Apresentação do Programa
do XVI Governo Constitucional
Intervenção de Encerramento de Bernardino
Soares, na Assembleia da República
28 de Julho de 2004
Senhor Presidente,
Senhor Primeiro Ministro,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,
Em Abril de 2002 dizia-se no debate do Programa do XV Governo: “Bem andou o Sr. Presidente da República ao tomar a iniciativa de dissolver a Assembleia da República ao convocar eleições antecipadas… O Parlamento deixara de reflectir o sentir e a efectiva maioria dos portugueses.” Eram palavras do Deputado Guilherme Silva, não sabemos se contaminado por vírus continentais, que agora retomam toda a actualidade.
É que o ponto fundamental deste debate que agora se encerra é sem dúvida o de estarmos perante um governo sem legitimidade política, sem credibilidade popular, entronizado por uma decisão do Presidente da República, quando a crise política criada pelo abandono de funções de Durão Barroso, em consequência da estrondosa derrota nas eleições para o Parlamento Europeu, exigia a convocação de eleições e a devolução do poder de decisão ao povo.
Dito isto é preciso deixar bem claro que, se formalmente estamos perante a investidura de um novo Governo, politicamente estamos perante um Governo de continuação, um Governo que sofreu uma remodelação que incluiu o Primeiro-ministro. Já ontem o Primeiro-ministro foi dizendo que estamos perante uma legislatura com duas partes distintas e é certo que com o andar do tempo e o afastamento da memória de Durão Barroso, procurará desligar-se das responsabilidades da maioria de direita na situação do país.
Pela nossa parte não aceitaremos qualquer branqueamento das responsabilidades do Governo e da maioria de direita. Este Governo é responsável pelo meio milhão de desempregados, pelas 150 mil pessoas em lista de espera, pela baixa sistemática dos salários, ao mesmo tempo que as 4 maiores instituições bancárias do país aumentaram os seus lucros no primeiro semestre em12,8%. Este Governo é responsável por toda a degradação das condições de vida dos portugueses nos últimos dois anos, e pela continuação da nossa divergência em relação à União Europeia.
Este Governo tem uma pesada herança. É a sua própria herança. É a herança dos dois anos e meio de mandato que já leva.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Sobre a formação do executivo já muito foi dito. As sucessivas trapalhadas, arranjos, nomeações e "desnomeações", repartições de poderes e ocupações selvagens de ministérios, são já uma marca deste Governo. Mas elas não são apenas fruto de uma atrapalhação de início de mandato. São o reflexo da necessidade de encaixar no Governo as clientelas partidárias, pessoais e dos interesses que suportam este executivo. Tudo o resto foi sacrificado a este objectivo.
Há dois anos Durão Barroso dizia neste Parlamento: “O Governo já deu o exemplo de «emagrecimento». É o Governo mais pequeno de todos os que se constituíram desde a adesão de Portugal à União Europeia. A simples redução do número de gabinetes ministeriais levou, desde já, à poupança de mais de 2 milhões de contos por ano”. O que dirá a isto o Primeiro-ministro Santana Lopes que prometeu ao país um Governo menor e acabou com mais ministérios e mais secretarias de estado?
No mesmo debate Durão Barroso dizia ainda: “estou muito orgulhoso por ser este o primeiro governo que junta, no mesmo Ministério e com essa designação, a função cidades, ambiente e ordenamento do território.”. O que causava orgulho antes não resistiu agora à necessidade de satisfazer todos os interesses.
A incoerência e desconexão na orgânica do Governo continuarão nos próximos meses, com a confusão na arrumação dos serviços em cada tutela, com os inevitáveis conflitos de competências e a luta pela repartição de instalações e orçamentos.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
O debate do Programa do Governo não correu bem ao Governo e ao Primeiro-ministro. A maioria esteve pouco entusiasmada. Aliás, de tal forma não tinha nenhuma expectativa na prestação do Governo e do Primeiro-ministro que se apressou a bater palmas à entrada receando não poder fazê-lo depois.
O Primeiro-ministro não quis, ou não soube responder a muitas das importantes questões que lhe foram colocadas.
Não esclareceu a inflexão existente no Programa de Governo em relação ao referendo sobre o novo tratado da União Europeia, agora dado como mera possibilidade.
Perguntado sobre a necessidade de revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento sobre a qual não há nenhuma referência no Programa de Governo e apesar de ter ainda em 2003 criticado as características do mesmo, refugiou-se numa resposta sobre a questão da negociação da Política Agrícola Comum, sobre a qual nada lhe tinha sido perguntado, fugindo à questão concreta. Confundiu o PEC com a PAC.
Sobre a situação no sector da educação, o desinvestimento, a falta de recursos, a política de destruição da escola pública e o caos nas escolas e na colocação de professores, nada disse de concreto. Faltou aqui a voz determinada do Ministro David Justino que no debate do Programa de Governo anterior afirmava indignado: “não me conformo com o estado a que chegou a educação em Portugal!”. O que não diria ele agora!
Sobre os fogos que mais uma vez devastam a nossa floresta o Governo lava as mãos como Pilatos. Foi dizendo que havia um risco de incêndio muito grande por estes dias, o que sem dúvida é verdade. Só não explicou porque é que a previsão desse risco não levou o Governo a reforçar os meios mais cedo, designadamente pedindo os meios aéreos; nem explicou porque não foram ainda repostos em muitos casos os meios terrestres danificados no Verão passado; nem esclareceu porque continuou a falhar por todo o país a prevenção dos fogos florestais. Razão tinha o PCP quando denunciou no orçamento o corte de 50% no parque da Arrábida. Razão tinha o PCP quando disse que as medidas do Livro Branco e do relatório desta Assembleia estavam por implantar. Não pode o Sr. Primeiro-ministro continuar apenas a dizer que há muito para fazer perante os gravíssimos prejuízos ambientais e materiais existentes.
Sobre as listas de espera e o escandaloso exemplo que aqui trouxemos, ou sobre a ausência de qualquer referência, no Programa do Governo à necessidade de mais recursos humanos na saúde, nem uma explicação.
E é incrível que em nenhuma das suas longas intervenções, nem o Primeiro-ministro, nem o Ministro da Defesa tenham dito uma palavra sobre a situação das forças da GNR no Iraque expostas ao urânio empobrecido.
O Governo tentou contudo fazer da apresentação do seu programa um veículo para passar duas mensagens políticas: a de que agora a preocupação com a retoma económica seria um ponto prioritário e a de que aumentaria a preocupação social da política do Governo.
Mas na realidade o que vemos é a manutenção do mesmo modelo na economia, assente na continuação da desregulamentação laboral, bem de acordo com a decisão de eliminar o Ministério do Trabalho, que é o mesmo que dizer na manutenção de uma política que privilegia os baixos salários, a carência de direitos e o aumento da exploração dos trabalhadores, em detrimento da aposta numa maior especialização e desenvolvimento tecnológico e científico, na modernização das empresas e na formação dos trabalhadores. O que vemos é a promessa de continuação da restrição cega do investimento público e a falta de compromissos sérios em relação ao aumento dos salários dos trabalhadores portugueses.
E no plano social o que se perspectiva é a continuação da política de degradação e privatização das áreas sociais do Estado; a manutenção das restrições e da quebra da universalidade do direito a prestações sociais indispensáveis como o subsídio de desemprego, de doença ou o abono de família. A inaceitável recusa do agora chamado Rendimento Social de Inserção a dezenas de milhares de famílias que a ele deveriam ter direito, o que sempre foi aliás o objectivo da política dita “social” de Bagão Félix.
O Governo utilizou ainda, na questão do IRS, uma nova figura política que podia chamar-se de quase-promessa. Foi dizendo que deseja alterar o IRS mas sem nunca se comprometer em definitivo com essa alteração e sem nunca dizer de que forma o vai fazer.
Sobre a quase-promessa do IRS duas notas fundamentais. A primeira é que este Governo é responsável pelo efectivo agravamento da carga fiscal em IRS nos últimos anos. Os trabalhadores por conta de outrem pagaram mais imposto. A segunda é que quem quer aliviar a carga fiscal sobre quem trabalha, não precisa de folga orçamental, precisa de vontade política. Vontade de por exemplo reduzir os benefícios fiscais de que a banca beneficia, ou de tributar as mais-valias bolsistas e aplicar esses ganhos num maior equilíbrio e justiça fiscal.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Já sabemos que daqui a pouco o Primeiro-ministro vai encerrar este debate procurando, em registo de populismo de tom suave, criar a ideia de que as coisas vão melhorar para os portugueses. Vai retomar a ideia de que brevemente teremos aí uma retoma sustentada. Vai reconhecer, com ensaiada humildade, que ainda há muito para fazer, que há problemas para resolver.
Falará ao coração dos portugueses das suas sinceras preocupações com os que sofrem, com os que menos têm. Dirá a todos que é para eles que vai trabalhar e que o fará até aos fins-de-semana.
Provavelmente retomará, com estudada pose institucional, a ideia de que respeita o Parlamento, o Presidente, as oposições e de que cumprirá todos os seus deveres democráticos.
E finalmente receberá, com ar modesto, a ovação, certamente de pé, que a diligente maioria lhe prestará. Poderá então exibir a moção de confiança aprovada, procurando retirar dela a legitimidade que na realidade lhe falta.
Desengane-se Sr. Primeiro-ministro. Nenhuma moção de confiança substitui a legitimidade do voto que o seu Governo não tem.
E saiba, Sr. Primeiro-ministro, que tal como não nos resignámos com a continuação do Governo anterior até 2006, também não nos resignaremos com a continuação deste seu Governo, porque sabemos que o que há de mais urgente para Portugal e para os portugueses é a interrupção da sua política e a derrota do seu Governo.