Governador Civil não pode decretar estado de
sítio em Lisboa!
Conferência de Imprensa - Declaração
de Vitor Dias, da Comissão Política do PCP
27 de Novembro de 1996
1. Com esta conferência de imprensa, o PCP vem denunciar e condenar o gravíssimo atentado às liberdades democráticas e a princípios básicos do regime democrático português que está a ser perpetrado pelo Governador Civil de Lisboa, representante do Governo no distrito.
2. Os factos essenciais são os seguintes :
- a Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP comunicou ao Governo Civil a realização de uma «iniciativa simbólica de solidariedade e paz com todos os povos do mundo» , no próximo dia 2 de Dezembro, pelas 11 horas, junto ao Padrão dos Descobrimentos, em Belém, e que seria constituída pela «apresentação de uma mensagem de apoio aos povos que, enfrentando adversas condições sociais e políticas, lutam pelo direito à dignidade e autonomia de decisão, de seguir um rumo correspondente aos seus interesses e anseios de liberdade e progresso»; esta comunicação foi feita por força do artº 2º do Dec-Lei 406/74 ( lei da liberdade de reunião e manifestação) e constitui, nos termos desse diploma, um mero aviso e não um pedido de autorização que a lei exclui e a Constituição não permite ;
- em resposta, o Governador Civil de Lisboa (a entidade que recebe o aviso) informou a DORL do PCP (c/ conhecimento ao Comando Metropolitano de Lisboa da PSP) que «em virtude da realização da Cimeira da Organização para a Segurança e a Cooperação Europeia (OSCE), estarão em curso medidas especiais de segurança em toda a cidade de Lisboa, pelo que não são permitidas concentrações ou manifestações em qualquer ponto da cidade, durante os dias 1, 2 e 3 de Dezembro».
Ou seja, deste modo o representante do Governo em Lisboa comunica uma ordem administrativa de suspensão dos direitos de reunião e manifestação, decretando na prática assim uma situação de estado de sítio para a cidade de Lisboa durante três dias !
3. No plano jurídico, a gravidade desta situação merece-nos três comentários:
Primeiro: o Governador Civil de Lisboa não tem nenhuma legitimidade para proibir a iniciativa da DORL do PCP. Na verdade, por disposição expressa do artº 45º da Constituição e do artº 2º do já citado DL 406/74, o exercício dos direitos de reunião e manifestação não está sujeito a qualquer autorização prévia do Governo ou de qualquer autoridade administrativa e policial. Trata-se de uma especial garantia do exercício destes direitos e de um progresso jurídico no sentido da afirmação da democracia e das liberdades. Assim, a proibição pelo Governador Civil de Lisboa da iniciativa da DORL do PCP é absolutamente ilegal e não pode impedir a realização prevista, já que se trata do exercício arrogante e ilegítimo de um "poder" (de autorizar ou de proibir) que está expressamente vedado e negado às autoridades pela Constituição e pela lei .
Segundo: as únicas atitudes que a lei permite às autoridades é a mudança de trajecto (tratando-se de desfile e no caso de justificados condicionalismos de trânsito) ou a mudança de local (quando o local previsto se situe a menos de 100 metros de sede de órgão de soberania). Ora a iniciativa do PCP - uma concentração - não é desfile nem está em local a menos de 100 metros de sede de órgão de soberania. Aliás, mesmo nestes casos, a lei não permite nunca a proibição, limitando-se a instituir a obrigação de mudanças de trajecto ou de local.
Terceiro: o Governador Civil de Lisboa e o Governo não têm legitimidade para suspender o exercício dos direitos de reunião e manifestação por um período de três dias na cidade de Lisboa. Esta suspensão configura a aplicação de um inconstitucional, antidemocrático e arbitrário regime de estado de sítio de âmbito local. Ora o estado de sítio só pode decretado em condições de gravíssimo perigo para o país e para o regime democrático-constitucional, competindo a sua declaração ao Presidente da República, e carecendo sempre de prévia autorização da Assembleia da República, que nesse caso define os direitos a suspender, o prazo, as medidas de controlo e as garantias dos cidadãos.
Este inaceitável abuso de poder pelo Governador Civil de Lisboa configura um grave atentado contra o Estado de direito que, merecendo uma vigorosa condenação política, é ainda susceptível de merecer a sanção penal correspondente ao crime previsto na Lei 34/87 (crimes de responsabilidade política).
4. No plano político, para além das considerações anteriores, importa salientar o seguinte:
A inacreditável declaração enviesada de «estado de sítio» comunicada pelo Governador Civil de Lisboa (e "justificada" com a Cimeira da OCSE) mostra a facilidade com que um representante do Governo do PS pretende calcar direitos democráticos inalienáveis por causa de eventuais imposições estrangeiras, dos séquitos presidenciais e respectivos aparelhos de segurança que estacionam em Lisboa para aquela Cimeira.
Que o Governo tenha considerado a vida normal da capital incompatível com a Cimeira da OSCE a ponto de decretar um feriado municipal, é matéria do domínio do ridículo e do exagero. Mas que o representante do Governo no distrito de Lisboa decida que não são permitidas concentrações ou manifestações na capital nos dias 1, 2 e 3 de Dezembro, já é matéria do domínio da histeria e que assume uma excepcional gravidade pelo seu provocatório conflito com a legalidade democrática e a protecção constitucional e legal de direitos e liberdades fundamentais.
5. Com a razão e a legalidade do seu lado, o PCP recorrerá a todos os meios legais, institucionais e políticos que forem adequados ao combate a uma decisão completamente intolerável que, para além dos seus efeitos imediatos, constituiria um gravíssimo precedente.
O PCP reclama que o Governador Civil de Lisboa, militante do PS nomeado pelo Governo do Eng. António Guterres, anule imediatamente a decisão ilegal e arbitrária que comunicou à DORL do PCP.
Se não o fizer nas próximas horas, impõe-se que seja claramente desautorizado pelo Ministro da Administração Interna, sob pena de o Governo e o Primeiro-Ministro terem de assumir a integral responsabilidade política deste atentado às liberdades democráticas.
6. O PCP não procura nem deseja que, no dia 2 de Dezembro, se crie qualquer situação de tensão, conflito ou confronto.
Mas o PCP anuncia também que não prescindirá da realização da referida iniciativa simbólica de solidariedade e amizade com os povos (em que se integra uma especial referência à corajosa luta do martirizado povo de Timor-Leste), e que tem evidentes semelhanças com tantas outras que se realizam em países que estão representados na Cimeira do OSCE, por ocasião de importantes reunião internacionais.
Está apenas nas mãos do Governo evitar eventuais situações desagradáveis.
Para tanto, basta-lhe compreender - e fazer compreender ao Governador Civil de Lisboa - que estamos em Portugal, que estamos no país dos portugueses e não num território ocupado por potências estrangeiras, que estamos no país em que, a começar pelas autoridades, é devido um respeito geral à Constituição da República e aos princípios e valores essenciais do regime democrático nascido da Revolução de Abril.