Constituição de uma comissão eventual
para a reforma do sistema político
Intervenção do Deputado António Filipe
8 de Maio de 2002
Sr. Presidente,
Srs. Deputados
A presente Legislatura iniciou-se sob o signo da chamada reforma do sistema político, o que não constitui propriamente nem uma novidade nem uma surpresa.
Na verdade, desde há mais de 20 anos que, no início das legislaturas, no fim das legislaturas e antes, durante e após os sucessivos processos de revisão constitucional - e foram seis nos últimos 20 anos, considerando um que não chegou ao seu termo -, os dois maiores partidos elegem a reforma do sistema político como ponto obrigatório da agenda política e parlamentar
O PCP não recusa essa discussão, como é óbvio, e encara com entusiasmo e empenhamento quaisquer medidas que possam ser tomadas no sentido de valorizar a participação dos cidadãos na vida política e de contribuir para uma prática que prestigie a actividade dos órgãos de soberania e dos políticos eleitos, em geral, perante o povo, a quem devem a eleição, a quem devem regular e, seriamente, prestar contas da sua actuação.
Em todo o caso, é preciso afirmar, como toda a clareza, que não há um problema de sistema político, em Portugal. O sistema político e constitucional vigente pode, evidentemente, ser aperfeiçoado, mas tem permitido, no essencial, o funcionamento regular das instituições democráticas.
Os maiores problemas com que o povo português se confronta não são os que decorrem da configuração dos sistema político, são outros, são os que decorrem das baixas pensões de reforma, que muitos milhares de portugueses auferem ao fim de uma vida de trabalho, dos baixos salários de muitos milhares de trabalhadores, da falta de acesso a cuidados de saúde, ou das dificuldades do sistema educativo. Estes, sim, são os problemas que estão, seguramente, no centro das preocupações dos portugueses.
O descrédito em que a vida política vai caindo aos olhos de muitos cidadãos e que se traduz em quebras preocupantes da participação eleitoral não resulta de qualquer repúdio popular em relação ao sistema de representação proporcional ou à existência de círculos plurinominais para a Assembleia da República. O descrédito da vida política resulta, acima de tudo, da prática de certos políticos, que prometem muito antes eleitos e que fazem pouco depois de eleitos, e de governantes que, uma vez empossados, se esquecem rapidamente de tudo o que prometiam quando estavam na oposição.
No entanto, também desta vez a legislatura começou sob o signo da reforma do sistema político e os dois maiores partidos se apresentam com propostas, que, a avaliar pelo que foi tornado público, em vez de contribuírem para aperfeiçoar o sistema político e valorizar o papel dos cidadãos, se traduzem, afinal, na repetição de propostas já conhecidas e já «estafadas» e que mais não visam do que instrumentalizar o sistema político a favor de interesses partidários.
Quando se verifica que a intenção dos dois maiores partidos, quanto à reforma do sistema político, volta a traduzir-se, nomeadamente, na insistência, já obsessiva, da redução ainda maior do número de Deputados e na introdução de círculos uninominais de candidatura à Assembleia da República chega-se, mais uma vez, à conclusão de que o que os move é, afinal de contas, reduzir ainda mais a proporcionalidade do sistema eleitoral e a pluralidade da composição da Assembleia da República, por forma a obterem, alternadamente, na secretaria, as maiorias absolutas que os eleitores lhes têm negado nas urnas.
A redução do número de Deputados não obedece a qualquer intuito sério de valorizar o trabalho da Assembleia da República. Os argumentos que agora são utilizados para defender a redução do número de Deputados, de 230 para 180, são precisamente os mesmos que foram utilizados em 1989 para impor a redução de 250 para 230, facto que teve como único resultado não o aumento da qualidade do trabalho da Assembleia da República mas, antes, a redução da proporcionalidade e a acentuação artificial da bipolarização.
Por outro lado, volta a insistir-se na criação dos círculos uninominais.
Depois do triste espectáculo, dado na passada Legislatura, em que um Deputado, em nome de supostos interesses de um município que afirmava representar no Parlamento, aceitou viabilizar Orçamentos do Estado na base de uma negociata sem princípios, para descrédito da vida política portuguesa, volta a insistir-se na criação de um modelo de representação que tornaria o Parlamento numa soma de Deputados «limianos», transformados em meros procuradores de interesses locais.
E, mais uma vez, não deixa de ser irónico que os partidos, que tudo fizeram para transformar a eleição para a Assembleia da República em eleição directa de supostos candidatos a Primeiro-Ministro, se mostrem agora muito preocupados com a ligação entre os eleitos e os eleitores.
O objectivo é, evidentemente, outro, é, mais uma vez, o de reservar aos dois maiores partidos o direito de elegerem Deputados, remetendo à irrelevância e à ausência de representação o voto dos eleitores que não abdiquem do seu direito à escolha de opções políticas alternativas.
Para o PCP, a reforma do sistema político deve passar pelo reforço da proporcionalidade, já muito debilitada no actual sistema, nomeadamente através do um reequilíbrio da representação regional.
Para o PCP, a reforma do sistema político deve passar também pela urgente revisão do Regimento da Assembleia da República, valorizando o debate político e a capacidade deste órgão de soberania para fiscalizar devidamente a actividade do governo e da administração pública, e, acima de tudo, pela valorização da iniciativa dos cidadãos junto da Assembleia da República, com a reformulação do regime de apreciação das petições e a regulamentação legal do direito de iniciativa legislativa popular.
Para este efeito, não seria, em nosso entender, necessário criar uma comissão parlamentar eventual. Existe a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e, dado que é de assuntos constitucionais que se trata, não se vê a necessidade de criar uma outra comissão. Veremos até se, na sua maioria, os Deputados não serão os mesmos.
Em todo o caso, o PCP participará neste processo, apresentará as suas próprias propostas e empenhar-se-á com seriedade para melhorar o funcionamento do sistema político.