações não há nenhum consumo excessivo de cuidados de saúde. O que há é o recurso à resposta possível no sistema de acesso. Não tão falada questão das “falsas urgências”, do que se trata não é de um recurso leviano ou extemporâneo às urgências hospitalares, mas sim de uma consequência da falta de resposta ao nível dos centros de saúde, quer em médicos de família, quer em adequados meios de diagnóstico.

E quando o Governo anuncia a possibilidade de aplicação de uma taxa acrescida nas ditas “falsas urgências” nos hospitais, ao mesmo tempo que está a promover o encerramento sistemático de urgências em centros de saúde e hospitais mais periféricos, com evidentes propósitos de mera poupança na generalidade das situações, obrigando os utentes a concentrarem-se ainda mais nas urgências hospitalares, está a anunciar afinal mais um agravamento nos custos de acesso aos cuidados de saúde.

A existência de taxas moderadoras e o seu aumento vai contra o princípio constitucional de acesso à saúde, mesmo na versão resultante da revisão constitucional de 1989, que transformou o carácter gratuito em tendencialmente gratuito, o que aliás esteve ligado à introdução das taxas moderadoras no nosso sistema.

É aliás muito curioso relembrar o que então PS e PSD disseram sobre esta tendencial gratuitidade.

Dizia então o Partido Socialista: “Trata-se de qualquer coisa que caminha para a gratuitidade, em que há as tais taxas moderadoras, mas esperamos que elas sejam, um dia, definitivamente abolidas e o Serviço Nacional de Saúde seja na realidade gratuito.”. Ou ainda noutro ponto: “Já se explicou que o nosso entendimento é que aquilo que é gratuito não anda para trás; aquilo que ainda não é gratuito tenderá a sê-lo.”.

Foi o que se viu. Afinal em vez de caminhar no sentido da gratuitidade o que se tem é caminhado cada vez mais no sentido do pagamento.

O Governo PSD/CDS-PP aplicou em 2003 um brutal aumento destas taxas moderadoras, que para as consultas e urgências, seja em hospitais, seja em centros de saúde, se cifrou num acréscimo entre 30% e 40%. Para além disso aumentou o número de actos sujeitos a taxa, que passaram de 140 para 360, o que aliás o actual Governo deixou intocado.

O Governo PS prepara-se agora para em 2006 aumentar mais uma vez de forma significativa as taxas moderadoras, como se vê pela previsão de aumento dessa receita, inscrita no orçamento para 2006, em mais de 9%, perspectiva aliás já confirmada pelo Governo.

E é preciso não esquecer que estamos num país onde os cidadãos suportam directamente, para além do que pagam através dos impostos, uma parte importante das despesas em saúde, entre 30% e 40%, num nível aliás acima da média da União Europeia a 15, que assume maior gravidade se considerarmos o baixo nível de rendimentos do nosso país e o enorme fosso entre os mais ricos e os mais pobres que também entre nós se verifica.

Acresce que nos últimos anos têm crescido as despesas dos utentes, fruto de políticas que, como acontece com a do actual Governo, transferem cada vez mais, numa perspectiva de contenção cega da despesa pública em saúde, os custos para os utentes. Assim acontece com o aumento das taxas moderadoras, mas também com a política do medicamento, em que o Governo se prepara agora, a partir de Junho para pôr fim à majoração de 25% de comparticipação para os utentes do regime especial.

As taxas moderadoras acentuam esta realidade por terem um efeito perverso em função da desigualdade social. É evidente que a taxa moderadora pesa mais no orçamento de quem ganha o salário mínimo nacional ou está desempregado, do que no daqueles que têm um orçamento mais abastado.

E para além disso a taxa moderadora acaba por penalizar aqueles que, por razões da sua situação de saúde, mais têm de recorrer aos serviços de saúde, desde que não estejam abrangidos por uma situação de isenção.

Mas não se pense que uma qualquer solução de taxas diferenciadas em função do rendimento declarado introduziria mais justiça. É que essa medida transportaria para os pagamentos em saúde a injustiça que já temos no sistema fiscal.

Um especialista em política de saúde, o Prof. Correia de Campos, dizia até em Setembro de 2004 perante a proposta do anterior ministro de introdução de taxas diferenciadas: “é uma loucura transformar as taxas moderadoras em financiadoras” pois “o Estado tem interesse social e económico na saúde pública”.

A medida acertada para este problema é na verdade a abolição das taxas moderadoras.

Elas não moderam, antes impedem alguns cidadãos de ter acesso a certos cuidados de saúde; elas agravam desigualdade social e são discriminatórias ao penalizarem de forma acrescida os mais desfavorecidos; elas são injustas porque tanto taxam os que recorrem por necessidade aos serviços de saúde como os que eventualmente usem indevidamente esses serviços. Não cumprem por isso o objectivo anunciado. Elas são afinal taxas financiadoras, destinando-se a introduzir um princípio de pagamento dos cuidados de saúde e a transferir para os utentes uma fatia, cada vez maior, dos custos com a saúde.

Para além disso está por avaliar o custo da estrutura que em permanência se entrega à cobrança destas taxas e de todos os seus procedimentos, mas não é difícil adivinhar que ela absorverá certamente uma parte significativa da receita gerada.

Nem se diga que se trata de um instrumento generalizado em todos os países da União Europeia, uma vez que ela não existe em muitos deles, como a Alemanha e a Dinamarca, e naqueles em que existe, o nível de rendimento dos cidadãos é muito mais elevado do que no nosso país.

Muito menos se invoque o descalabro financeiro nas receitas do SNS. As taxas são apenas 0,5% da receita total do SNS, ou dito de outra forma, um terço da verba que o Estado vai transferir este ano para o Grupo Mello no Hospital Amadora Sintra.

As taxas existentes não são pois moderadoras de consumos excessivos, nem se quer se reduzem a uma contribuição simbólica para o utente. Muitas delas já atingem aliás valores que serão proibitivos para muitos utentes e suas famílias.

Revogar as taxas moderadoras é uma medida de justiça social, de boa gestão em saúde e vai de encontro ao princípio constitucional da tendencial gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde. O que não é aceitável é defender que a tendencial gratuitidade significa pagar cada vez mais, como pretende fazer o actual Governo.

Disse.

(...)

Sr. Presidente,

Antes de mais, agradeço aos Srs. Deputados Vasco Franco e Carlos Miranda as questões que me colocaram.

Em primeiro lugar, penso que não ignoramos, na nossa intervenção, nem no preâmbulo do nosso projecto de lei, que há isenções das taxas moderadoras, há um conjunto, uma fatia da população que está isenta.

Agora, Srs. Deputados, há um grande número de cidadãos deste país, com rendimentos muito baixos, que não estão isentos e pagam as taxas moderadoras. Portanto, o problema não deixa de existir pelo facto de haver algumas isenções, justas, e porventura até, por exemplo, no âmbito das doenças crónicas, aquém daquilo que seria necessário, como, aliás, tem sido objecto de consenso.

Depois, em relação às despesas directas dos cidadãos, quero ainda dizer que eles pagam tudo, porque aquilo que é despesa pública é também pago pelos cidadãos através dos impostos. E isto é um indicador da transferência de custos para os cidadãos e da diminuição da protecção pública no acesso à saúde. Este indicador é que é fundamental neste debate, porque aquilo a que assistimos, com políticas de sucessivos Governos, é a um crescente «atirar» de custos para os cidadãos. Ainda agora, com o Governo do Partido Socialista e a política do medicamento, isso é absolutamente nítido.

Diz o Sr. Deputado Vasco Franco que isto é pouco no orçamento do Serviço Nacional de Saúde. É verdade!

Mas, sabe, Sr. Deputado, é muito no orçamento de muitas famílias e é esta a preocupação que está na base deste projecto. É que, sendo pouco para o Serviço Nacional de Saúde, é muito para muitas famílias e constitui um encargo que devia ser eliminado.

Depois, nenhum dos Srs. Deputados contestou uma coisa: estas taxas ditas moderadoras não moderam.

Ninguém consegue afirmar de boa-fé que é a existência destas taxas que impede eventuais abusos.

Não é verdade! As pessoas não recorrem às urgências hospitalares porque lhes apetece — pode haver um caso ou outro —, mas porque não têm resposta noutros serviços.

E se o Governo concretizar a linha de encerramento de urgências nos centros de saúde e em alguns hospitais, que já anunciou, teremos mais gente concentrada nas urgências dos principais hospitais. É por isso que os senhores querem instituir uma taxa diferenciada nessas urgências, para, aproveitando a concentração nesses serviços, aumentar o pagamento por esses utentes e penalizar ainda mais aqueles que precisam dos cuidados de saúde.

Sr. Deputado Carlos Andrade Miranda, para terminar, quero fazer-lhe uma pergunta: sabe qual foi o período em que se registaram mais ganhos em saúde no nosso país? Foi entre 1975 e 1980.Risos do PSD.

Foi a seguir à Revolução de Abril, com a instituição do Serviço Nacional de Saúde na prática, do serviço médico à periferia, com a abertura de muitas unidades. Com todo esse esforço que se seguiu à Revolução de Abril, junto com a melhoria das condições de vida, dos salários e com a melhoria das condições de habitabilidade para muitas famílias, deu-se o grande salto em matéria de ganhos em saúde. Depois disso continuou a avançar-se — mal seria, Sr. Deputado! — mas, na verdade, a um ritmo bastante mais lento.

E temos ainda muito para progredir.

Sr. Deputado, termino lendo-lhe o que o seu partido também disse na tal discussão sobre a introdução do carácter tendencialmente gratuito no Serviço Nacional de Saúde. Disse nessa discussão a então Deputada Assunção Esteves — não sei se a conhece — que «há uma tendência para o serviço de saúde gratuito ». É só isso! Não há nenhum retrocesso mas, sim um avanço. Pois é esse avanço que queremos hoje consagrar na prática, não já só nas belas palavras do PS e do PSD mas também na lei portuguesa, no ordenamento jurídico português, revogando as taxas moderadoras, que não servem para moderar nada, servem apenas para penalizar as pessoas que precisam dos cuidados de saúde.

(...)

Sr. Presidente,

Muito brevemente, dadas certas inconsistências que a Sr.ª Deputada Teresa Caeiro aqui tentou apontar, vou referir-me em concreto a uma suposta inconsistência:
a de, na óptica do PCP, e contrariamente ao que diz a lei, haver taxas moderadoras que correspondem a mais de um terço do preço do cuidado de saúde.

É que isso, Sr.ª Deputada, não é uma determinação do PCP, mas da lei. E o facto é que, hoje, há taxas que excedem esse limite e que, portanto, são ilegais — aliás, elas foram instituídas pelo governo de que o seu partido fez parte. Ora, sendo isso ilegal, não poderia estar a acontecer, mas está —, neste momento, aliás, com a conivência do Partido Socialista.

Por outro lado, estas taxas são uma porta aberta a aumentos ainda maiores, como se tem visto nos últimos anos, e a constituírem-se como um factor de ainda maior desigualdade.

Quanto aos cuidados primários de saúde, Srs. Deputados, ninguém pode negar que as pessoas recorrem às urgências porque não encontram saída nos seus centros de saúde — este é que é o problema! Dos pontos de vista clínico e da gestão em saúde, podem chamar-lhes «falsas urgências», à vontade. Mas, para as pessoas que não obtêm resposta, são verdadeiras urgências e essas pessoas não podem ser penalizadas por isso.

Depois, Sr.ª Deputada, quero dizer-lhe que, no nosso sistema, as receitas vêm do sistema fiscal e nós já apresentámos muitas propostas para aumentar as receitas do sistema fiscal. O seu partido é que tem votado contra! Quando começa a chegar a altura de tributar mais-valias ou de aumentar o pagamento do sector financeiro nunca estão de acordo. Portanto, se quer receitas, aí tem propostas para o aumento das receitas.

Sr. Deputado Jorge Almeida, devo dizer-lhe que uma boa parte da sua intervenção parecia provinda do PSD, o que, aliás, nesta matéria, não é muito de estranhar. Em relação à degradação do Serviço Nacional de Saúde, penso não ter explicado bem o meu ponto de vista. O problema, Sr. Deputado, está no acesso. É evidente que os indicadores de saúde têm melhorado — mal seria, com a melhoria das condições de vida, que não tivessem. Isto, apesar de toda a degradação dos últimos tempos. E não sabemos se, nos próximos anos — alguns especialistas já falam nisso e em algumas regiões do País já está a diminuir a esperança média de vida à nascença e a aumentar a taxa de mortalidade infantil —, as consequências da política que está hoje a ser seguida não vão ser em sentido contrário.

Mas o acesso é que está muito prejudicado. E o Sr. Deputado deu o pior exemplo em relação ao acesso: os tais utentes que utilizam as consultas médicas 12, 15 e mesmo 20 vezes por ano. Ora, o Sr. Deputado sabe melhor do que eu que esses utentes são, em geral, idosos, que também precisam de algum apoio social, e estes estão isentos. Portanto, a taxa moderadora nunca moderará esse acesso e, por isso, esse é um falso argumento.

Esta taxa moderadora não modera e não serve, como o Sr. Deputado pretende, para fazer a educação do povo, para o povo perceber que tudo custa dinheiro. O povo sabe muito bem que tudo custa dinheiro e sabe muito bem quanto lhe custam na bolsa as medidas que VV. Ex.as estão a tomar no vosso governo, tal como tomou o governo anterior, em matéria de aumento das taxas moderadoras.