Referendo relativo às questões da Europa
Intervenção do deputado João Amaral
29 de Junho de 1998
Pergunta aprovada pela Assembleia da República
Senhor Presidente,
Senhores Deputados:
O referendo que agora estamos a discutir, impõe-se começar por recordá-lo, é
a terceira peça de um negócio político celebrado meteoricamente, em menos de
24 horas, logo após a aprovação pela Assembleia da República na generalidade
de um projecto de despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Esse negócio de "política baixinha" celebrado entre PS e PSD permitiu ao PSD
cantar vitória com a paralização do processo parlamentar de aprovação daquele
projecto.
Para concretizar o negócio, foi feita a aprovação galopante da lei do referendo,
foi feita uma revisão apressada e cheia de erros do recenseamento eleitoral
e foi convocado o referendo que ontem se realizou, sem qualquer preparação séria,
sem uma divulgação aprofundada do significado do mecanismo do referendo, sem
uma empenhada mobilização cívica para a participação eleitoral.
Hoje, votam-se as outras duas peças do negócio, os dois referendos que estão
na agenda.
Para tentar escamotear que capitulava perante as chantagens do PSD no caso da
despenalização do aborto, o PS reclamou que a contrapartida, de ter obtido do
PSD aceitação para a realização no mesmo dia dos dois referendos, que hoje votamos
era uma vitória sua.
Pelo que se passou com o referendo ontem realizado, se tal objectivo de simultaneidade
dos referendos se concretizar, pode ter-se uma ideia da confusão total que vai
ser.
Seriam dois referendo, com três perguntas, num país com altíssimos índices de
iliteracia, com um eleitorado a quem não foi explicado devidamente o que é e
como funciona o referendo, sem nenhuma experiência, e, ainda por cima, numa
altura em que com as férias, são baixíssimas as possibilidades de concretizar
campanhas eficazes.
A junção dos referendos é considerada por parte da doutrina e por parte da Assembleia
da República como inconstitucional. Por exemplo, o PSD na Constituição que editou
com prefácio do seu Presidente e anotações do Deputado Luís Marques Guedes afirma,
que "não foi aceite a tentativa, avançada pelo PS, de consagrar a hipótese de
referendos múltiplos ou com perguntas formuladas em alternativa; a ideia (sublinho)
foi a de impedir a junção na mesma campanha de matérias completamente distintas".
As razões que levaram na Constituição à proibição de juntar matérias diferentes
no mesmo referendo levam, por maioria de razão, a considerar que essa proibição
abrange qualquer multiplicidade de matérias, mesmo quando conste de vários referendos
feitos no mesmo dia. Trata-se de, como diz Maria Benedita Malaquias Pires Urbano,
in " Referendo, Perfil Histórico - evolutivo ....", de "evitar confusões no
espírito dos cidadãos eleitores (...), quanto ao próprio objecto da consulta,
e ainda quanto às próprias respostas". Sem respeito desta proibição, as confusões
são inevitáveis , ainda por cima com a falta de experiência em Portugal na aplicação
do referendo. Já se viu o que seria a campanha do referendo com dois referendos
diferentes no mesmo dia? E o embaraço de centena de milhar de eleitores? O país
não é o universo das camadas culturalmente evoluídas!
Juntar dois referendos diferentes é estabelecer a confusão, é objectivamente
apelar à abstenção, ou ao voto enganado.
Por isso, este referendo não deve ser votado hoje para ser feito juntamente
com o referendo sobre a regionalização.
PS e PSD querem impor essa simultaneidade ao Presidente da República, apesar
da fixação da data, dentro dos parâmetros da Constituição e da lei, ser uma
competência exclusiva do Presidente da República. A votação no mesmo dia das
perguntas põe o Presidente da República na posição de encostado à parede, se
quiser respeitar a Constituição. É preciso que PS e PSD não iludam esta questão,
quando fazem estas votações.
Mas também é aqui preciso dizer com clareza: O Presidente da República só se
deixa encostar à parede se quiser. A competência para convocar referendos é
dele, é competência própria e cabe-lhe a ele exercê-la livremente, de acordo
com os critérios que definir!
E, do nosso ponto de vista, daqui dizemos que, pelas razões expostas, manifestamo-nos
no sentido de que o Presidente da República não deve convocar os dois referendos
para realização simultânea.
A par da inconstitucionalidade pela simultaneidade, que viola o princípio de
unidade e homogeneidade das matérias sujeitas a referendo, o próprio referendo
que é proposto pelo seu conteúdo é uma monstruosidade política e jurídica.
Este referendo é produto directo da má-consciência do PS e PSD, quando impediram
em 1992 que fosse sujeito a referendo o Tratado de Maastricht. Este Tratado
representou uma alteração qualitativa da Comunidade Europeia, num sentido federalizante,
visível particularmente na União Económica e Monetária. Por isso, os portugueses
deviam ter tido a possibilidade de o discutir aprofundadamente, e de se pronunciarem
sobre ele. Perante as propostas feitas designadamente pelo PCP em sede da revisão
constitucional que então foi feita, PS e PSD impediram esse referendo, isto
apesar das inúmeras posições públicas que de todos os quadrantes surgiram a
ser favor.
Para calarem as críticas, PS e PSD anunciaram que iam permitir referendos versando
matéria europeia. Ora, a decisão mais importante, que está em curso de ser tomada
em matéria europeia, é a decisão de adesão à moeda única e de aceitação do pacto
de estabilidade. Mas, uma decisão como essa PS e PSD não querem permitir que
seja referendada. Afastaram a previsão dessa possibilidade na revisão constitucional
feita nesta Legislatura, e afastam tal tema completamente da pergunta que apresentam
aqui para votação.
Não digam que o euro já está no Tratado de Maastricht, porque não é verdade.
O que aí estava era a previsão da sua existência, sujeita a uma dupla decisão:
a de o Estado querer aderir e a de a União o aceitar. Por não preencher a segunda
condição, a Grécia foi excluída. Por não querer participar, a Suécia não faz
parte dos países-euro, apesar de ter ratificado integralmente o Tratado de Maastricht,
sem nenhum opting-out quanto à União Económica e Monetária e à moeda única.
Se PS e PSD impedem o referendo versando o euro é porque não o querem ver nem
pintado.! Esconjuraram-no na revisão constitucional, como o fazer agora nas
perguntas que propõem.
Que querem então PS e PSD perguntar aos portugueses? Imagine-se: na versão do
Governo se "Portugal deve continuar a participar na construção da União Europeia
que resulta do Tratado de Maastricht?";ou, na versão do PSD, se "concorda com
o aprofundamento da integração de Portugal na União Europeia, de acordo com
o Tratado de Amesterdão?";ou, na versão PP (de Paulo Portas), se "concorda com
a participação de Portugal na construção europeia no quadro do Tratado de Amesterdão?"
(tinha a ideia de fazer aqui uma pequena nota sobre os sobressaltos do PP, mas
não vale a pena, eles mesmos se encarregaram disso; mas para quem não percebeu
aquela piada da Rueff no programa do Herman sobre o Manual do Contorcionista,
encontrado na pasta do dr. Paulo Portas, está aqui uma pista...).
Voltando às perguntas. O que nenhum dos proponentes pode iludir é o facto de
por essa forma porem a referendo a própria participação de Portugal na Comunidade,
que ninguém questiona nem está em debate. Se a resposta fosse não, ( isto é,
os portugueses não concordassem com a participação de Portugal na construção
europeia) o que sucederia ? Portugal saía da Comunidade ? Consideravam que os
portugueses se tinham pronunciado contra a adesão de Portugal ao Tratado de
Roma ? Mas o PS e PSD na revisão constitucional proibiram a sujeição a referendo
de Tratados já ratificados, por isso, sabem que o referendo não pode ter efeito
quanto ao Tratado de Roma. Isto é, fazem uma pergunta manipulada, capciosa,
indutora de uma questão que não está em debate, tendo em vista levarem a uma
resposta afirmativa, mas, para qualquer eventualidade, ficam escudados numa
revisão constitucional que fizeram à medida desta mistificação e que os protege
contra qualquer acidente, como seria um não maioritário.
Isto não é sério. E pode ser constitucional uma pergunta como esta? Uma pergunta
capciosa, indutora de uma questão que não está em debate?
Mas se dizem que não é bem assim, que a questão é sobre a participação de Portugal
na União Europeia, mas reportada ao Tratado de Amsterdão, então aparece um outro
problema, para o qual também não têm solução.
De facto, a norma constitucional que admite este tipo de referendos que diz
podem ser sujeitas a referendo " questões de relevante interesse nacional que
devam ser objecto de convenção internacional".
Pergunta-se: qual é "a questão de relevante interesse nacional que deve ser
objecto de convenção internacional " que está nas perguntas gémeas feitas pelo
PS,PSD e PP? Qual é a questão concreta ?
Na versão inicial da pergunta do PSD, versão inicial que todos se lembram até
porque o Prof. Marcelo fez 17 Conferências de Imprensa e 325 declarações públicas
sobre ela, havia três perguntas. Além da pergunta-gémea, havia uma pergunta
sobre as questões de segurança e outra sobre o emprego. O risco destas perguntas
concretas é evidente. Se o "não" ganhasse, Portugal não podia juridicamente
ratificar o Tratado de Amsterdão. Não é tanto pelo risco de isso suceder, mas
pelo "mau aspecto" de admitir que isso pudesse suceder que o PSD retira as perguntas
- as questões - e fica só pela pergunta-gémea que não contém nenhuma questão
que deva ser decidida no Tratado.
Esta pergunta é inconstitucional e deixa este referendo sem qualquer hipótese
de eficácia. Se ela tem alguma dimensão de eficácia jurídica, então seria o
de questionar o Tratado de Amsterdão no seu conjunto, o que o PS e PSD proibiram
na revisão constitucional, e, assim, a pergunta seria inconstitucional também
por esta via. Mas, não sendo sobre o Tratado no seu conjunto, quando se procura
a questão concreta a decidir no Tratado, ela não existe, e por isso, a pergunta
é outra vez inconstitucional.
A pergunta feita questiona o que não está questionado, é capciosa, induz uma
resposta, não tem o objecto que a Constituição impõe ( uma questão a ser decidida
no Tratado ou, no limite, versa o Tratado no seu conjunto).
A pergunta é inconstitucional e ineficaz. É confusa e manipuladora. É uma farsa.
Isto não é um referendo - e um "referaude"...!
Se se quer um bom exemplo deste espírito de fraude, está na nota justificativa
da pergunta apresentada pelo Governo, onde se diz que o Governo quer " auscultar
a vontade popular sobre o ritmo e o sentido da participação portuguesa no projecto
da União Europeia com vista a garantir que os futuros passos neste domínio continuarão
a ser dados em perfeita consonância com o sentido geral da opinião colectiva".
Um Referendo sobre o ritmo, é mesmo o que os portugueses estão a pedir !.
Também vale como exemplo o projecto do PSD de pergunta, em cuja nota justificativa
se diz que é indiscutível o aprofundamento da integração europeia, isto é, acha
indiscutível o que agora põe ... à discussão!
Este "referendo" ineficaz, confuso e misturado com outro, não deve ser realizado.
Primeiro, por respeito pelo eleitorado. Depois pela consideração devida aos
instituto do referendo. Depois, por respeito à Constituição e à lei. E finalmente,
pelo respeito devido, tem que se dizer, a elementares regras de bom-senso.
Por favor, Senhores Deputados, retirem estas propostas de pergunta, e acabem
com este "referaude", inútil desprestigiante e negativo para a democracia.
Disse.