Flexibilização dos mecanismos de realização de referendos
Intervenção de António Filipe
8 de Julho de 2005

 

 

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Vitalino Canas,

Devo dizer-lhe que grande parte da sua intervenção foi um verdadeiro exercício de mistificação. É que todos nós sabemos o que está em causa. O que está em causa para o Partido Socialista não é uma qualquer questão geral relativamente aos prazos referendários. É, sim, em primeiro lugar, não querer alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez — esta é a primeira questão, a questão de fundo!

A segunda é querer pressionar o Presidente da República com uma alteração de prazos que permita colocá-lo perante o seguinte dilema: ou convoca o referendo nos termos em que o Partido Socialista alega-damente pretende ou fica responsável por não haver referendo até ao final do ano.

Se não fosse assim, por que é que os senhores iam alterar a lei eleitoral para o Presidente da Repúbli-ca? Se o problema fosse apenas o dos prazos do referendo, por acharem que são demasiado extensos — e não se percebe como é que os senhores acham que são demasiado extensos e depois prevêem que possa ser convocado ao fim de 180 dias… —, então, por que é que alteravam os prazos para a eleição presidencial? Obviamente porque o que está aqui em causa não é um problema da lei do referendo ou da lei eleitoral para o Presidente da República mas as tácticas do Partido Socialista. Isto é, alteram-se os pra-zos em função das conveniências e das tácticas.

Simplesmente, fico com a sensação de que o Partido Socialista está tão tacticista que até tropeça nas próprias tácticas. Efectivamente, não se consegue perceber, mesmo com todas estas alterações de prazos — e talvez valesse a pena os senhores procurarem fazer um exercício prático dessa demonstração —, quando é que era possível realizar um referendo. É que, mesmo com todo este encurtamento de prazos e mesmo que toda a gente estivesse de acordo em prescindir de todos os seus prazos — quer o Presidente da República, não usando os prazos que tem para decidir, quer o Tribunal Constitucional, não usando o prazo que tem para se pronunciar sobre a constitucionalidade —, mesmo assim, fazendo essas contas todas, o que os senhores aqui vêm propor é a possibilidade de realizar um referendo na semana do Natal ou do Ano Novo. A não ser que os senhores demonstrem que não é assim.

E, então, pergunto: em que é que os senhores contribuem para a participação dos cidadãos — e importa lembrar que o referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez não foi convocado pelo Sr. Presidente da República, da última vez que lhe foi proposto, precisamente invocando a necessidade de assegurar que os cidadãos pudessem participar mais e melhor, através de um debate esclarecedor e atempado, num refe-rendo de âmbito nacional, tendo em conta as experiências do passado, que não foram positivas em relação à participação —, propondo um referendo que, segundo pretendem, deve realizar-se ainda este ano, mas que, obviamente, mesmo «queimando» todos os prazos, não será possível realizar-se antes da semana festiva do Natal e do Ano Novo? Os senhores acham que há condições para poder realizar-se um referen-do, sobre essa matéria, nessa altura?

Ou os senhores, mais uma vez, querem arranjar um subterfúgio para não decidir aquilo que tem de ser decidido, que é a Assembleia da República usar as competências e a legitimidade que detém para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez e acabar de uma vez por todas com aquela vergonha nacional que é as mulheres continuarem a ser levadas à barra do tribunal acusadas da prática do crime de aborto?

Esta é que é a questão e a esta é que gostava que os Srs. Deputados respondessem de uma vez por todas.

(...)

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Farei algumas observações acerca do projecto de lei do Partido Socialista, a primeira das quais diz respeito à questão dos prazos.

Os prazos que estão estabelecidos na lei não servem as conveniências políticas do Partido Socialista neste momento, portanto, entende que não são as conveniências políticas que têm de adequar-se aos pra-zos legalmente estabelecidos mas são estes últimos que se forçam em função das conveniências. É um mau princípio.

Quando digo «leis orgânicas», estou a falar da Lei Orgânica do Regime do Referendo, da Lei Eleitoral do Presidente da República, da Lei do Recenseamento Eleitoral. Como, hoje, estas leis não servem ao calendário que o Partido Socialista alegadamente pretende, alteram-se. Se, amanhã, voltarem a não servir, tornam a alterar-se. Isto é um péssimo princípio para o funcionamento de um regime democrático e das instituições democráticas.

Em segundo lugar, o Partido Socialista não ignora que a decisão sobre a convocação de um referendo não compete exclusivamente a esta Assembleia ou à maioria parlamentar que nela conjunturalmente exista mas passa, também, por dois outros órgãos de soberania, o Tribunal Constitucional e o Presidente da República, que é que tem a palavra decisiva nesta matéria.

Ora, como facilmente se demonstra — e, adiante, já demonstrarei um pouco melhor —, o que o Partido Socialista propõe, isto é, realizar o referendo ainda em 2005, só é possível, mesmo teoricamente, se o Pre-sidente da República e o Tribunal Constitucional prescindirem de todos os prazos legais de que dispõem para decidir. Portanto, o Partido Socialista conta com a posição dos outros órgãos de soberania para que, mesmo teoricamente, isto seja possível.

Assim, há aqui um acto de óbvia pressão sobre a decisão soberana do Presidente da República: ou prescinde dos prazos de que legalmente dispõe e decide praticamente de um dia para o outro ou fica a ser o responsável por não haver referendo.

Esta não é, pois, uma atitude séria relativamente ao Presidente da República.

Em terceiro lugar, os prazos propostos são, mesmo assim, inviáveis. Senão, vejamos.

No referendo que se realizou em finais do século XX, o Presidente da República decidiu com carácter de urgência — é bom que nos lembremos disto! — e solicitou ao Tribunal Constitucional a alteração do prazo, de 25 para 15 dias, e que decidisse em 15 dias. Ora, mesmo que assim acontecesse desta vez, se trans-pusermos os prazos que decorreram entre a proposta feita pela Assembleia da República e a decisão do Sr. Presidente da República, verificaremos que o referendo teria lugar no dia 1 de Janeiro. Nem pode ser depois dessa data; caso contrário, colidiria incontornavelmente com os prazos constitucionais para a con-vocação das eleições presidenciais que, como se sabe, terão de ser marcadas, o mais tardar, até 9 de Janeiro.

Mas, mesmo que fossem queimados todos os prazos — o Presidente da República decidia de um dia para o outro, o Tribunal Constitucional decidia em menos de 15 dias, as publicações eram feitas no dia imediato à aprovação das deliberações —, mesmo assim, o que o Partido Socialista propõe é que o Presi-dente da República convoque um referendo para nunca antes de 19 de Dezembro, ou seja, incontornavel-mente, na quinzena do Natal e do Ano Novo. A menos que os senhores pensem que a Assembleia da República pode tomar uma iniciativa, propondo a realização do referendo antes das eleições autárquicas. Ora, não pode! Provavelmente, os senhores esqueceram-se desse problema.

Na verdade, a lei do referendo não permite que seja aprovada qualquer iniciativa relativa à realização de referendos estando convocadas quaisquer eleições gerais, incluindo as eleições para os órgãos de poder local. Talvez tenha sido isso que os senhores esqueceram e, então, enganaram-se nas contas.

O que os senhores propõem é que o referendo, para ocorrer em 2005, tenha de ser realizado entre 19 de Dezembro e 1 de Janeiro.

O Sr. Deputado Vitalino Canas diz que não é verdade. Então, leia o artigo 8.º da lei do referendo, que diz que «Não pode ser aprovada iniciativa, praticado acto de convocação ou realizado o referendo entre a data da convocação e a da realização de eleições gerais para os órgãos de soberania, de governo próprio das Regiões Autónomas e do poder local (…).»

Passando a uma outra observação, devo dizer que o Partido Socialista faz lembrar os automobilistas que entendem fazer uma série de ultrapassagens numa estrada de dois sentidos e que, enquanto toda a gente diz «não faça isso porque não é possível, vai chocar contra os outros», eles respondem «não, não! Eles desviam-se, atiram-se todos para a valeta e nós passamos!»

Mas, mesmo assim, mesmo que, como no exemplo, os outros automobilistas se atirassem para a valeta, o Partido Socialista estampar-se-ia, porque esta proposta é manifestamente inviável.

A questão que coloco é a de saber se os senhores entendem que é adequado realizar um referendo naquela altura do ano.

Mais: se os senhores querem uma participação real dos cidadãos no referendo, como é que podem pro-por que os grupos de cidadãos disponham de 10 dias para reunir e apresentar 5000 assinaturas para pode-rem participar na campanha para o referendo? Como é que é viável que, em apenas 10 dias, qualquer gru-po de cidadãos, por mais organizado que seja, consiga reunir e apresentar 5000 assinaturas para poder participar?

Passo à sexta e última questão. O que é inequívoco é que o Partido Socialista não quer fazer o que devia fazer, que é alterar a lei de interrupção voluntária da gravidez e «chora lágrimas de crocodilo» pelas mulheres que continuam a ser levadas a tribunal e por causa da continuação deste flagelo, quando está exclusivamente na vossa mão acabar com este flagelo social, aprovando a lei que despenaliza a interrupção voluntária da gravidez. Essa é a vossa res-ponsabilidade.

Os senhores, como não querem tomar essa decisão, arranjam subterfúgios, propõem refe-rendos inviáveis, exercem pressão sobre o Presidente da República para fazer recair sobre ele o ónus da não resolução deste problema. Afinal, o que os senhores querem é fugir à vossa responsabilidade.

Mas nós cá estaremos, Srs. Deputados, para vos confrontar todos os dias com a responsabilidade que continuam a ter sobre esta matéria, porque os julgamentos que se realizem de hoje em diante, em que mulheres sejam acusadas da prática de aborto, são da vossa exclusiva responsabilidade, ela tem de vos ser imputada por inteiro. Esses julgamentos passam a ter, inequivocamente, a vossa assinatura e os senhores não podem fugir a isso.


(...)


Sr. Presidente,
o Sr. Deputado Vitalino Canas

Acusou-nos de ter medo do referendo, de sermos contra a proposta de referendo por termos medo.

O Sr. Deputado conhece-nos há anos suficientes para saber que não tememos nenhum combate político. Mesmo em 1998, contra a nossa posição, foi convocado um referendo e participámos nele em defesa do «sim». O Sr. Deputado sabe disto muito bem!

Mas o Sr. Deputado também sabe que nenhum partido como o PCP combate, nesta Assembleia e fora dela, mas particularmente nesta Assembleia, há tantos anos — há décadas! — pela des-penalização do aborto. O Sr. Deputado sabe muito bem disso e, por isso, não nos pode fazer uma acusa-ção dessas.

Já agora, Sr. Deputado, importa lembrar que, em 1998 — é bom não ter a memória curta —, esta Assembleia aprovou, na generalidade, uma lei de despenalização e o PS entendeu-se com a direita para, depois, impor a realização de um referendo. Foi o PS que se entendeu com a direita!

Se este problema continua a existir, se os julgamentos continuam a existir e se o drama continua a existir, foi porque os senhores, em 1998, se entenderam com a direita para impedir que aqui fosse aprovada a despenalização voluntária da gravidez, em votação final global, depois de ter sido apro-vada na generalidade.

Quando os senhores nos acusam de ter medo do referendo, é bom que isso seja lembrado!

Sr. Deputado, não tememos combates políticos! Não tememos referendo algum! Agora, não alinhamos em farsas e este processo legislativo é uma farsa que os senhores querem, mais uma vez, impor a esta Assembleia!