Sessão de abertura da Assembleia da República
Declaração Política de Bernardino Soares
17 de Setembro de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Na abertura de uma nova sessão legislativa e passado um ano e meio de mandato deste governo, vale a pena olhar para a evolução do estado do país. É evidente que nem o Governo consegue esconder que o país está pior.

Aumenta o desemprego que atinge cerca de 500 mil portugueses.

Diminuem os salários reais e pioram as condições de vida das populações.

Ressurgem os salários em atraso e as indemnizações por pagar aos trabalhadores despedidos.

Avança o ataque aos direitos e às condições de trabalho dos portugueses, sustentado no Código de Trabalho e nas suas anunciadas regulamentações.

E no plano da política externa continuam a faltar as explicações sobre a suposta existência no Iraque de armas de destruição em massa que aqui exigimos ao Primeiro Ministro no debate do Estado da Nação.

Hoje é uma escancarada verdade que o Governo não resolveu nenhum problema do país ou dos portugueses, e que na verdade agravou decisivamente a situação económica e social.

Hoje é inquestionável que a política económica e orçamental do governo, a sua submissão acrítica ao pacto de estabilidade e aos seus irracionais constrangimentos, sobretudo para um país menos desenvolvido e numa conjuntura económica difícil, é responsável pelo agravamento da crise económica e será responsável pelo atraso da retoma da nossa economia e pelas graves consequências que ele terá no nosso tecido social e económico.

O Governo é responsável pelo crescimento negativo da nossa economia, pela continuada divergência do nosso país em relação à União Europeia, pelo agravamento das desigualdades sociais e da concentração cada vez maior da riqueza produzida.

Há dias Duisenberg, o guardião mor da ortodoxia financeira e orçamental, afirmava com realismo que “é cada vez mais provável que a maior parte dos países não respeite os seus objectivos orçamentais em 2003”. De facto na zona Euro são vários os que assumem que, antes dos rígidos critérios do Pacto de Estabilidade, estão as necessidades de relançar a economia.

Para o Governo português isso é contudo secundário. Anuncia-se mais uma vez a continuação de uma política de restrições orçamentais, mesmo perante a recessão em 2003 já reconhecida pelo Governo, lançando mais uma vez mão de receitas extraordinárias, com destaque para uma anunciada nova vaga de privatizações que inclui a rede eléctrica, a Transgás, a distribuição de água e a TAP, para além do que está em curso em sectores sociais fundamentais como a saúde.

Assim se conseguem encaixes orçamentais de circunstância e se satisfazem gulosos apetites de grupos privados. Mas estas decisões comprometerão o acesso dos portugueses a serviços essenciais, para além de contribuírem mais uma vez para a perda de centros de decisão fundamentais na nossa economia.

Quanto à política social Bagão Félix dá o mote. Certamente a preparar um novo volume dos seus pensamentos e máximas afirmou misteriosamente que “o bem comum é um conceito bastante intuitivo, que não se identifica necessariamente com o bem geral ou da maioria”. Olhando para a sua política compreende-se a afirmação. Para o seráfico e doutrinário ministro o bem comum pode ser afinal o bem de uma minoria. Assim se compreende a ofensiva contra a destruição de direitos dos trabalhadores e favorecendo objectivamente os patrões sem escrúpulos que continuam a querer aumentar os seus lucros não pela via da modernização mas à custa de mais exploração.

Na mesma “oração de sapiência”, Bagão Feliz terá dito ainda, entre outras pérolas, que a esquerda pensa nas pessoas “através de números”, enquanto a política humanista (supostamente a sua), “rejeita a ditadura dos números e o primado da quantidade” e só chega aos números depois de passar pelas pessoas”. Esquece o Ministro que os números correspondem a pessoas e que há quantidades que contam; a quantidade de novos desempregados em consequência da política do Governo; a quantidade de trabalhadores que serão penalizados por estarem doentes porque o governo que não dá meios à fiscalização, prefere cortar administrativamente e de forma cega no subsídio de baixa; a quantidade de dívidas aos trabalhadores e de salários em atraso; a quantidade de portugueses em situação de pobreza ou em risco de pobreza, que é a mais alta da União Europeia. Isso para o Governo serão apenas números, mas para os trabalhadores e as suas famílias são problemas reais.

Paulo Portas entretanto guardou para tempos eleitorais as suas histriónicas promessas e inflamados discursos sobre os “velhinhos” ou sobre a “lavoura”. Como as políticas não corresponderam às promessas; como as reformas mais degradadas continuam a sê-lo; como a aproximação ao salário mínimo está a ser feita pela desvalorização deste; como a agricultura portuguesa e a vida do mundo rural continuam a sofrer com a submissão aos ditames dos países mais ricos da União Europeia, a Paulo Portas não restou mais do que lançar mão da baixa e reaccionária demagogia populista, ligando o problema do desemprego aos imigrantes de outros países, o que alguém do seu parceiro de coligação já qualificou como “copiado da vulgata de Le Pen” e que soa irremediavelmente próximo do estafado slogan xenófobo “Portugal para os portugueses”.

A afirmação da Ministra de Estado e das Finanças de que não haverá cortes orçamentais nas funções essenciais do Estado não pode deixar ninguém descansado. Primeiro porque bem sabemos qual é o entendimento que este governo tem das funções de Estado. Basta ver a afirmação do primeiro-ministro de que o Estado não deve ser paternalista, ou na versão refinadamente demagógica de Bagão Félix, que o Estado deve ser o “Estado suplente”.

Mas os portugueses sabem que a degradação e privatização de sectores fundamentais da administração pública e de serviços públicos essenciais leva a que os seus direitos fiquem comprometidos.

Vivemos hoje uma gravíssima situação na Administração Pública no que toca a desempenhar funções públicas essenciais.

É grave e inadmissível que depois da dramática queda da ponte de Entre-os-rios, venhamos a descobrir que afinal as condições de fiscalização deste tipo de infra-estruturas estão degradadas e que um dos organismos do Estado onde maior foi o corte nas dotações para investimento (em conservação e segurança) foi precisamente o IEP. Talvez aqui esteja a explicação para o PSD e o Governo quererem limitar ao mínimo o debate orçamental em Plenário, à vista de todos os portugueses.

Que Governo é este que “poupa” na vigilância das florestas e poupa na compra de meios de combate a incêndios.

Que Governo é este em que o Ministério da Saúde desmantela a direcção geral que acompanha as construções hospitalares, precisamente no momento em que vai entregar de raiz a construção de 10 novos hospitais a privados.

Que Governo é este em que a fiscalização das condições de trabalho e dos direitos dos trabalhadores não tem capacidade mínima de responder às generalizadas violações e abusos.

Que Governo é este em que se avança para a redução dos já depauperados quadros de pessoal da Inspecção-geral de Actividades Económicas e para a extinção de delegações regionais.

Que Governo é este em que a administração fiscal, apesar dos sucessivos discursos a dar prioridade ao combate à fraude e evasão fiscal, continua a estar amplamente limitada no pessoal e nos meios para levar a cabo as suas funções.

É o mesmo Governo que anuncia uma política de verdadeiro desmantelamento da administração pública, de ataque ao seu estatuto de independência, de precarização das condições de trabalho e de irresponsável mutilação das funções do Estado.

Este é o país que sofre as consequências das políticas neo-liberais de desmantelamento do Estado, de privilégio ao lucro privado, das privatizações sucessivas, da negação de direitos fundamentais. É um país em que urge romper com a desregulação e a impunidade. É um país que precisa de outra política, que aposte no desenvolvimento e no combate às desigualdades, na valorização do trabalho e no combate ao desemprego e à precariedade e que melhore a vida dos portugueses

O PCP dará forte combate a esta desastrosa política e lutará pela política alternativa de que o país e os portugueses necessitam.

Disse.