Revisão do Programa de Estabilidade
e Crescimento
Intervenção do Deputado Lino de Carvalho
8 de Janeiro de 2003
Senhor Presidente,
Senhores Membros do Governo,
Senhores Deputados,
Comecemos por esclarecer uma questão: o PCP é favorável à existência de um programa estratégico de consolidação das finanças públicas que se constitua como factor de crescimento e de desenvolvimento económico e social do País e do processo de convergência real com a União Europeia.
A verdade é que os Programas ditos de Estabilidade e Crescimento, e o que hoje debatemos não é substancialmente diferente, foram criados e são construídos partindo da consideração exactamente de que a disciplina e o equilíbrio das finanças públicas é um fim em si mesmo e para o atingir o déficit é eleito como o critério central e quase exclusivo o que tem contribuído, aliás, não para a promoção do desenvolvimento económico e social mas para a sua própria travagem. E isto tem sido particularmente expressivo nos períodos, como o que atravessamos agora, de abrandamento da economia. E, nesse quadro o que o Governo nos apresenta continua a ser um Programa excepcionalmente restritivo, que nem sequer se dá ao trabalho de questionar a própria metodologia de cálculo do déficit quando hoje já faz caminho a tese de que nele não devem ser incluídas as despesas de investimento.
Mas a outra face da moeda tem a ver como se atingem os objectivos impostos de redução do déficit. Em Portugal, especialmente com o Governo do PSD/CDS-PP, a linha estratégica, quiçá única, tem sido a da redução da despesa, mais aliás da despesa de investimento do que da corrente e, quanto a esta, a tónica tem sido colocada – e é colocada neste Programa para 2003-2006 – no ataque ás despesas com pessoal e às despesas sociais, elegendo-se os trabalhadores da administração pública, aos olhos do País, como os causadores de todos os males. No plano social é intolerável, por exemplo, que o Programa para 2003-2006, ao referir-se ás políticas de educação e às medidas propostas o faça com a alegação de que o seu objectivo é de que tais medidas conduzam não a melhoria da eficiência do sistema de ensino mas “à realização de poupanças”. Esta é a palavra-chave e é uma palavra, aplicada à educação que o mínimo que se pode dizer é que é “criminosa”. A educação é tratada não como um investimento para melhorar a qualificação dos recursos humanos do País mas como uma despesa corrente onde se têm de realizar poupanças e ainda por cima, em Portugal, que menos gasta em educação de todos os Países da União Europeia e onde é consabido, e o próprio Governo o tem afirmado, que tem o maior déficit de qualificações de todos os Estados-membros. Mas esta é também a linha de força que nos é apresentada para a Saúde ou para a Segurança Social: reduzir despesa, aumentar as propinas, aumentar as taxas moderadoras, diminuir os encargos com as políticas de solidariedade e segurança social, reduzir o papel das políticas e das responsabilidades públicas e privilegiando as políticas de privatizações que é o que o Governo quer dizer com o eufemística “redefinição das funções do Estado”. Isto é particularmente chocante quando, logo nas primeiras linhas do PEC, se afirma que a reforma da Administração Pública deve ser encarada não para melhorar a qualidade dos serviços prestados aos cidadãos e a qualificação e condições sociais dos seus trabalhadores mas para “libertar recursos para o sector privado”.
Em contrapartida nada se vê, ou só com uma lupa se consegue enxergar, qualquer medida efectiva do lado da receita, designadamente quanto ao alargamento da base tributária. A norma que o Governo prossegue não é a de que todo o rendimento deva ser tributado. Não. A norma é que aqueles que já pagam muito, como são os trabalhadores por conta de outrém, sejam mais penalizados e vejam a sua carga fiscal agravada. Para o justificar o Governo acena-nos com um quadro enganador: de que Portugal seria um dos Países com uma maior taxa de Imposto sobre os Lucros. É preciso dizer que o Governo, ao escrever isto no Programa que nos apresenta e vai apresentar a Bruxelas, não está a falar verdade. Em primeiro lugar, porque a taxa efectiva de tributação em IRC, devido aos mecanismos que permitem múltiplas deduções aos lucros e benefícios fiscais, não passa dos 22,5 % e, como se sabe há sectores, como a Banca, onde não se vai além de 12 a 13%. Isto é, é enorme e tem vindo a aumentar a diferença entre a taxa legal e a taxa efectiva (ou o rácio entre o IRC liquidado e a matéria colectável). Depois porque há múltiplos rendimentos de capital não sujeitos a tributação. Veja-se o que se passa com as mais valias obtidas nas operações bolsistas ou nos capitais que circulam pelo off-shore da Madeira. E, finalmente, porque a fuga, a fraude e a evasão fiscal é gigantesca e o Governo não tem vontade política para a combater a não ser através de periódicos “perdões” que até podendo traduzir-se, no imediato, nalguma arrecadação de receita (de que, conforme revelou ontem a Ministra das Finanças beneficiou muitas grandes empresas) nem por isso deixa de ser profundamente injusto para com todos aqueles que pagam os seus impostos pontualmente correndo claramente o risco de ser incentivador da consolidação de uma mentalidade de fuga ao fisco na certeza de que um dia virá sempre mais um perdão.
Mas analisemos também a forma como o Governo, a todo o custo, pretende atingir o nível de déficit que se propõe a partir do que se passou em 2002. Já o dissemos na declaração política que aqui proferimos em 18 de Dezembro. O Governo adoptou um conjunto de medidas extraordinárias para captar receitas extraordinárias, de forma avulsa e desgarrada, mas nada alterou quanto às condições estruturais das finanças públicas. A demonstração disso está no nível de receitas fiscais normais que vão ficar cerca de 1.000 milhões de euros abaixo do previsto. Ora as receitas extraordinárias a que o Governo deitou mão, penalizando em muitos casos o orçamento dos portugueses – a reintrodução das portagens na CREL é só o mais recente – não se vão repetir, em grande parte em 2003 ou nos anos seguintes. E como não foram adoptadas medidas estruturantes o que vamos ter nos próximos anos, para cumprir o Programa que agora é apresentado são um conjunto de políticas de sacrifício para os portugueses traduzidas em mais desemprego, aumentos de impostos, redução de salários. É simbólico que a medida mais visível e quantificada deste Programa seja a redução do emprego na Administração Pública à razão de “cerca de 1,5%” ao ano e uma “forte contenção salarial” (e aí temos o anunciado congelamento da obrigatória progressão nas carreiras) a que se junta uma redução das transferências do Orçamento de Estado para o Serviço Nacional de Saúde e, especialmente, para a Educação. Aqui, o anúncio de aumentos anuais de 1,6% na afectação de recursos públicos para o ensino não superior e a recusa de qualquer aumento nas transferências para o ensino superior significam a mais brutal diminuição do financiamento a que o Estado está obrigado com todas as consequências a prazo para a continuada desqualificação do ensino em Portugal. Não vale a pena que os titulares dos diversos órgãos de soberania (com editorialistas e comentadores) chorem lágrimas pela falta de qualidade do nosso sistema de ensino quando as políticas são estas. A isto juntem-se os brutais aumentos das tabelas de preços dos bens e serviços públicos (electricidade, água, medicamentos, portagens, etc.) que o Governo anuncia no PEC que irão prosseguir a valores superiores à taxa de inflação, e aí temos a receita para se atingirem, a todo o custo, as irracionais metas que são propostas.
Quando o Presidente da República, em Florença e agora na Mensagem de Ano Novo se mostra preocupado com as consequências económicas e sociais dos Pactos de Estabilidade e, por outro lado, apela a uma política de combate à fraude e à evasão fiscal, tem, neste Programa para 2003-2006, condicionador da política orçamental nos próximos quatro anos, a expressão exactamente oposta do que defende e, por isso, uma nova razão para juntar a sua voz à daqueles que entendem que é chegada a hora de uma outra racionalidade na definição e articulação dos Programas de Finanças Públicas da zona euro, dando mais espaço às necessidades diferenciadas de cada Estado e conjugando-os com desenvolvimento e justiça social.
Acontece, por último, que as projecções que são apresentadas merecem muita pouca credibilidade. Ainda em Dezembro passado o Governo obstinou-se a defender as projecções macroeconómicas que apresentou na proposta de Orçamento de Estado para 2003 contra a acusação que o PCP fez do seu irrealismo e manipulação. Pois bem. Já nessa mesma altura o Governo tinha consciência de que os valores que apresentava nada tinham a ver com a realidade (como os actuais, de novo revistos em baixa, continuam a não ter) porque já nessa altura estava a trabalhar nos dados que agora nos apresenta: crescimento do PIB em 1,3% em 2003 (ou será 1,2% como está 14 páginas à frente no mesmo Programa, que apresenta dois números ?) contra 1,75% no Orçamento de Estado. Crescimento de 4,7% nas exportações contra 6% no Orçamento.0,5% nas Importações contra 2,75% no Orçamento. 0,2% de crescimento no Investimento contra 2% no Orçamento. Mas o que não deixa de ser estranho é que baixando o Governo as previsões que tinha apresentado para o crescimento do Produto não tenha praticamente, como teria de ser, alterado também as previsões de receitas. Isto é não só as projecções não merecem qualquer credibilidade como os valores estão completamente manipulados. Aliás, não exageraremos se dissermos que, em boa verdade, este Programa deveria ser acompanhado de um Orçamento rectificativo porque o que esta Assembleia aprovou não tem nada já a ver com aquilo que agora é proposto.
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Este é o Programa chamado de Estabilidade e Crescimento que o Governo apresenta para 2003-2006. E, como demonstrámos, por este caminho não vamos longe. Não temos uma proposta que construa, como o Governo afirma, qualquer “futuro socialmente saudável”. Pelo contrário. O que temos é um Programa que não resolve nenhum problema de fundo nas finanças públicas, que vai criar ainda mais dificuldades ao relançamento da economia do País, que obriga os portugueses a apertar ainda mais o cinto.
Disse.