Intervenção do Deputado
António Filipe
Revisão extraordinária da Constituição
22 de Março de 2001
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
O PS e o PSD propõem hoje a abertura de um processo extraordinário de revisão constitucional. Pretende o PS que a Constituição seja revista por forma a permitir a ratificação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e a habilitar o nosso país a corresponder a necessidades decorrentes da construção do chamado "espaço de liberdade, segurança e justiça" previsto no Tratado de Amesterdão. Já o PSD, prefere juntar o útil ao agradável, e pretende aproveitar o ensejo de viabilizar a ratificação do Estatuto do TPI para consagrar a reciprocidade de direitos políticos entre portugueses e brasileiros, para limitar os mandatos de alguns titulares de cargos políticos e para consagrar a proibição do direito de greve por parte dos profissionais de forças de segurança.
Por agora, é este o caderno de encargos. Mas, como evidentemente, aberto o processo de revisão extraordinária da Constituição, nenhum Deputado pode ser privado do direito de propor o que muito bem entender, nem do direito a ver devidamente ponderadas e debatidas todas as propostas que fizer, não sabemos ainda qual será a extensão das matérias a discutir no âmbito deste processo.
Para não fugir à tradição de lamentáveis processos anteriores, este processo de revisão começa mal, com as direcções políticas do PS e do PSD a decidir fora da Assembleia da República aquilo que só à Assembleia da República no seu conjunto compete decidir.
Sendo a revisão constitucional algo que só a Assembleia da República pode decidir e de que só os deputados, mas todos os deputados, dispõem de poder de iniciativa, mais uma vez assistimos ao desencadear de um processo que em vez de ser debatido na sua única sede própria, que é esta Assembleia, foi decidido a sós entre o engenheiro António Guterres e o Dr. Durão Barroso.
Concordando o secretário-geral do PS e o presidente do PSD com a conveniência de abrir um processo extraordinário de revisão constitucional, e acertando ambos as intervenções cirúrgicas que cada um pretende efectuar no texto constitucional ainda mal cicatrizado de operações anteriores, fica decidido o quê, o como e o quando da revisão constitucional.
E a Assembleia da República, apesar de ser o único órgão de soberania competente para rever a Constituição limita-se a ceder as suas instalações para que o PS e o PSD possam levar à cena uma peça de teatro que previamente escreveram e ensaiaram.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
A Constituição da República Portuguesa completa, dentro de poucas semanas, 25 anos de vigência. Passou, neste quarto de século, por 3 processos de profunda revisão ordinária e por um processo de revisão extraordinária com enormes implicações substanciais. Se não nos esquecermos da tentativa de revisão falhada em 1994, reparamos que só nos últimos 12 anos este será o 5º processo de revisão constitucional a ocorrer no nosso país, o que quer dizer que vivemos num estado permanente de transição e de instabilidade constitucional que nada prestigia as instituições democráticas.
Com a agravante de o PS e o PSD nos últimos anos transformarem os processos de revisão constitucional numa sucessão de trapalhadas que só desacreditam a vida política aos olhos dos cidadãos, alterando e reescrevendo o texto constitucional ao sabor das tácticas e conveniências do momento.
Do ponto de vista do PCP, a pouco mais de um ano da data a partir da qual a Constituição permite a abertura de um processo de revisão ordinária, não há nenhuma razão cuja premência obrigue à realização para já de uma revisão extraordinária. Num momento em que alguns dos instrumentos fundamentais para a definição de aspectos essenciais do TPI ainda não estão concluídos, e em que muitos dos Estados subscritores do Estatuto ainda aguardam tais definições para decidirem em definitivo da sua eventual ratificação, não há razão nenhuma para que Portugal se apresse a rever imponderadamente a sua Constituição.
Quando os nossos constituintes rodearam os processos de revisão constitucional de estritos limites formais, circunstanciais e materiais, fizeram-no seguramente para salvaguardar a nossa Lei Fundamental da tentação das revisões casuísticas. A Constituição da República, como referencial máximo dos valores matriciais da nossa democracia, deveria funcionar como uma garantia da estabilidade e da perdurabilidade desses valores e ficar a salvo de revisões ditadas pelas circunstâncias ou por arranjos políticos conjunturais.
Especialmente os processos de revisão extraordinária que só deveriam ocorrer em casos de transcendente excepcionalidade, acabam por se tornar no expediente a utilizar sempre que algum governo decide assumir, no plano internacional, compromissos que não são admitidos pela nossa ordem constitucional.
Aconteceu assim com o Tratado da União Europeia em 1992 e acontece agora com o Tribunal Penal Internacional. Em vez de suscitar atempadamente em Portugal o debate sobre as opções constitucionais que estão em causa na discussão dos tratados internacionais e decidi-las em sede constitucional antes de assumir qualquer vinculação internacional, os governos portugueses têm feito o contrário: Assumem compromissos inconstitucionais e depois apresentam-nos como factos consumados determinantes de revisões constitucionais.
Isto é: Os governos infringem princípios constitucionais e depois alteram esses princípios como forma de eliminação retroactiva da infracção.
O que se passou com o Estatuto do Tribunal Penal Internacional constitui um exemplo a todos os títulos lamentável. O Governo português participou pelo menos desde 1996 nos trabalhos de elaboração desse Estatuto, e não podendo ignorar que estava em causa a adopção de um instrumento de direito internacional contendo normas, como a previsão da prisão perpétua, que não são consentidas pelo Constituição Portuguesa, não fez aquilo a que estava estritamente obrigado, que era, no mínimo, suscitar um debate nacional sobre essas questões, antes de assumir qualquer compromisso no plano internacional.
Em vez disso, o Governo assinou o Estatuto do TPI em 1998, e só agora vem reconhecer que, dada a inconstitucionalidade de algumas das suas disposições, não temos outro remédio senão rever a Constituição, ainda que isso represente deitar pela borda fora alguns dos princípios mais nobres e generosos do nosso património civilizacional e dos quais só temos que nos orgulhar.
Teremos oportunidade, quer no debate da revisão constitucional propriamente dita, quer certamente no debate sobre a ratificação, de nos pronunciarmos detalhadamente sobre o estatuto do TPI, não sendo ainda este o momento de o fazer.
Há no entanto, alguns pontos que não queremos deixar de exprimir desde já.
A criação de uma instituição judiciária internacional destinada a julgar a prática de crimes contra a Humanidade segundo critérios de justiça e imparcialidade é um propósito que acolhemos como muito meritório. Acabar com a impunidade dos autores de crimes que ofendem a consciência universal e consagrar instrumentos de aplicação do Direito Internacional que escapem à lógica da "justiça" exercida pelos vencedores contra os vencidos, são propósitos em que nos revemos sem qualquer dúvida ou hesitação.
Acontece porém que as normas do Estatuto do TPI que apontam para alguma dependência da sua actuação em relação ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, representam preocupantes indícios de que este Tribunal Internacional corre o sério perigo de reflectir, no seu funcionamento, os critérios de escolha política que têm prevalecido na Comunidade Internacional. Tendo em conta, não apenas o texto do Tratado de Roma, mas sobretudo a evolução das negociações com vista à elaboração dos seus documentos complementares, temos muitas razões para recear que o TPI possa vir a ser, não um instrumento para a aplicação justa e imparcial do Direito internacional, mas um meio judicial para a imposição e legitimação internacional da lei do mais forte.
Mas, independentemente deste problema, o que não oferece a mínima dúvida é que o TPI, ao prever a aplicação da pena de prisão perpétua, reintroduz na ordem jurídica portuguesa uma sanção penal que a Constituição inequivocamente proíbe e que se encontra banida, entre nós, desde os finais do século XIX.
E não se diga que não se trata de reintroduzir a prisão perpétua, porque é evidente que essa é precisamente uma das questões reconhecidamente determinantes da necessidade de ser aberto um processo extraordinário de revisão constitucional.
Um retrocesso dessa natureza na ordem jurídica portuguesa é algo que não podemos aceitar.
Todavia, compreendemos as apreensões de muita gente que, com a justa preocupação de não deixar impune a prática de crimes contra a Humanidade, se manifesta incomodada com a possibilidade de Portugal não ratificar o Estatuto do TPI e de podermos ser acusados de criar, dentro das nossas fronteiras, um indesejável e indesejado espaço de impunidade. Não falta mesmo quem, em nome dessa incomodidade, se disponha mesmo a abdicar da intangibilidade da proibição da prisão perpétua.
Do nosso ponto de vista, este problema pode ser ultrapassado sem violentar a consciência humanista que presidiu à elaboração da nossa legislação penal e sem impedir o julgamento e a punição dos autores de quaisquer crimes previstos e punidos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Para isso, é necessário que a lei penal portuguesa passe a prever e punir a prática dos crimes que, estando previstos no Estatuto do TPI não o estejam ainda no nosso Código Penal e é necessário ainda criar os mecanismos legais que permitam aos tribunais portugueses julgar, de acordo com a lei portuguesa, todos os indivíduos que se encontrem em Portugal e que sejam acusados da prática de qualquer um dos crimes previstos no Estatuto do TPI.
É precisamente isto que o PCP propõe.
E nesse sentido, acabámos de entregar na Mesa da Assembleia da República um projecto de lei que propõe a alteração do Código Penal português, por forma a garantir o julgamento em Portugal dos autores de crimes graves que afectam a comunidade internacional no seu conjunto.
Segundo o nosso projecto, nenhum crime grave contra a Humanidade pode ficar sem julgamento por insuficiência da lei penal portuguesa. E nenhum dos autores desses crimes, que seja encontrado em Portugal, pode ficar sem julgamento por falta de competência dos tribunais portugueses.
Se os objectivos são estes, podemos obtê-los perfeitamente no respeito pela Constituição que temos e da qual, em matéria penal, não temos que nos envergonhar.
Disse.