Audição Parlamentar do PCP sobre a “Directiva
Bolkestein”
Intervenção de Jerónimo de
Sousa, Secretário-geral do PCP
21 de Fevereiro de 2006
Permitam-me antes de mais que vos saúde e agradeça a vossa presença e o vosso importante contributo, bem como o das estruturas que representam, nesta avaliação comum das consequências da aplicação da directiva de criação do mercado interno de serviços – a “Directiva Bolkestein”.
Constatamos neste debate a necessidade de uma informação e debate mais alargados. A diversidade de opiniões.
É conhecida a nossa frontal oposição a esta directiva que visa, no quadro da Estratégia de Lisboa, a liberalização da generalidade dos serviços, incluindo os serviços públicos e a intensificação da sua privatização com consequências muito negativas para os trabalhadores, os seus salários, os direitos laborais e o emprego. Mas também para os consumidores em geral e para os utentes dos serviços públicos, para a garantia da sua qualidade e acesso generalizado e para os interesses dos micros, pequenos e médios empresários.
Directiva na qual o grande patronato europeu aposta toda a sua influência, particularmente os grandes grupos económico-financeiros da área dos serviços de forma a garantir um mercado livre, sem quaisquer constrangimentos à sua iniciativa e interesses, num quadro de desregulamentação e de nivelamento por baixo das relações de trabalho.
Objectivos que desde sempre estiveram presentes na elaboração da proposta de directiva e que tem originado a forte contestação dos trabalhadores e outras camadas da população e os quais estiveram na origem da mobilização para o voto negativo nos referendos em França e na Holanda contra a dita “Constituição Europeia”.
Realizamos esta audição após escassos dias da votação no Parlamento Europeu de uma proposta de directiva reformulada na base de um acordo entre o PSE e o PPE e que teve o apoio dos deputados portugueses do PS, PSD e PP.
Acordo e proposta que pretendendo responder à contestação e à luta que os trabalhadores têm vindo a desenvolver, procura, essencialmente, salvaguardar os aspectos essenciais da contestada e nefasta proposta inicial.
Temos dito que a proposta da “Directiva Bolkestein” não é reformulável e o que se impunha era a sua total rejeição e retirada. A versão agora revista confirma a justeza da manutenção desta nossa opinião, sem subestimar o facto de que os recuos tácticos verificados ainda assim só foram possíveis pela luta travada. Porém, como aqui foi dito, esta peça não é dissociável do quadro mais geral da ofensiva neoliberal.
Apesar do elevado número de alterações ao velho projecto com o objectivo de o suavizar, a proposta que acaba de sair do Parlamento Europeu e que servirá de base de trabalho para o Conselho Europeu, a realizar neste primeiro semestre de 2006, mantém o grande objectivo liberalizador e privatizador que desde sempre esteve presente na sua elaboração e concretização. Se avaliarmos as medidas e orientações económicas e sociais do Governo de Sócrates, há razões para ficarmos preocupados sobre o pronunciamento do Governo no Conselho Europeu.
As propostas de emenda que, naturalmente, exigem uma mais profunda análise e avaliação acerca das suas consequências, são relativamente às questões mais controversas e perigosas de uma enorme ambiguidade, tal como se apresentam com enormes contradições nos seus propósitos e objectivos.
Aliás, vieram aqui exemplos dessa ambiguidade e dessas contradições.
Em relação ao contestado “princípio do país
de origem” que na versão revista não está agora explícito,
no artigo 16º, na verdade o seu espírito continua presente no texto
e sujeito à posterior consideração do Tribunal de Justiça
Europeu, como o tem confirmado e sugerido o actual Comissário responsável
pelo mercado interno.
Na realidade, a alteração aprovada não afirma que o direito aplicável será sempre o do país de destino e o que está assegurado nos textos é a obrigação dos Estados-membros garantirem o livre acesso e a liberdade de exercício no seu território às empresas que prestam os serviços.
Ambiguidades que se alargam em relação à natureza dos serviços abrangidos pela directiva, embora seja muito restrito o número de serviços excluídos da aplicação da directiva reformulada. E, mesmo nesses, repete-se a inequívoca expressão: “não fica nesta fase”.
De facto, a aprovação desta proposta vem consagrar a liberalização de inúmeros sectores de actividade ligados aos serviços e não está salvaguardada a questão central da exclusão da totalidade dos serviços públicos do âmbito da aplicação da directiva.
Aliás, a maioria das propostas que os deputados do PCP e da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica apresentaram e que visavam impedir a liberalização de serviços, nomeadamente sectores e serviços públicos sensíveis como os da água, habitação social, energia, serviços postais, investigação, educação e formação, serviços culturais e serviços de segurança, foram rejeitadas.
É inquestionável que o texto aprovado pela maioria dos deputados do Parlamento Europeu visa um ataque aos serviços públicos deixando-os à mercê da lógica liberal da directiva e mantém abertas as portas ao dumping social, incentivando e facilitando a concorrência entre trabalhadores e o negócio fácil e garantido aos grandes grupos económicos da área dos serviços.
Também ficou claro no novo texto que “o serviço transfronteiriço é prestado e executado, sem necessidade de estabelecimento, por um prestador de serviços estabelecido noutro Estado-membro”, fragilizando as pequenas e médias empresas e os próprios serviços públicos.
No plano social e sobre pressão do grande patronato europeu foi também retirada da lista dos domínios excluídos do campo de aplicação da directiva, a “política social” e a “protecção dos consumidores”, limitando e impedindo a intervenção dos Estados-membro de agir relativamente ao exercício de uma actividade no sector dos serviços que ponham em causa esses interesses sociais e dos consumidores nacionais. As restrições à livre actividade das empresas estão agora com a nova versão mais circunscritas. Os Estados-membros ficaram mais limitados na aplicação de medidas de defesa do interesse nacional.
É por tudo isto que a luta contra a “Directiva Bolkestein” não pode parar e se impõe reforçar a exigência da sua completa retirada, porque esse é o único objectivo que corresponde aos interesses dos trabalhadores e à defesa dos interesses nacionais.
O governo do PS face a esta proposta de revisão não pode deixar de ser confrontado com as suas responsabilidades quando da sua discussão no próximo Conselho Europeu.
A vida já mostrou, nestes anos de aplicação da Estratégia de Lisboa e das políticas que a suportam que o objectivo proclamado de transformar a União Europeia até 2 010 na “economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo”, garantindo o pleno emprego e a eliminação da pobreza” se tem vindo a traduzir com a crescente liberalização e privatização dos sectores básicos e serviços públicos, em mais desregulamentação laboral e em novos avanços no desmantelamento da protecção social e no desmantelamento das funções sociais do Estado.
Políticas de liberalização e privatização dos serviços públicos que ao contrário do que anunciavam não se transformaram em quaisquer vantagens em termos de preços, qualidade do serviço e de redução da despesa pública.
Portugal é um gritante e irrefutável exemplo, onde a vida tem vindo a dar razão às nossas objecções e críticas e no debate que hoje aqui fizemos mais uma vez se confirma que a liberalização dos mercados públicos, de privatização das funções sociais do Estado e flexibilização do mercado de trabalho se traduziram, juntamente com as políticas orçamentais restritivas realizadas nestes últimos anos na manutenção de um fraco crescimento económico e do emprego.
Não se trata apenas de Portugal continuar um já longo e preocupante caminho de divergência com a média europeia, mas do facto de essencialmente estarmos perante uma política que está a promover a contínua degradação das condições de vida de largas camadas da população. Não deixa de ser significativo que neste percurso regressivo, a riqueza por habitante em Portugal já tenha caído abaixo dos 70% da média europeia a vinte cinco.
A destruição dos nossos sectores produtivos e o crescente desemprego estão na origem do empobrecimento do país e dos portugueses, que se agrava com a injusta política de distribuição do rendimento nacional.
Em Portugal, o desemprego não tem parado de crescer e a situação conhece um crescente e ininterrupto agravamento. Acabamos de atingir no início deste ano de 2006 a mais alta taxa de desemprego dos últimos 20 anos. Seja qual for fonte que utilizemos – INE ou IEFP – é claro o agravamento do desemprego nos últimos meses e anos e podemos dizer sem qualquer margem para dúvida, que o desemprego em sentido lato ronda hoje os 600 mil trabalhadores, dos quais estavam registados nos Centros de Emprego do país em Janeiro de 2006, cerca de 490 000. Mais grave é que a perspectiva que se apresenta é de um novo agravamento a que se junta o facto da larga maioria do emprego criado, ser emprego precário.
Há dois dias um estudo confirmou o que já prevíamos: 70% do emprego criado nos últimos dois anos (repita-se 70%), é precário. Um número significativamente dominador e que confirma a tendência para a crescente imposição das práticas de desregulamentação das relações de trabalho e da criação de trabalho sem direitos.
Este é o resultado da ofensiva neoliberal e das políticas europeias
e nacional que têm conduzido ao marasmo e à estagnação
a economia portuguesa e têm levado também à contenção
dos salários e ao aumento da pobreza e da exclusão sociais.
Ofensiva neoliberal que também impulsionou o mais grave ataque aos direitos
dos trabalhadores portugueses, nomeadamente o desmantelamento da contratação
colectiva e o direito à livre negociação dos seus contratos
de trabalho, do direito à livre organização dos trabalhadores.
Este é o resultado das políticas neoliberais, caucionadas e enquadradas pelas políticas económicas e financeiras restritivas do Pacto de Estabilidade e Crescimento, secundadas por políticas nacionais onde por vezes se é “mais papista que o papa” de subordinação aos grandes interesses do capital nacional e internacional que estão a conduzir um processo de crescente e escandalosa concentração de riqueza, como todos os dias o confirmam o anúncio de elevados lucros que o sector financeiro e os grandes grupos apresentam. Este é o resultado da irradiação da génese do capitalismo, da sua natureza e objectivos.
As declarações recentes do Ministro Saúde, pondo em causa o actual modelo do Serviço Nacional de Saúde, não está desligada dos objectivos da liberalização generalizada dos serviços e que a “directiva Bolkestein” é apenas um primeiro passo nessa direcção.
A perspectiva que o Ministro da Saúde apresenta relativamente à evolução dos serviços públicos de saúde, é prenunciadora da orientação futura que se apresenta para a generalidade dos serviços públicos com a concretização das políticas liberalizadoras e privatizadoras.
O anúncio, a prazo, do fim do carácter tendencialmente gratuito
do Serviço Nacional de Saúde é, juntamente com as medidas
já em curso de privatização dos centros de saúde,
de concentração de serviços e meios, uma forte machadada
no direito constitucional à saúde de todos os portugueses que
já hoje são chamados a pagar uma importante e substancial fatia
das despesas de saúde.
A semana passada um novo a grave passo é dado com a política de
privatizações anunciada pelo governo do PS com a transferência
de mais património e empresas públicas para mãos do grande
capital, como é o caso da alienação integral ou parcial
da participação do Estado na Portucel, Inapa, Galp Energia, EDP,
REN e TAP, mas também da ANA.
Esta política de desastre nacional precisa de ser invertida e encetar uma nova política de promoção do crescimento e do emprego. Uma nova orientação estratégica no processo de revisão do processo de Lisboa que ponha fim às liberalizações e às políticas de erosão e liquidação dos direitos sociais e laborais.
Uma nova orientação que assente na valorização do investimento público e privado; numa forte aposta numa sociedade baseada no conhecimento; em políticas sociais de inclusão, aposte na solidariedade no combate à pobreza e nos sistemas públicos e universais de segurança social, saúde e educação.
Uma política alternativa que promova e reforce a coesão social, territorial e económica.
A directiva da liberalização dos serviços ainda não está aprovada. Da nossa parte continuaremos a lutar pela sua rejeição, o mesmo é dizer que continuaremos a luta pela rejeição do projecto neoliberal. Uma acção e uma luta que se deve fundar e partir do nosso país concreto, a partir das coisas concretas, mobilizando os trabalhadores e as populações, convocando o esforço e o empenhamento do movimento sindical e das Comissões de Trabalhadores na defesa do direito do trabalho e do trabalho com direitos, das Comissões de Utentes em defesa dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, das forças políticas que se reclamam da esquerda para no plano institucional nacional e europeu e no plano político, travar esta ofensiva!