Moção de censura ao Governo
Intervenção do Deputado Carlos Carvalhas
26 de Março de 2003

 

Senhor Presidente
Senhores Deputados
Senhor Primeiro-Ministro

Hoje, dia 26 de Março de 2003, o seu Governo está confrontado com muito mais que quatro moções de censura.

Porque está, acima de tudo, confrontado com os seis dias já decorridos da guerra ilegal que quis, da guerra de destruição que apoia e da guerra de agressão de que é cúmplice.

O Senhor Primeiro- Ministro pode voltar a erguer hoje e aqui, na sede da representação nacional, as cortinas de palavras que a inspiração do momento ou o esforçado labor dos seus colaboradores forem capazes de construir.

Mas a verdade é que, ainda que as imagens e os relatos que nos chegam da guerra sejam apenas um centésimo de tudo o que de horrível, trágico e revoltante se está a passar e a acontecer, deviam bastar para o seu sobressalto de consciência por ter ligado o nome de Portugal a esta cruzada.

Sr. Primeiro-Ministro: olhe para a obra de devastação em curso no Iraque, imagine o terror e a insegurança de milhões de iraquianos escondidos e amontoados em caves e esmagados pela incerteza dos bombardeamentos, olhe as vitimas civis que apesar de todas as precisões vão sendo ceifadas, olhe para as expressões e para o olhar dos prisioneiros de guerra de um lado e de outro e do indizível medo que revelam, imagine uma cidade como Bassorá há vários dias sem água certamente porque as tropas americanas consideram os sistemas de abastecimento de água como perigosos alvos militares, olhe a catástrofe humanitária que mais cedo que tarde se vai revelar em toda a sua dramática dimensão.

Olhe, Pense reflicta e, se não quer mudar, então assuma a desumanidade e a barbárie que a maioria dos portugueses reprova e condena.

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Um especialista americano – John Hulsman do Instituto conservador “the Heritage Foundation” – teorizou recentemente sobre a estratégia americana resumindo-a do seguinte modo: os Estados Unidos agirão de maneira multilateral quando for possível e unilateral quando for necessário.

Esta foi sempre a postura da Administração Bush e o Governo português não o desconhecia. Bush declarou com clareza e por mais de uma vez que faria a guerra ao Iraque com a ONU ou sem a ONU.

É por isso que esta moção de censura é uma moção contra a hipocrisia e a mentira, é uma moção pela verdade.

Contra a hipocrisia e a mentira porque o Governo português sabe muito bem que o que está em causa não é o desarmamento e a democratização do Iraque ou mesmo o derrube do ditador por um país com uma longa e afectuosa convivência com ditaduras – da Arábia Saudita ao Paquistão, do Sudão à Indonésia de 1965, do Chile de Pinochet ao ditador Saddam Hussain. O que está em causa não é a paz face à pseudo-perigosidade do regime. Não se constrói a paz, não se combate o terrorismo nem se impõe a democracia com bombardeamentos. Uma guerra imoral ilegítima e de rapina é sim o melhor meio para criar o caldo de cultura da vingança, dos actos desesperados, dos fundamentalismos.

O que está em causa é a nova ordem do Império, o domínio da região e dos ricos recursos petrolíferos iraquianos pelos EUA: a “BUSH OIL Connection”.

A Administração Bush há muito que tinha decidido invadir o Iraque. A cobertura da ONU se viesse era-lhe útil e útil também para os seus vassalos. Mas com a ONU ou sem a ONU a decisão estava tomada.

Um porta voz da Casa Branca, algumas horas após o discurso presidencial decidindo o ataque, tirou todas as dúvidas, se ainda as houvesse ao declarar: “mesmo que Saddam Hussein deixe o país, as tropas americanas invadirão o Iraque”...

Esta moção de censura é, também por isso, uma moção contra o cinismo e pela autenticidade.

Contra o cinismo daqueles que, na véspera da Cimeira dos Açores, afirmavam que aquela era a última oportunidade para a paz quando tudo já estava decidido; contra o cinismo dos que afirmavam que ainda havia 1% de chances para a paz quando sabiam que 1% de chances, se as havia, era para os nove países do Conselho de Segurança, virem a apoiar uma segunda Resolução salvando a face dos falcões e designadamente de Blair e de Aznar.

Contra o cinismo daqueles que consideraram muito importante que na cimeira dos Açores e à beira do desencadeamento da guerra os EUA viessem à pressa fazer promessas de solução do conflito israelo-palestiniano, quando é bem conhecido o prolongado apoio e a cumplicidade da Administração Bush com a política criminosa de Sharon.

Contra o cinismo daqueles que, como Bush se reclamam da fé cristã, mas que objectivamente decidiram e apoiaram o massacre de inocentes e a barbárie da guerra.

Esta moção de censura é uma moção contra a força e pelo direito dos povos a serem os donos dos seus próprios destinos.

Esta é uma guerra ilegítima e ilegal, decidida contra a vontade do Conselho de Segurança e à margem da ONU.

Uma guerra dita preventiva estaria sempre contra os princípios da Carta da ONU. Mas esta guerra não só não tem o apoio do Conselho de Segurança como é uma guerra que é condenada pela opinião pública mundial e pela maioria dos Estados do planeta.

É um acto de agressão, um acto de força contra o direito internacional e contra a ONU.

Se o objectivo fosse desarmar o Iraque, esta guerra era desnecessária, como afirmaram os inspectores da ONU, que aliás pediram mais tempo para poderem acabar o seu trabalho. Mas é uma evidência que isso não servia aos EUA que tinham e têm outros objectivos.

Por isso, esta moção é de censura a um Governo que apoia este acto de agressão a um país soberano, que apoia esta guerra dita preventiva e unilateral, fazendo prevalecer a força contra o direito.

Mas esta moção de censura ao Governo é também uma moção de censura contra a vassalagem e pela dignidade.

O envolvimento de Portugal nos preparativos da guerra e o apoio do Governo a esta guerra, é um acto de vassalagem ao império que envergonha Portugal.

Pelo artigo 7.º da Constituição da República Portuguesa, que a todos obriga, Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional e não pela subserviência; rege-se pela solução pacífica dos conflitos internacionais e não pelo apoio à guerra antes de estar esgotada sequer a via das inspecções da ONU; rege-se pela não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e não pela ingerência grosseira como tem sido feito. Todos estes princípios estão a ser violados: nem independência nacional, com um governo submisso, nem solução pacífica quando se apoia a guerra, nem não ingerência quando se defende a ingerência descarada.

A realização do Conselho de Guerra em solo nacional com o Primeiro-Ministro de Portugal no triste papel de ajudante menor foi um acto de vassalagem que feriu os sentimentos da opinião pública, os valores do Portugal de Abril, os princípios da Constituição da República.

Como já aqui o afirmámos, para o Sr. Primeiro-Ministro uma fotografia com o Tony, o José Aznar e o George Bush, pode valer bem uma guerra. Mas para nós essa atitude só tem um classificativo: vergonha!

Ao longo destes tempos foi também chocante ouvir o Ministro dos Negócios Estrangeiros dizer que Portugal estava ao lado dos EUA porque é este país e não a França com os seus ferry boats militares que nos poderia defender. De quem Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros?

O que nos pode defender é a dignidade, a luta pela paz e a cooperação, a defesa de princípios e de valores, o cumprimento da Constituição da República.

Esta é ainda uma moção de censura contra o crime e pela paz.

Porque neste acto de agressão, com tal desproporção de meios, o que estamos a assistir é a uma guerra criminosa. Não há guerras limpas, nem artifícios verbais como a dos chamados “danos colaterais” que escondam a morte e a destruição. E a troca de sangue por petróleo é criminosa. Por isso, esta é também uma moção contra o crime, porque não há complexidade e modernidade tecnológica militar que tornem virtuais os mortos, os feridos, os estropiados, a destruição, a tragédia desta guerra. Recordemos as palavras indignadas do ex-Procurador Geral dos EUA, Ramsay Clark, quando revelou que na primeira guerra do Golfo morreram mais de 150 mil iraquianos, principalmente civis.

Uma moção de censura pela paz, porque entendemos que é necessário condenar, isolar, travar e combater os falcões da guerra e os governos que a apoiam.

Porque não aceitamos sem luta que a humanidade tenha chegado ao século XXI com tantas maravilhas e avanços tecnológicos e ao mesmo tempo com as mesmas taras, conflitos e chagas sociais com que os nossos antepassados chegaram ao século XX. Temos a modernidade e a sofisticação tecnológica ao serviço do regresso à força bruta e à idade das cavernas.

Não há artifício que transforme o horror da guerra em “guerra espectáculo” e sobretudo para as crianças e milhares de famílias que são as suas vítimas.

Por isso, Sr. Primeiro-Ministro Durão Barroso, apoiante desta guerra suja: quantas crianças e cidadãos indefesos serão necessários sacrificar para satisfazer a arrogância imperial de Bush e a ganância das companhias petrolíferas americanas e inglesas?

Quantos cidadãos, Sr. Primeiro-Ministro Durão Barroso, terão de ser condenados à morte e sacrificados no altar do lucro para que a ordem americana reine nesta região e no mundo?

O Sr. costuma dizer que também é pela paz. Mas a verdade é que apoia esta guerra. Faz lembrar aquele cartaz: ”bombing for peace is like...”. Os que fazem a guerra dizem sempre o mesmo.

Diz o Primeiro-ministro que, entre a ditadura e a democracia, opta pela democracia, que entre os EUA e a ditadura do Iraque, o Governo não fica neutral, apoia a guerra de agressão dos EUA. É uma evidência que estamos perante um sofisma. A opção não é entre a democracia e a ditadura. A opção é entre a paz e a guerra; é entre o direito e o seu deliberado esmagamento, é entre a valorização das Nações Unidas e uma guerra unilateral que a desprestigia.

E o Governo de forma clara optou pelo seguidismo, pela guerra, pela força, pelo desprestigio das Nações Unidas. Não optou pela democracia. Optou pelas bombas. Optou pela submissão aos senhores do império.

Diz ainda que o Iraque não estava a cumprir a Resolução 1441. Portanto para a fazer cumprir defende a guerra. Mas como o Primeiro-Ministro sabe, essa não é a opinião do Conselho de Segurança, nem dos Inspectores da ONU, nem do Conselho Internacional dos Juristas, organismo de consulta jurídica da ONU que reúne dos mais destacados juristas e que considera esta guerra “um acto de agressão”. Mas o Primeiro-Ministro nem se dá conta do que diz, pois como é sabido nunca se lhe ouviu uma palavra, mesmo em meia voz, mesmo em surdina condenando por exemplo, Israel por frontalmente e reiteradamente não cumprir várias Resoluções da ONU.

É a política dos dois pesos e duas medidas.

Mas que importa a coerência se o império faz o mesmo, dirá o inefável Ministro dos Negócios Estrangeiros... Que importa o direito, as Nações Unidas, a coesão da União Europeia, se caímos nas boas graças dos “senhores do Império”. Que importa que se tenha vendido armas ao Iraque e que se tenha apoiado Saddam na guerra contra o Irão. Isso já é passado. Que importa que em 16 de Março, precisamente no dia em que teve lugar a vergonhosa cimeira dos Açores, há quinze anos atrás, os Curdos na cidade de Halabja tivessem sido bombardeados com gás tóxico, se nessa altura Bagdad era apoiada pelos EUA e Saddam era abraçado por Donald Rmsfeld, que lhe tinha trazido a sua cooperação tecnológica. Que importa a coincidência de uma data negra se o Império tem sempre razão!

Senhor Presidente
Senhores Deputados

Com esta nossa iniciativa, queremos censurar o Governo e dizer-lhe que em nosso nome não compromete o país nesta guerra suja e neste acto de agressão e vassalagem. Não nos compromete, nem à maioria da opinião pública portuguesa na caução a esta guerra, nem nos cálculos frios, cínicos e ignóbeis, dos que conjecturam quanto vão ganhar na Bolsa, no petróleo, nas negociatas da reconstrução, a reconstrução de que tantos falam, sempre se esquecendo que o que a justifica é a prévia destruição que decidiram e apoiaram.

Com esta iniciativa, quisemos também prestar homenagem ao povo palestiniano na luta pelos seus direitos, e às forças da paz que em Israel lutam contra a política criminosa da Sharon.

Quisemos prestar homenagem às vítimas das diversas nacionalidades que esta guerra já fez e vai fazer, manchando tragicamente este início do século XXI. E quisemos saudar a população dos EUA que em diversas cidades tem levantado com determinação a sua voz contra esta guerra injusta, bem assim como, aqueles que ainda esta semana, na cerimónia da entrega dos Óscares, condenaram corajosamente a guerra e a Administração Bush. Quisemos também saudar a opinião pública mundial que já infligiu uma derrota diplomática, política e ética aos falcões da guerra e que é necessário que continue a condenar as forças do império e dos vassalos, isto é, as forças políticas ditas aliadas. Quisemos saudar a opinião pública portuguesa e as forças da paz unidas no repúdio contra esta guerra e os que a defendem.

A história registará que a opinião pública mundial entre as quais a opinião pública portuguesa se mobilizou e exprimiu com grande força e indignação, que vozes corajosas de vários credos e quadrantes políticos não se calaram, que homens de Estado ousaram dizer não, que pequenos e pobres países não alienaram a sua dignidade nem se dobraram à força do dinheiro.

Mas também registará que não houve rendição imediata do Iraque, de pois das toneladas de bombas, nem as rosas, os sorrisos, as fanfarras e a gratidão do povo iraquiano aos novos cruzados da “fé e do Império”, como diziam os prosélitos da guerra e do Pentágono, mas sim rostos com fome, com medo, com desespero e com raiva.

Recusando frontalmente uma alegada convergência na posição das instituições que se sustentaria na subordinação de uma à escalada arrogante de outra, recusamos também com toda a clareza qualquer suposta “unidade nacional” baseada no alinhamento por uma política de factos consumados e submissão à política errada e seguidista deste Governo nesta matéria.

Conscientes que os melhores valores nacionais só se podem afirmar em torno da paz, da cooperação, da dignidade e nunca em torno da guerra de Bush e do petróleo, da indignidade nacional ou da submissão sórdida e obscena de quem espera eventuais recompensas futuras dos senhores do império. Dando voz à população portuguesa que está contra a guerra e a todos aqueles e aquelas que sofrem no seu dia a dia as dificuldades da política neoliberal; da política das contra-reformas na saúde, no ensino, na Segurança Social e na legislação laboral; da política aos serviço dos grandes interesses que é a política deste Governo, o PCP apresenta esta moção de censura assumindo as suas responsabilidades perante o povo e o país.