Programa do XVI Governo
Intervenção de António Filipe na
Assembleia da República
27 de Julho de 2004
Senhor Presidente,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,
Se fosse por vontade dos portugueses não estávamos hoje aqui a debater o Programa deste Governo. Estamos a debater o Programa do Governo de uma maioria que os portugueses já repudiaram nas urnas, um Governo que não tem legitimidade própria e que só tem o apoio declarado dos liberais mais fundamentalistas e das gentes do aparelho que se agarram a este Governo com a convicção dos náufragos que se agarram a uma tábua à deriva como se de um salva-vidas se tratasse.
O Governo do Dr. Durão Barroso conduziu o nosso país a uma profunda recessão económica, a um enorme retrocesso social e a uma grave crise de credibilidade do sistema político. O Governo do Dr. Santana Lopes promete ser um Governo de involução na continuidade. À fórmula propagandística do anterior Governo, “Portugal em acção”, sucederá provavelmente, a fórmula, mais sugestiva, de “Portugal em re-acção”.
Estamos na verdade perante o Programa de Governo mais reaccionário da democracia portuguesa. E isto é muito mais preocupante que as trapalhadas que já marcaram o início de funções deste Executivo, que foram muitas.
Primeiro era o Governo que iria ser o mais pequeno, mas que afinal será o maior; depois, foi o futuro Primeiro-Ministro, ainda nem sequer indigitado, a dizer que ía deslocalizar Ministérios; depois foi o Ministro de Estado e da Defesa Nacional a abrir a boca de espanto quando, no acto de posse, soube que ía ser Ministro dos Assuntos do Mar; depois foi o Primeiro-Ministro já indigitado a avisar a comunicação social de que as possibilidades que anuncia não são para levar a sério; depois foi o Ministro da Defesa a anunciar o momento histórico em que Portugal ía ter uma Secretária de Estado da Defesa Nacional; depois, foi a tomada de posse dos secretários de Estado adiada à espera que o Primeiro-Ministro inventasse à pressão uma nova Secretaria de Estado para encaixar a Secretária de Estado que afinal, em consequência da remodelação governamental mais célere da História, foi substituída por mais um homem; depois, foi a disputa, digna da comédia à portuguesa, entre os Ministros das Cidades e do Ambiente, pela posse do mesmo Gabinete, com o Ministro das Cidades a chegar primeiro que o Ministro do Ambiente e a descarregar-lhe os melindrosos dossiers nos corredores do Ministério; depois, foi a já famosa decisão de deslocalizar o Gabinete de seis Secretários de Estado, tendo como único critério visível a tendencial proximidade com o local de residência dos próprios.
Estas trapalhadas dão aos portugueses a ideia de um Governo sem nexo, feito em cima do joelho e ao sabor de amiguismos. Mas, pior do que isso, o que a organização e o Programa revelam, é um Governo assente numa concepção ideológica ultraliberal.
Este Governo acaba com o Ministério do Trabalho, como que a culminar a ofensiva desencadeada pelo Ministro Bagão Félix contra os direitos de quem trabalha. Esta opção, de subordinar o mundo do trabalho aos ditames da economia, encara os trabalhadores como peças de uma engrenagem, para usar e deitar fora em função dos interesses do patronato.
O que este Governo apresenta à Assembleia da República é um Programa de retrocesso social. Privatizar tudo o que pode e não pode ser privatizado. A saúde, a educação, a segurança social, as infra-estruturas básicas de interesse colectivo, tudo é para entregar a privados, consumando uma real operação de saque do património e de bens públicos e um autêntico assalto à bolsa dos portugueses que, para além de massacrados por um sistema fiscal injusto que só penaliza quem trabalha, se vêem a braços com os encargos de sistemas de saúde e de educação cada vez mais onerosos e inacessíveis, com os aumentos dos custos dos transportes, com a multiplicação das portagens nas vias rodoviárias, com a redução da protecção social quando em situação de doença, de desemprego ou de pobreza.
O capítulo do Programa do Governo referente à Administração Pública não podia ser mais claro, quando se propõe reservar para o Estado as funções que envolvem o exercício do poder de autoridade, remetendo-o, quanto ao mais, para funções de regulação, auditoria e fiscalização. Ou seja: Para o Estado, ficam as Forças Armadas, as polícias, e a cobrança de impostos. Para os privados, tudo o resto. Nunca se foi tão longe no ataque aos direitos dos cidadãos consagrados na Constituição da República.
O Senhor Primeiro-Ministro já anunciou que, para o ano, se houver folga, pode ser que desagrave o IRS. Cá estaremos para ver se essa intenção será uma realidade ou apenas mais uma possibilidade. Mas importa deixar claro que o agravamento ou o desagravamento do IRS não é uma questão de folga financeira, mas de vontade política. Se o Governo quer ter folga para desagravar o IRS, combata a fraude e a evasão fiscal, reduza os benefícios fiscais sobre a especulação financeira, agrave a carga fiscal sobre os lucros dos bancos, ponha cobro às escandalosas operações off-shore, e verá que terá folga mais que suficiente para reduzir o IRS sobre quem trabalha.
Mas o que vemos no Programa do Governo não é isso. Não
vemos nenhum compromisso de baixar o IRS para os trabalhadores e as camadas
mais desfavorecidas, nem sequer de compensar o aumento da carga fiscal que ocorreu
nos últimos anos. O que vemos é o compromisso de favorecer os
grandes grupos económicos isentando por exemplo as operações
de concentração.
Este Governo vai continuar a dizer o que o anterior já dizia há
mais de um ano: Que vem aí a retoma. Mas o que os portugueses sentem
é que estão a viver pior. Quem sente a retoma é quem compra
casas e carros de centenas de milhares de euros e quem passeia insultuosamente
os sinais exteriores de riqueza nas festas dos novos e velhos ricos. Quem está
no desemprego e quem vive do seu trabalho ou da sua reforma, tem de contar os
cêntimos para fazer face aos encargos familiares básicos, com os
bens de primeira necessidade cada vez mais caros e com os salários e
as pensões cada vez mais degradados.
Os portugueses não acreditam neste Governo, como não acreditavam no anterior. Foram muitas as promessas feitas e não cumpridas. Tantas promessas de prevenção dos fogos florestais, depois da tragédia do ano passado, e este ano a situação esteja ainda pior. Tantas promessas de que os serviços públicos funcionariam todos on-line no prazo de um ano, e passados três anos os candidatos ao ensino superior tiveram de ir para a fila às seis da manhã. Tantas promessas de celeridade da Justiça, e ainda esta semana vimos os trabalhadores de uma empresa receber salários em atraso, sem juros, com 20 anos de atraso. Tanta promessa de redução das listas de espera e tanta gente sem acesso a cuidados de saúde e sem dinheiro para medicamentos. Tanta promessa de melhorar o sistema educativo e tanta trapalhada nos concursos de professores. Tanta promessa e tanto descontentamento, dos funcionários públicos que não são aumentados há três anos, dos polícias que ainda não recebem o célebre subsídio de risco, dos antigos combatentes que ainda não receberam nada, dos militares que não podem progredir nas carreiras. Tanta solenidade na promessa do anterior Primeiro-Ministro de que haveria um referendo sobre o Tratado de Constituição Europeia para o referendo passar agora a ser uma mera possibilidade.
Este Governo não merece a confiança dos portugueses e confrontar-se-á no dia a dia com o descontentamento que a sua governação não deixará de gerar. O PCP, que defendeu o direito do povo português decidir soberanamente da solução para a crise e para a instabilidade que com este Governo não deixará de se agravar, fará a este Governo a oposição firme, coerente e enérgica que os portugueses exigem e exprimirá aqui frontalmente a rejeição que este Governo merece.
Disse.