Declaração política sobre a retenção
pela Ministra da Justiça de descontos para a Segurança Social
e a Caixa Geral de Aposentações
Intervenção de Lino de Carvalho
28 de Janeiro de 2004
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Dois factos políticos abalaram nos últimos dias a quietude das nossas vidas: a espantosa noticia de que a Ministra da Justiça reteve ilegalmente, durante um ano, os descontos e as contribuições para a Segurança Social e a CGA de cerca de 600 dos seus trabalhadores e a não menos espantosa opção de um conhecido empresário português a favor da anexação de Portugal pela Espanha. São dois factos aparentemente sem relação entre si, mas não tanto assim.
A retenção por um departamento do próprio Governo de descontos efectuados pelos seus trabalhadores para o Sistema Público de Segurança Social e a Caixa Geral de Aposentações levanta várias perplexidades. Perplexidades que a vinda de emergência, esta manhã, da Ministra da Justiça à 1.ª Comissão e a sua confrangedora explicação não resolveram. Pelo contrário, a prestação da Ministra da Justiça só serviu para confirmar os factos conhecidos: que o Ministério da Justiça reteve ilegalmente descontos dos trabalhadores para os sistemas de protecção social. Mas há outras questões ainda que importa esclarecer. Em primeiro lugar, estando perante um crime contra a Segurança Social punível com multa e prisão que pode ir, no mínimo, até três anos, importa saber se o Ministério da Segurança Social e do Trabalho tutelado pelo Ministro Bagão Félix, colega não só de Governo mas também de partido da Ministra Celeste Cardona, accionou ou não os procedimentos judiciais referentes ao sancionamento da Ministra da Justiça previstos no Código de Processo Penal. Se não o fez terá de explicar as razões sob pena de se tornar cúmplice da sua colega de Governo. Porque não passa seguramente pela cabeça de ninguém que quando o Governo acciona empresas e autarquias por actos idênticos não o faça, para dar o exemplo, aos seus próprios membros. Em segundo lugar é preciso esclarecer se esta prática ilegal não se passa noutros Ministérios, por exemplo, no Ministério da Saúde. Os Ministérios do Trabalho e das Finanças deveriam promover desde já auditorias a todos os departamentos do Governo para se conhecer a amplitude destas situações. Em terceiro lugar importa também saber como é que o Governo se propõe indemnizar os trabalhadores prejudicados pela perda de regalias sociais a que tinham direito.
E não vale a pena repetirem as desculpas mal inventadas e demagógicas produzidas esta manhã pela Ministra Celeste Cardona e por alguns deputados da maioria: o problema não é o da manutenção do emprego dos funcionários judiciais em causa que o Governo levou um ano a resolver, para no final os manter à mesma com o estatuto de trabalhadores eventuais. A questão não é essa. A questão é a partir do momento em que o Ministério fez os descontos deveria de imediato tê-los entregue à Segurança Social ou à CGA como dispõe expressamente os art.ºs 105.º, 106.º e 107.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. Depois de tudo isto, somado à óbvia incapacidade que a Ministra da Justiça tem revelado na resolução dos problemas com que o sistema de justiça se defronta, uma questão se coloca: a Ministra Celeste Cardona não tem quaisquer condições para se manter à frente do Ministério da Justiça. E esta é uma questão que compete ao Primeiro-ministro resolver.
Mas é evidente que este comportamento do Ministério da Justiça arrasta consigo toda a já baixa credibilidade do Governo em matéria de combate à fraude e evasão fiscal e às fugas de contribuições para a Segurança Social. Onde está a eficiência desse combate se a fuga começa na própria casa!? E ironicamente começa exactamente no Ministério que o Governo tinha anunciado como devendo passar a ter um papel central no combate à evasão fiscal. Vê-se! Onde está a eficiência desse combate se as dívidas crescem exponencialmente!? Aí temos, aliás, esse novo buraco criado com a extinção do Imposto sobre as Sucessões e Doações, outra coroa de glória do CDS/PP. Sempre o CDS/PP a levar o PSD pela arreata. E que moral passa a ter o Governo para exigir aos outros aquilo que ele próprio não pratica!? Nenhuma, seguramente.
Mas o que este comportamento amoral do Ministério da Justiça põe também em relevo é a trapalhada a que o Governo está a conduzir as contas públicas. Para serem apresentados défices virtuais e contenção artificial da despesa pública tudo serve, provocando as maiores disfunções e perversidades no funcionamento de todo o aparelho de Estado e da vida económica e social em geral. Não se reembolsa atempadamente o IRS; bloqueia-se a devolução do IVA às empresas exportadoras a partir de Novembro, com o pretexto de se estar a investigar um excesso de pedidos de reembolso. Mas, curiosamente, passado o final do ano, já se liberta o respectivo valor. Retêm-se ilegalmente as contribuições para a Segurança Social para se poder compensar os cortes no Orçamento do Ministério da Justiça. E o Ministério da Saúde monta uma autêntica contabilidade criativa em relação às suas contas, escondendo os custos da privatização dos Hospitais. Entretanto, cedem-se créditos tributários a uma entidade financeira multinacional, o CitiGroup, por meras razões de encaixe financeiro imediato, em condições de total falta de transparência, sem que o parlamento conheça, até hoje, o respectivo contrato e portanto sem que se conheçam os encargos a prazo para o erário público. E, entretanto, asfixia-se a população, designadamente os que vivem dos rendimentos do seu trabalho e das suas magras pensões de reforma, com enormes aumentos de preços, com congelamentos salariais, enquanto simultaneamente se aumenta três vezes a rapaziada nomeada para a gestão dos Hospitais SA.
Perguntar-se-á: mas ao menos isto tudo está a conduzir a uma correcta consolidação das contas públicas e a abrir perspectivas para a recuperação da economia? Não é isso que demonstram os resultados. Aos virtuais 3,9% do défice oficial de 2003 deverão acrescentar-se, pelo menos, mais dois pontos percentuais devido às operações de engenharia financeira que não corresponde a nenhuma efectiva consolidação do equilíbrio das contas públicas. E em relação a 2004 o que temos pela frente é a continuação de uma perda de velocidade em relação à União Europeia e do aumento do desemprego que em finais de 2003 já atingia mais de 450.000 trabalhadores, 9,4% da população activa. É este o resultado a que a política do Governo está a conduzir o País. É não somente uma crise económica e social profunda mas também uma crise de valores, de valores éticos, de valores morais, de valores de coerência, de confiança nas instituições e no Estado. O que pensarão os portugueses quando verificam, todos os dias, que saem do próprio Governo, os piores exemplos? São as cunhas entre Ministros, as nomeações para a rapaziada do PSD e do CDS.PP, os favores aos amigos, a manipulação das contas, a retenção ilegal dos descontos que os trabalhadores fazem para os sistemas de protecção social, a total falta de perspectivas para o futuro do País.
Talvez tenha sido por isto tudo que lemos, neste fim-de-semana, o grito de alma de um conhecido empresário português: “faça-se a Ibéria”. Entreguemo-nos à Espanha. E o que é interessante verificar é que os mesmos que agora afirmam que Portugal não tem futuro se não se ligar à Espanha, os mesmos que vendem as suas empresas aos investidores espanhóis, os mesmos que quando recebem uma empresa privatizada tratam de a passar por milhões aos nossos vizinhos da Meseta Ibérica, são os mesmos que assinaram um tal Manifesto dos 40 que tanto clamava pela manutenção, em Portugal, dos centros de decisão económica e financeira. E são os mesmos que, com o beneplácito de sucessivos Governos, não investem na modernização das suas empresas, não apostam em cadeias de produção de maior valor acrescentado, não procuram novos mercados, não investem na formação e passam a vida a reclamar menos direitos para os trabalhadores e mais apoios e subsídios do Estado!? Então não é verdade, por exemplo, que a percentagem de despesa em I&D realizada nas empresas é de 22,7% em Portugal contra 54,3% em Espanha? E que a percentagem de participação empresarial no financiamento de I&D realizada pelo sector público e pelas universidades é de 3,7% em Portugal contra 7,3% em Espanha? E que foi nesta Assembleia, que foi recusada uma medida tão simples como a de tornar público os ordenados dos membros dos Conselhos de Administração das empresas cotadas, medida que, por razões de transparência, já existe em Espanha e noutros países, com o espantoso argumento que essa era a vontade dos “mercados”!?
Face a um Governo e a uma maioria de direita com estes comportamentos; face ao acelerado processo de federalização europeia que alguns abraçam com excesso de ligeireza; face a uma classe empresarial que aspira pela invasão dos espanhóis, seria de facto para descrer do futuro deste País, como País independente e soberano. Mas não o cremos. Portugal tem dentro de si, como sempre teve, as forças sociais e políticas necessárias à construção de um País desenvolvido, aberto ao mundo mas soberano e independente, que se mobiliza por causas, que luta por mais justiça social. Esta é a nossa mais profunda convicção.
Disse.