Lei Orgânica do Regime do Referendo
Intervenção do deputado João Amaral
20 de Novembro de 1997

 

Depois de tudo o que se foi ouvindo nos últimos meses, depois da intervenção de ontem do Sr. Deputado Carlos Encarnação, depois das intervenções de hoje já aqui produzidas, não restará a ninguém dúvidas de que a Assembleia da República não está a discutir fundamentalmente uns projectos legislativos técnico-burocráticos para conformar a lei do referendo às alterações da Constituição decorrentes da última revisão constitucional. Verdadeiramente, o que a Assembleia da República está a discutir é o calendário político do ano de 1998, nele incluído a questão da regionalização, a consulta directa que deverá ser feita sobre a instituição das regiões e o chamado referendo sobre a Europa e que mais propriamente se deverá chamar o simulacro de referendo sobre a Europa. Mas, o tema forte é inquestionavelmente o da regionalização.

E, o que este processo mostra cada vez com mais evidência à opinião pública é que o PS meteu o processo da regionalização numa camisa de onze varas e agora não pode - e não quer! - desembrulhá-lo da prisão e da embrulhada em que o meteu.

Para qualquer lado que se volte no andamento do processo da regionalização, o PS encontra de imediato novas armadilhas e artimanhas, todas elas tiradas de um inesgotável stock criado pela revisão constitucional que o próprio PS animou, subscreveu e aprovou.

É precisamente desta responsabilidade na embrulhada criada e nas suas consequências para o processo de regionalização, que a direcção do Partido Socialista não pode continuar a alhear-se. Tem o estrito dever de a assumir publicamente. O PS não pode continuar a enganar o País afirmando uma vontade de instituir as regiões administrativas quando tem sido em todo o processo um artífice diligente de todos os entraves que o processo de regionalização hoje padece. O PS tem de falar verdade, até a muitos dos seus militantes que pelo país andam convencidos que estão seriamente a trabalhar para uma causa que os seus dirigentes máximos armadilharam na revisão constitucional e vai assim sendo adiada e boicotada sucessivamente.

A responsabilidade pelas vicissitudes, atrasos e boicotes que está a sofrer o processo de regionalização não se consumou agora, nesta lei do referendo, ou nas perguntas, ou noutro qualquer passo subsequente. A responsabilidade por esta embrulhada definiu-se durante a elaboração e no momento da aprovação da lei de revisão constitucional. São as alterações à Constituição que o PS cozinhou com o PSD e o PP que fazem o processo estar no estado em que está, e de embrulhada em embrulhada, cada vez em pior situação.

Como se prova com os três pontos essenciais que estão realmente no centro deste debate.

Primeiro ponto: a questão do número de eleitores necessários para consulta directa sobre a matéria das regiões administrativas.

A solução proposta pelo Governo só pode ser congeminada por quem quer que o processo de regionalização tenha o máximo possível de obstáculos.

A solução é pura e simplesmente aberrante e só se pode justificar por partir de uma ideia invertida do comando constitucional, isto é : onde a Constituição manda que as regiões sejam criadas e instituídas, logo que os portugueses digam "sim" em resposta à consulta directa, o PS leu o contrário, isto é põe na prática a Constituição a dizer que as regiões não devem ser criadas, excepto se os portugueses disserem sim numa votação com mais de 50% de participação.

Para o Governo, qualquer não, é um não vinculativo, quer haja mais de 50% de votantes ou não. Mas o sim, só é sim se houver mais de 50% de votantes, caso contrário, mesmo que haja 49% de votantes, dos quais, por hipótese 90% dessem resposta afirmativa, então esse sim, qualquer sim com menos de 50% de eleitores, é um não.

Como sempre sucedeu em todos os passos do processo de regionalização, o PS começou por defender uma determinação posição , a de que bastaria qualquer votação favorável para que as regiões fossem instituídas. Mas, mais uma vez como é costume, quando começou o coro dos anti-regionalistas a reclamar a exigência de 50% de participantes na votação, o PS logo assumiu como sua tal exigência, e escarrapachou-a preto no branco no projecto e no comunicado do Conselho de Ministros de 3 de Outubro de 97.

Nesse comunicado, o PS-Governo assume que quer para a consulta directa relativa à regionalização um regime mais gravoso do que existe para a generalidade dos referendos. De facto, no regime geral em que o recurso ao referendo é facultativo e versa sobre matéria que a Assembleia há-de decidir, o que a Constituição diz é que a resposta afirmativa ou a negativa são vinculativas quando há mais de 50% de votantes, ficando nos restantes casos aos critério da Assembleia saber como legislar, em que sentido, incluindo se respeita ou não a indicação resultante da votação.

Ora, no caso da regionalização, o referendo é obrigatório e não facultativo. E havia de ser aqui, quando se trata de executar um obrigação constitucional, a de criar as regiões, que se haviam de pôr maiores obstáculos e condições para poder prosseguir o processo legislativo!

Aqui, nesta consulta directa, trata-se de uma consulta sobre uma lei já aprovada e publicada, consulta obrigatória e condicionadora da concretização de uma imposição constitucional.

Este facto que parece que o PS quer esquecer e que tem sido sistematicamente sonegado neste debate: o que é vinculativo neste processo para os órgãos de soberania é a própria criação e instituição das regiões administrativas no continente.

A proposta do Governo é a proposta do pelo não à concretização do imperativo constitucional. Este é o sentido da especialidade que o PS quer impor ao regime de consulta directa sobre regiões. Mas, se alguma especialidade deve haver aqui, é precisamente no sentido contrário ao pretendido pelo Governo. O que o regime jurídico desta consulta directa exige é que sejam removidos obstáculos artificiais e desnecessários à concretização da obrigação constitucional de criar regiões. O regime legal desta consulta deve ser pelo sim ao cumprimento da Constituição!

Se se permitisse que face a uma resposta positiva mesmo assim as regiões não fossem instituídas, então estava a permitir-se que os órgãos de soberania pudessem decidir não cumprir a Constituição. E isso é que seria inconstitucional, porque a primeira obrigação dos órgãos de soberania é cumprir as imposições da Constituição!

É com este fundamento e por estas razões que o PCP apresentou o seu projecto de lei nº 428/VII. O PS vai ter assim de se confrontar com a solução nele proposta, e que, como decorre do que disse, considera que uma resposta afirmativa é condição necessária e suficiente para dar cumprimento ao artigo 256º nº 1 da Constituição, pelo que, em sequência, a Assembleia deve aprovar obrigatoriamente as respectivas leis de instituição num prazo razoável, de 90 dias.

O PS vai ter de dizer se aprova com o PCP esta solução que é a constitucional e é a adequada ao objectivo da criação das regiões. Votando-a favoravelmente, será essa solução a vigorar. Se não o fizer, é mais uma vez por sua exclusiva responsabilidade que é criado mais um obstáculo ao processo de regionalização.

O PS sabe perfeitamente que até os trabalhos preparatórios da revisão constitucional mostram que não é necessária a exigência de mais de 50% de eleitores. Sabe que isso constou do texto da proposta sobre o artigo 256º, texto de onde já constava que se aplicavam as regras gerais do referendo que fosse possível aplicar a esta consulta, e que, apesar disso, continha esta exigência especial de 50%. E sabe que ela foi retirada, depois das denúncias que nós próprios, PCP, fizemos dessa norma. Agora, quer dizer que a retirada da norma não foi mesmo uma retirada? Não estão de boa-fé!

Mas, enxerta-se aqui outra questão. O PS, quando assumiu esta exigência de mais de 50% de eleitores, sabia perfeitamente que assim estava a construir uma nova barreira para adiar a regionalização. Trata-se da questão da desactualização e empolamento do recenseamento.

O PCP é claro nesta matéria: é necessário rever o recenseamento, fazendo-o aproximar da realidade. Mas essa é uma exigência que não tem nada a ver com a regionalização. Para o prosseguimento do processo de instituição das regiões, não é preciso esperar pela actualização do referendo, que certamente não pode ser feita em dois dias. Quem quer esperar pela actualização do referendo é quem: - inventou a exigência de mais de 50% de votantes para o referendo ser válido; - e não quer instituir as regiões com uma votação afirmativa, mesmo que só a considere com carácter indicativo, por não ter havido 50% de afluência. Quem quer esperar pela actualização do recenseamento, é quem pensa que o País vai achar que, num tema como este, são sérios e de boa-fé os receios de quem não haja, mesmo com o recenseamento actual, 50% de afluência às urnas. Claro que haverá! Com franqueza: quem quer esperar pela actualização do recenseamento, é porque quer atrasar a consulta directa e, ao fim e ao cabo, a própria regionalização.

Segundo ponto: mas este não é o único bloqueio que o PS engendrou para este processo. O PSD, que não esconde os seus objectivos neste processo, põe em cima da mesa outros dois, para o PS se desenvencilhar.

Falo da questão do universo de votantes, isto é, de saber se os não residentes em Portugal votam ou não, e, em caso afirmativo, quais é que votam.

Com a demagogia ao rubro, o PS quando foi confrontado com o voto dos emigrantes nas Presidenciais e nos referendos, foi só facilidades, naquela filosofia do "depois tudo se há-de resolver". Agora, que se põem os problemas em concreto, o PS revolve-se nas suas próprias armadilhas. Aqui, o buraco é evidente. A Constituição diz que (artigo 115º, nº 12) que os recenseados no estrangeiro nos termos do artigo 121º, nº 2, podem votar nos referendos quando estes "recaiam sobre matéria que lhes diga também especificamente respeito". Feita a concessão demagógica, na proposta do Governo traduz-se este "especificamente" por questões que "se repercutam de forma directa e imediata no exercício de direitos e deveres de não residentes". O PSD, co-autor da norma constitucional (norma provinda do acordo PS/PSD), acha que basta que os referendos recaiam sobre matéria que diga aos não residentes também especificamente respeito. E agora? Com o PSD a exigir o voto dos não residentes na pergunta de alcance nacional, com a demagogia a funcionar em pleno, com o PP a fazer coro nesta exigência, e ainda por cima com a ameaça constante do PSD de recurso para o Tribunal Constitucional, que vai fazer o PS?

Terceiro ponto: outro bloqueio em curso neste processo tem a ver com a questão das duas perguntas, a nacional e a relativa a cada área regional, da sua simultaneidade ou não. O PSD voltou à carga: quer as perguntas separadas, quer a pergunta de alcance nacional isolada. E o PS, que vai fazer?

Cada um destes pedregulhos no caminho da regionalização, cada uma destas armadilhas que rodeia o processo, cada um destes temas que dão para ameaças de recursos ao Tribunal Constitucional e para chantagens de todo o tipo são o resultado directo da revisão constitucional que o PS assinou com o PSD e votou livremente em Setembro passado.

Para haver lei do referendo, o PS sozinho não chega para a sua aprovação, porque as leis orgânicas têm que ser aprovadas pela maioria absoluta dos Deputados. E, para aprovar a lei referente ao universo de eleitores recenseados no estrangeiro, são precisos 2/3, para definir, nos termos do nº 2 do artigo 121º quais são "os laços de efectiva ligação à comunidade nacional".

É nesta ceralha de malha escolhos e dependências que o PS por sua vontade e escolha meteu o processo de regionalização.

Nas Jornadas Parlamentares de Vila Real, o PS voltou à carga com a ideia dos referendos simultâneos, sobre a Europa e as regiões. É uma grosseira manipulação política, inaceitável e inadmissível, do ponto de vista da clareza e transparência democráticas. É um auto-favor a um "sim-sim", que não passa de uma chocante tentativa de manipulação eleitoral.

Os projectos em discussão têm, além destes pontos, algumas soluções, melhores e piores, para algumas questões novas trazidas pela revisão constitucional. São questões que não merecem grande polémica, e no debate na especialidade o PCP dará a sua própria contribuição.

Vale ainda assim a pena anotar que, com a proposta de proibir os militares de subscreverem iniciativas populares de referendo, o Governo PS dá uma tristíssima imagem da sua concepção dos direitos fundamentais. Num momento em que a grande questão é a de que as limitações de direitos de que padecem os militares são claramente excessivos, o PS quer alargá-los, para além mesmo do quadro constitucional!

Mas, todas essas soluções são corrigíveis. As graves, são as que referi: exigência de mais de 50% de eleitores, universo de votantes, momentos das perguntas da consulta directa relativa às regiões.

Finalmente: não é possível deixar de anotar que, no que toca ao simulado referendo sobre a Europa, nem o Governo, nem a multidão de comentadores que veio falar sobre a necessidade de mais de 50% de votantes na consulta directa sobre regiões, veio pôr naquele caso publicamente qualquer observação neste campo da exigência de uma maioria. Isto apesar de, aí sim, ser enorme o risco de não haver 50% de votantes, ainda por cima num quadro de um recenseamento empolado, questão que ninguém pôs no que respeita ao referendo europeu. Por uma razão simples: porque o referendo que deveria ser feito, sobre a adesão à moeda única, condicionador da posição de Portugal, PS e PSD não o permitiram. Nem permitiram o referendo sobre Maastricht, nem sequer sobre o futuro Tratado de Amsterdão. Só sobre "questões", e, como se pode ver das propostas de perguntas apresentadas pelo PS e pelo PSD, preparam-se para entrar no domínio da pura farsa.

De facto, o referendo dito sobre a Europa não preocupa rigorosamente nada o Governo, que nem sequer está interessado numa votação expressiva. Basta-lhe poder dizer que consultou. Porque, quanto ao resultado, quanto à opção, ela já está tomada, pelo Governo, pelo PS e pelo PSD, e Amsterdão é para ratificar tal como as famílias europeias já determinaram e os governos das potências europeias querem.

Aqui também, como na consulta relativa à regionalização o debate está viciado à partida.