Intervenção do
deputado Carlos Carvalhas
Debate sobre o Estado da Nação
23 de Junho de 1999
Senhor Presidente
Senhor Primeiro Ministro
Senhores membros do Governo
Senhores Deputados
Este debate sobre o estado da Nação é na prática um debate sobre a legislatura do governo PS. E nesse sentido deveria ser um debate assente na seriedade, na objectividade e no rigor quanto à acção governativa desenvolvida.
Infelizmente, não foi esse o caminho escolhido pelo sr. Primeiro-Ministro e pelo PS.
Apresentaram-se neste debate já com um forte pendor pré-eleitoral como se pôde verificar pelos auto-elogios e as promessas do governo e os panegíricos do próprio partido que o sustenta.
Pela parte do PCP, não temos uma visão catastrofista do estado da Nação. Mas estamos convictos de que se poderia e deveria ter feito muito mais e muito melhor e que não chega o enfeite de algumas penas de pavão, como sejam o rendimento mínimo, algumas obras públicas e o pré-escolar, este aprovado contra o conteúdo desejado pelo governo.
E não temos dúvidas de que não é com auto-elogios nem com a ampliação da obra feita, nem com promessas futuras que se esconde a realidade do foi mal feito e daquilo que se deixou de fazer por inoperância ou por falta de vontade política.
O governo pode continuar a vender a tese do oásis, pode beneficiar até de um julgamento ainda benévolo por parte de alguns sectores que são levados a confundir prosperidade com endividamento, mas não altera a realidade e o mal estar que se verifica em muitos sectores da sociedade.
A verdade é que não se podem esquecer omissões flagrantes do Governo em matérias estruturantes, de que é exemplo o facto de durante estes anos não se ter avançado com uma reforma fiscal, fundamental para a concretização de outras reformas no sentido do progresso e da justiça social.
Tal como não pode ser omitido que o crescimento económico e o consumo estão em desaceleração, e que as taxas de crescimento do investimento e das exportações caíram para metade. E muito menos se pode escamotear o facto de nesta legislatura o crescimento económico ter tido uma repartição que levou à concentração da riqueza, como o comprova a distribuição do Rendimento Nacional; o de mais de 1 milhão de reformados continuarem com pensões de miséria apesar dos volumosos saldos do Orçamento da Segurança Social; o de ao contrário do que se prometeu se ter usado e abusado dos jobs for the boys, ou ainda o facto do aparelho produtivo nacional se ter continuado a fragilizar como o provam a grave crise da agricultura e das pescas e o défice assustador da nossa Balança Comercial.
De facto o estado da Nação é inseparável da análise da realidade e do pulsar da vida social.
E pensamos que o governo não se pode alhear das razões de fundo de tanto descontentamento e desencanto que atravessa vários sectores da sociedade portuguesa e em particular do mundo do trabalho.
Quais as razões que levam hoje, em tantas áreas da Administração Central e Local a manifestações inequívocas de descontentamento e luta quando no princípio desta legislatura o governo se gabou tanto do célebre acordo estabelecido com todas as organizações sindicais.
Que razões tinham e têm os pescadores do arrasto para levar a cabo a maior e mais prolongada greve da história deste sector tal como os motoristas do transporte de combustíveis.
Que razões levam, passados quase 3 anos da entrada em vigor da lei das 40 horas a que ainda hoje em muitas empresas têxteis e do vestuário e junto do Ministério do Trabalho se lute pelo direito às pequenas pausas.
Que razões levaram os trabalhadores e o movimento sindical a participarem numa das maiores consultas públicas promovidas por esta Assembleia, como forma de denuncia e de recusa do pacote laboral; a promoverem entre outras acções, a maior manifestação e concentração dos últimos 12 anos, como pôde ser testemunhado pelos senhores deputados.
Foram e são razões de fundo que levaram a tantos protestos e tantas lutas.
Primeiro porque o governo onde pôde decidir sobre os direitos e os salários assumiu opções e políticas quase sempre contrárias aos interesses e aspirações dos trabalhadores.
Fê-lo quando tentou concretizar o núcleo duro das propostas de legislação laboral visando desregulamentar e abalar importantes pilares do direito do trabalho.
Fê-lo quando impôs a contenção salarial através da "força do exemplo" dos aumentos da Função Pública, defraudando expectativas quanto à evolução de carreiras.
Fê-lo quando a Assembleia da República clarificou o direito dos trabalhadores às pausas e o ministro da Solidariedade despachou a dar razão à CIP.
E quando nos conflitos, os trabalhadores esperavam uma contribuição efectiva e positiva por parte do governo este colocou-se geralmente numa postura de Pilatos, quando não do lado do mais forte.
Fê-lo porque no plano do emprego se preocupou mais com as engenharias estatísticas do que com a sua qualidade e com a sua efectividade, isto é, com a criação de empregos com direitos e justamente remunerados.
Não diabolizamos toda a política social do governo. Mas em relação às grandes causas sociais este governo escolheu conscientemente e normalmente o caminho errado.
Não a respeitou na prática quem trabalha e desvalorizou o trabalho com direitos.
E o mesmo poderíamos dizer em relação às promessas feitas à juventude, à paixão bolorenta sobre a educação e à realidade da falta de saídas profissionais.
Também antes das eleições o Sr. Primeiro-Ministro não se cansou de afirmar que a droga seria o inimigo número um do seu Governo. Seria pois legítimo esperar que nestes quatro anos tivéssemos assistido a grandes mudanças na política de combate à droga que fossem para além dos discursos e que conseguissem travar o avanço deste grande flagelo social. Mas não foi isso o que aconteceu.
O PCP nunca instrumentalizou o problema da droga como arma de arremesso político e nunca procurou retirar dividendos partidários da desgraça que afecta milhares de jovens e as suas famílias. E por isso apoiámos e impulsionámos medidas que nestes últimos anos se traduziram em avanços nos programas de redução de riscos e no aumento do número de centros de atendimento de toxicodependentes. E é uma realidade que várias medidas foram tomadas na sequência da aprovação por esta Assembleia de projectos de lei do PCP sobre esta matéria.
Mas mais do que por uma política decidida de combate à droga, estes quatro anos ficam marcados pela dança de estruturas e de cadeiras, pelas hesitações, pela indefinição estratégica e pela ausência de medidas capazes de combater com eficácia os grandes traficantes.
Se o PS, logo em 1996, em vez de alinhar na demagogia dos aumentos das penas, tivesse apoiado o projecto de lei do PCP que acabava com a aplicação de penas de prisão por simples consumo de droga, tratando os toxicodependentes como doentes e não como meros criminosos, teríamos hoje em aplicação uma lei da droga mais justa, mais humana, e que teria permitido recuperar muitos toxicodependentes longe do ambiente das prisões.
O mesmo podemos dizer em relação ao combate ao branqueamento de capitais e por isso aqui fica o desafio ao Partido Socialista e a todos os demais Partidos, para que na próxima legislatura dêem o seu apoio aos projectos de lei que o PCP apresentou recentemente, para aperfeiçoar os mecanismos legais de combate a estas actividades criminosas.
Falando da área institucional, onde se incluem os sectores da Justiça, Segurança Interna e Defesa Nacional, melhor do que tudo o que se possa dizer acerca da política do Governo temos os factos que falam por si, como alguns que têm sido noticiados recentemente. A realidade é que ao fim dos quatro anos de muitas promessas, é a Polícia Judiciária que vem a público denunciar a falta de meios operacionais; são os militares das Forças Armadas que denunciam abertamente a degradação de uma situação estatutária e do sistema remuneratório e social e de um alheamento e desinteresse constante revelado pelo governo; é a justiça que confirma com a mesma imagem na opinião pública, de lentidão e de conflitos de interesses de grupo; é a GNR ainda militar, e uma PSP que continua sem sindicato porque o Governo demorou quatro anos a apresentar uma proposta e só o fez em condições que tornaram inultrapassável o bloqueio do PSD: é a situação dos serviços de informações levados a extremos inegáveis de degradação.
O Governo afirma-se um permanente defensor dos direitos, liberdades e garantias. Se há avanços legislativos nesta matéria o governo não negará que é por sua responsabilidade e por responsabilidade do PS que se mantém o inadmissível escândalo da inexistência do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações, escândalo que se prolongou por todos este mandato, com o PS a bloquear as sucessivas soluções legislativas apresentadas pelo PCP para desbloquear uma situação que – o Governo não pode meter a cabeça na areia – deixa os cidadãos indefesos perante a ameaça dos seus direitos fundamentais.
O Governo fala de justiça como se esta fosse uma soma de sucessos. Mas se há significativas alterações legislativas e alguns avanços quanto a meios, o Governo não pode negar que ao fim destes quatro anos a justiça continua na mesma, lenta e cara, aparecendo aos olhos dos cidadãos como privilegiando as camadas sociais com mais poder em prejuízo dos mais desprotegidos; o governo não pode negar os conflitos abertos que ele próprio alimentou, como no processo de exoneração e substituição do Director da Polícia Judiciária.
O governo fala da transparência e do combate ao crime, mas não vai negar o que é evidente – as queixas da Polícia Judiciária, nem vai negar que perante o país deixou acumular dúvidas acerca da sua real vontade política em criar as condições para serem averiguados até ao fim casos como o da Moderna que afectam detentores do poder político ou institutos do poder paralelo.
O governo fala do combate à corrupção. Mas quando se fala de corrupção ou de situações suspeitas, o que é preciso não são palavras, são acções que ponham tudo à vista e que apurem responsabilidades sem medos nem zonas proibidas. E, tal como à mulher de César, é essencial não apenas ser sério como parecê-lo.
E que quer o governo PS que se diga sobre os casos dos grupos económicos, quando vem a público que o PS fez o favor ao grupo económico de Champalimaud ao rejeitar um relatório condenatório proposto no inquérito parlamentar, rejeição que essencialmente é feito com base num acordo realizado com esse grupo económico? Ou com os casos do aval à UGT e da JAE e tantos outros casos.
Mas que quer o governo que se diga quando se viu a nomeação dos boys do PS para os corpos do Estado, nomeações que são hoje de muitos e muitos milhares com a família PS instalada no aparelho de Estado?
Desde que tomou posse até meados deste mês, o Governo PS fez ao todo, como o informa o Diário da República, mais de 11mil nomeações sem concurso, das quais cerca de 7 mil de pessoal de gabinetes, direcção e assessoria e 4 mil em comissões e grupos de trabalho.
Só desde que em Março, quando face à denúncia pública do "regabofe nomeador", o Governo PS viu-se obrigado a rever a Lei do Estatuto do Pessoal dirigente da Função Pública, foram nomeados sem concurso e com recurso ao regime de substituição, à alteração da nomenclatura dos cargos ou do nome das instituições, mais de 4 mil funcionários para funções de direcção, gabinetes e assessorias.
A isto não se chama nepotismo e clientelismo?
"As duas principais razões que levaram à derrota do PSD foram a arrogância e o clientelismo. Dois pecados que o PS não pode repetir. No job for the boys", assim dizia o Primeiro-Ministro, eng. António Guterres em 15.10.95.
Passados quase quatro anos já é claro quanto valeram estas promessas do PS.
O governo fala da sua política de Segurança Interna, do abandono das super-esquadras, das novas esquadras de bairro e das medidas no sentido da afirmação do carácter civilista da PSP. Mas esquece o governo que mantém a GNR como corpo militar, com um estatuto de 2ª, que atinge quem aí presta serviço? Esquece o governo as hesitações em que andou em relação à PSP e que atrasaram o processo, permitindo o bloqueio por parte do PSD? A realidade é que, passados quatro anos a promessa como mostra o último Relatório de segurança interna e apesar das manipulações, os índices de criminalidade aumentaram, particularmente os que mais afectam o quotidiano dos cidadãos, como a delinquência juvenil nos meios urbanos, os crimes com armas de fogo, o furto de viaturas e em viaturas, o furto por carteiristas, etc. etc..
Quanto às Forças Armadas aí a realidade é que o governo não tem mesmo nada para se gabar. Nem três ministros chegaram para melhorar a situação. É a situação dos militares em constante degradação estatutária e remuneratória; é o famigerado artigo 31º a permanecer na mesma, com as mesmas retrógradas proibições. São em resumo umas Forças Armadas a perderem como missão principal a missão da defesa da República para serem chamadas cada vez mais às operações externas, integradas na NATO e sob comando desta organização.
O estado a que chegou o sector só pode significar que ele não é prioridade do governo, é desprezado, é menorizado e colocado no âmbito das questões que não dão votos, quando muito algumas abstenções expressas...
Fazendo uma avaliação global, aqui como noutras áreas, foram mais as vozes do que as nozes; foi mais a propaganda do que a acção; foram mais as promessas do que as realizações.
E tudo isto quando o Sr. Primeiro-Ministro garante a pés juntos que Portugal não é uma república das bananas. Mas concordará que há comportamentos do Governo e políticas que, ao fim de uma legislatura, o fazem crer... Portugal não é uma república das bananas, mas com o processo irresponsável das privatizações de empresas básicas e estratégicas, de "mão baixa" a importantes alavancas da economia nacional, a caso Champalimaud, não será o último em que os centros de decisão económicos ficarão nas mãos do estrangeiro pois só o domínio público o poderá impedir de garantir o interesse nacional.
Portugal não será de facto uma república das bananas mas é no nosso país que, apesar de todas as promessas em contrário, continua a haver numerus clausus no acesso ao ensino superior. E que continuam a ser necessárias médias superiores a 18 valores para entrar numa faculdade de medicina, apesar da carência dramática da formação de novos médicos, e do recurso à importação de profissionais estrangeiros...
Portugal é uma república da união Europeia, mas é um facto que tendo a Inspecção Geral do Ensino detectado, por exemplo, em 34 universidades e escolas privadas – cerca de um terço do total – incumprimentos legais "considerados graves", de índole diversa, o Governo nada fez em relação a esta grave situação.
Portugal é uma república da União Europeia, mas a verdade é que foi precisa quase uma legislatura para que o Governo descobrisse que havia quase cem mil portugueses em listas de espera nos hospitais. E foi também preciso que a Assembleia da República aprovasse o projecto de lei aqui apresentado pelo PCP para resolver o assunto, para que finalmente começasse a ser resolvida – ainda que de forma tímida e tardia – essa situação grave e escandalosa.
Portugal não é uma república das bananas, mas a verdade é que o Governo não quis tomar medidas na área dos medicamentos que teriam permitido reduzir significativamente as despesas pagas directamente do bolso dos portugueses e, ao mesmo tempo, economizar muitos milhões de contos ao Orçamento do Estado. E renovo aqui o desafio Senhor Primeiro-Ministro, mesmo em fim da legislatura, para que, por exemplo, apoie a proposta que o PCP aqui trouxe, e passe a fornecer gratuitamente os medicamentos prescritos nos hospitais e centros de saúde cujo custo é inferior ao que o Estado paga por eles através do sistema de comparticipações. Ganhariam os utentes, ganharia o Estado, porque espera Sr. Primeiro Ministro?
Senhor Presidente
Senhores Deputados
O país não precisa de arrogância, de imposições ou de falsos diálogos. O país não precisa do poder absoluto do Partido Socialista. Precisa sim de promover o desenvolvimento em bases sólidas, com justiça social e defesa do interesse nacional.
O país precisa mais do que nunca, não da continuação do essencial da política cavaquista de má memória mesmo que disfarçada de sorrisos ou de retórica social, não de uma política assente nos dogmas neoliberais, mas sim de uma efectiva política de esquerda, de uma viragem à esquerda.
E estes 4 anos de governação do PS são a prova cabal de que essa viragem só será possível com o PCP e com o reforço do seu peso nesta Assembleia. É nesse sentido e com esse objectivo que de novo nos apresentaremos aos eleitores. E, contrariamente ao PS e ao Governo, sem receio que nos acusem de termos faltado aos compromissos eleitorais. Sem necessidade de escondermos o que fizemos e nos refugiarmos nas promessas vãs do que vamos fazer.