O Estado da Nação
Intervenção do deputado Carlos Carvalhas
30 de Junho de 1998

 

Senhor Presidente
Senhor Primeiro-Ministro
Senhores Deputados

Chegamos ao fim desta sessão parlamentar. Estamos no último debate, o chamado debate sobre o "estado da Nação".

Pela voz do governo ficámos a saber que o País está bem e que se recomenda.

De facto ouvindo o senhor Primeiro-Ministro, ministros e secretários de Estado até parece que o Conselho de Ministros se deslocou de S. Bento para a EXPO para o Pavilhão da "Realidade Virtual" e cada vez mais virtual...

Aproveitando também uma conjuntura externa favorável ao País o governo faz seus, os louros de um crescimento económico que não se radica infelizmente, nem no fortalecimento do nosso aparelho produtivo, nem na balança comercial, nem na distribuição do Rendimento Nacional e na justiça social.

Em abono das suas teses enumera as festas, as celebrações, a política do betão, o ter ultrapassado o PSD nas privatizações, nos "tachos" para os seus boys, na concentração da riqueza, no favoritismo aos grupos económicos e como testemunho da sua elevadíssima sensibilidade social, diz que até tem estado inclusive a concretizar projectos sempre defendidos pelos comunistas, como seja o do Rendimento Mínimo Nacional e o Pré-escolar...

Na verdade estamos perante duas realidades de sentido oposto. Uma delas expressa-se no crescimento económico, aumento da produtividade e dos lucros.

Mas a outra, que atinge a maioria dos trabalhadores, não pode ser silenciada. Realidade que se expressa no número de desempregados que, de facto, continua a ultrapassar o meio milhão. Que se expressa no desmesurado crescimento da precarização onde os contratos a prazo, o trabalho à peça, à hora, à empreitada, o trabalho temporário e clandestino se transformam em rega geral.

Realidade que reflecte ainda os processos de despedimento, rescisão e pré-reformas forçadas sob a capa da reestruturação das empresas, é o aumento dos desequilíbrios da repartição do rendimento e as desigualdades sociais.

Neste quadro o que é que leva o governo a encetar uma das mais graves ofensivas aos direitos dos trabalhadores, visando desregulamentar e fragilizar ainda mais alguns dos pilares onde assenta o direito dos trabalhadores a nível do conceito do emprego, de retribuição, da profissão, das férias do trabalho nocturno?

Ao transformar as novas gerações de trabalhadores no alvo principal desta operação desregulamentadora o governo assume a grave responsabilidade de promover e tentar criar num futuro próximo uma geração de trabalhadores sem direitos!

E no entanto o que vemos e o que ouvimos nas empresas e nos locais de trabalho, designadamente na iniciativa que o PCP promoveu a nível nacional, contactando mais de 200 mil trabalhadores em 500 empresas e locais de trabalho, é que os trabalhadores reclamam mais justiça social, mais segurança no emprego e a devida valorização dos seus direitos e dos seus salários.

Em muitas lutas que hoje se travam em muitos sectores e empresas, por vezes para além de problemas reivindicativos, é já a luta pela dignidade que leva à participação massiva dos trabalhadores como aconteceu no sector dos Transportes, da Banca, da Administração Pública e nos Hotéis de Lisboa. O governo é o primeiro responsável pela crescente conflitualidade social que se tem verificado no país.

Assumindo estas aspirações e essa luta o Partido Comunista Português propõe e sugere ao governo no imediato um conjunto de seis medidas que se traduziriam em estabilidade social e política e numa melhoria do nível e qualidade de vida dos portugueses:

1º suspender as alterações à legislação laboral e consequentemente não lançar no período de férias a discussão dos respectivos diplomas;
2º prolongar o subsídio de desemprego para os desempregados nomeadamente, para os de longa duração com mais de 50 anos;
3º introduzir de imediato os medicamentos genéricos o que permitiria ao Estado e aos utentes economizarem milhões de contos e dar resposta a muitos problemas da saúde, nomeadamente as filas de espera. Mas não venham com os falsos "genéricos de marca", porque isso não passa de um expediente para entregar o mercado dos genéricos nas mãos de meia dúzia de multinacionais;
4º criar um imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas e avançar com a reforma fiscal;
5º Combater o trafego e o branqueamento de capitais aprovando legislação com eficácia que permita o congelamento, apreensão e perda para o Estado de patrimónios de origem criminosa e a limitação do segredo bancário, dotando simultaneamente a Polícia Judiciária e as magistraturas dos meios necessários para a investigação e o combate à criminalidade;
6º para concluir Sr. Primeiro-Ministro aqui fica uma última e creio que boa sugestão: aproveite as férias estivais e o descanso da Assembleia da República e ultrapasse as oposições e as suas diabólicas coligações negativas, mande às urtigas as pressões das seguradoras e do capital financeiro, não tenha receio do Sr. Kohl e ao seu pacto de estabilidade e aumente extraordinariamente os reformados! Estes agradeciam, o país beneficiava e o governo e o PS tomavam uma medida justa, de verdadeira sensibilidade social, e já não precisariam de gastar os neurónios a encenar mais uma crise virtual (em Outubro) na rentrée!

Senhor Primeiro Ministro
Senhores Deputados

O governo pode meter a cabeça na areia mas não apaga o facto de que por exemplo, o Ministério da agricultura falando da necessidade de equilibrar apoios entre países, sectores e agricultores começa a aceitar que se possam reduzir as ajudas ao azeite... Estratégia negocial que, mais uma vez permite uma negociação às fatias, das diversas Organizações Comuns do Mercado (OCM), primeiro as mediterrâneas (azeite, vinho, tabaco), depois as do Norte (carne, leite, cereais). Assim como não apaga o facto de dizer que não há uns milhares de contos para indemnizar os agricultores atingidos por pragas e temporais ... tomate (Vale do Sado e Tejo), cereja (Cova da Beira/Terra Quente), pêra rocha (Oeste) e ir entregar 55 milhões a latifundiários, até ao fim do ano, pelas chamadas indemnizações da Reforma Agrária. E tudo isto pela mão de uma governo socialista...

O governo pode meter a cabeça na areia mas a realidade aí está a mostrar as crescentes e intoleráveis injustiças fiscais, com o governo sempre e sempre a adiar a reforma fiscal.

Ora esta reforma para além do seu interesse intrínseco, sempre terá de servir de base a outras reformas como a da Segurança Social ou a da Saúde.

É uma reforma necessária e urgente, que não pode estar dependente dos calendários eleitorais do governo ou de qualquer partido político. Exigem-no a justiça social e o desígnio da construção de uma sociedade mais solidária.

Pela parte do PCP, desde o início que manifestamos ao governo a nossa disponibilidade política para o avanço e concretização de uma efectiva reforma fiscal.

Não é admissível assistir passivamente ao facto de cerca de 50% do Rendimento nacional fugir à tributação.

Não é política e socialmente aceitável que os benefícios fiscais, em sede de IRC, tenham atingido mais de 169 milhões de contos, só no ano de 1996, e que simultaneamente se continue a dizer que não há dinheiro para aumentar as pensões de reforma mais baixas.

Não é sustentável que os rendimentos de capital continuem a ter um tratamento fiscal de favor, com taxas reduzidas, com isenções e com taxas liberatórias, sobrecarregando pesadamente os rendimentos do trabalho.

Ninguém acredita que, anualmente mais de 80 mil empresas portuguesas apresentem, para efeitos fiscais, prejuízos da ordem dos 800 ou 900 milhões de contos e nada se faça para repor a verdade dos factos e para dotar a Administração Fiscal de capacidade efectiva de actuação.

Pela parte do PCP, reafirmamos a nossa disponibilidade para alterar este estado de coisas, para combater a fraude e a evasão fiscais e para criar um sistema fiscal mais justo.

Por isso daqui desafiamos o senhor Primeiro-Ministro a concretizar uma reforma fiscal antes do fim desta legislatura.

Uma reforma fiscal assente nos princípios da capacidade contributiva, da igualdade, da progressividade e da simplicidade através, nomeadamente:

- do alargamento das bases de tributação, quer no âmbito do IRS, quer do IRC, quer ainda do imposto sobre o património mobiliário e imobiliário;
- da baixa das taxas do IRS e do aumento da dedução específica sobre os rendimentos do trabalho, possibilitados por esse alargamento;
- da eliminação das múltiplas taxas liberatórias existentes e das taxas de favor que incidem sobre as mais-valias, reconduzindo o IRS e o IRC à sua natureza de impostos únicos sobre todos os rendimentos, independentemente da sua natureza ou fonte;
- da redução substancial dos benefícios fiscais, em particular dos que são concedidos a operações e rendimentos de capital;
- da introdução no sistema fiscal de métodos moralizadores e mais adequados à tributação da generalidade dos rendimentos de natureza comercial e industrial, associados a regimes simplificados de tributação, sem prejuízo das garantias dos contribuintes;
- da melhoria da eficiência da Administração Fiscal;
- da criação de um sistema eficaz de informações tributárias.

Se o governo estiver disposto a avançar para esta necessária e urgente reforma fiscal, determinada por reais preocupações de justiça e de redução das desigualdades, garanto-lhe senhor Primeiro-Ministro, que o PCP está disponível para começar a trabalhar nesse projecto e desde já. Manifeste o Governo a mesma disponibilidade e vontade política.

Senhor Presidente
Senhor Primeiro-Ministro
Senhores Deputados

Este final de sessão parlamentar creio que deveria também merecer uma reflexão do Partido Socialista.

Não vou lembrar as peripécias da revisão constitucional e as convergências do PS com o PSD, não vou recordar o fundamentalismo das leis eleitorais, nem os aplausos à aprovação da lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez logo abafadas pela pirueta da aceitação do referendo, com a participação que se viu, não vou recordar aquilo que alguns deputados e autarcas do PS designam por «tiros nos pés», quanto à regionalização, nem as cedências ao PSD em todo o processo desta reforma «num faz que anda mas não anda», que foi dando substanciais trunfos aos anti-regionalistas, nem vou lembrar ainda os acordos com o PSD para a realização de um vergonhoso referendo sobre a Europa, que não serve para nada e ainda por cima no mesmo dia em que se realiza o da regionalização o que não permite qualquer esclarecimento sério e que procura fazer do Presidente da República um simples notário dos «arranjinhos» entre dois partidos, nem vou lembrar as promessas não cumpridas, nem comparar os irrisórios aumentos de salários com as taxas de lucro do capital bancário e financeiro, nem a política neoliberal no ensino e as famigeradas propinas que segundo o Secretário Geral do PS na oposição só deveriam ter lugar após a reforma fiscal. Deixo isto para a pausa que as férias parlamentares sempre proporcionam.

Só sublinho ainda que não fomos nós que afirmámos, mas um distinto socialista e ex-Secretário Geral do PS, que escreveu que "Portugal vive a hora mais liberal de toda a sua história", pois "as privatizações reduziram o poder económico do sector público a dimensões inferiores às que ocorrem em muitos países europeus", e que "temos um mercado de trabalho reconhecido internacionalmente como dos mais desregulados e flexíveis da Europa", o que temos de concordar, que para um governo socialista é obra. Nem fomos nós que afirmámos (Eduardo Dâmaso/ Público) que mais do uma "direita dos interesses" favorecida, existe sobretudo um "bloco central dos interesses" que, desde os anos 80, se tem perpetuado no poder, tanto à sombra protectora do PS como do PSD". Se este debate é sobre o Estado da Nação, então pode concluir-se que a Nação dos "grandes interesses" está bem e recomenda-se. Mas, a Nação do mundo do trabalho, dos reformados, das classes mais desfavorecidas e mesmo das classes médias, essa continua à espera de uma justiça que não vem, das reformas como a reforma fiscal que não são feitas, do desenvolvimento económico e do emprego estável que não são criados .O País necessita de uma outra política, uma política de desenvolvimento com a defesa da produção nacional, com efectiva e verdadeira dimensão social e com uma grande afirmação no sentido da defesa da soberania nacional e de um novo rumo para a construção europeia.