Estatuto do Agente da Cooperação
Intervenção do deputado José Calçada
24 de Setembro de 1997
Senhor Presidente
Senhoras e Senhores Deputados,
A história da cooperação entre o Estado Português e, nomeadamente, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, está longe de ser considerada uma história de sucessos. Admito que seria talvez excessivo falar de uma história de fracassos, tanto mais que, de política externa se tratando, o bom senso recomenda que se arredondem algumas arestas na passagem da linguagem comum para a linguagem diplomática.
Mas esta é uma operação que, no caso em apreço, se não realiza sem algum constrangimento. Na verdade, a história da cooperação portuguesa está recheada de algumas práticas lamentáveis, atingindo nalguns casos autêntica caricatura. Todos estamos recordados do rocambolesco episódio do plágio de um projecto de lei do PSD pela bancada do Partido Socialista, plágio apressadamente travestido de lapso administrativo, após a denúncia surgida nos meios de comunicação social; todos sabemos das vi-ci-ssi-tu-des - e cá estou outra vez a utilizar a chamada linguagem diplomática - que tem vindo a atravessar a vida da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, como se se pudesse descansar à sombra do simples facto de ela haver sido formalmente institucionalizada; todos sabemos ainda de como Camões se orgulharia por haverem dado o seu nome a um instituto para a defesa e promoção da língua e da cultura portuguesa no Mundo, e de como certamente se envergonharia pela quase absoluta ineficácia revelada por essa instituição. Enfim, são três exemplos, recolhidos um pouco aleatoriamente, situados em níveis e circunstâncias muito diversos, e que, por isso mesmo, nos mostram que as coisas nos domínios da cooperação não estão a ir por bons caminhos. Portugal, diz-se, não é o dono da CPLP - e diz-se bem, e ainda bem que o não é. Portugal, diz-se, não é o dono da língua portuguesa - e, também aqui, se diz bem, e, também aqui, ainda bem que o não é. O Português é a sexta língua mais falada no Mundo e, de entre estas, após o inglês e o castelhano, é a terceira mais falada no âmbito da União Europeia. Com este capital extraordinário - talvez mais importante do que qualquer outro para um país que pelo seu peso geográfico, demográfico ou económico não corre o risco de ser olhado como possuindo quaisquer pretensões hegemónicas -, que temos nós vindo a desenvolver? A este respeito não há verdadeiramente boas notícias. Sabemos dos laços entre a Commonwealth e Moçambique, os franceses não têm estado parados na Guiné-Bissau ou em São Tomé e Príncipe, e até os burocratas de Bruxelas vão dizendo pelos corredores que a "eficácia" da Comunidade vai obrigar à eliminação de algumas línguas oficiais, entre as quais eventualmente o português. Quanto ao Primeiro Ministro de Portugal, em recente deslocação à América do Sul, deu-se ao luxo de falar em castelhano (com a única vantagem de, em castelhano e no hemisfério sul, haver revelado números sobre o desemprego que não condizem com os que revela quando fala em Português e em Portugal. Estamos convictos de que, com um pequeno esforço, não lhe será difícil juntar o útil ao agradável: dizer a verdade sobre os números, e dizê-la na nossa língua).
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Sendo certo que a matéria dos projectos de lei hoje em Plenário não nos merecem o mesmo tipo de apreciação, certo é também que a questão fundamental continua a ser não a do estatuto do cooperante mas a da cooperação ela própria. É nesta que tem vindo a residir a nossa fragilidade e a nossa incapacidade, ou seja: a fragilidade e a incapacidade dos governos. Estes projectos de lei olham para a árvore, olham para a circunstância, como se a floresta nada tivesse a ver com ela, como se fosse indiferente a definição de uma estratégia ou de um modelo de cooperação. Apesar de tudo, reconheça-se que os projectos do PSD e do PS - ou melhor: o do PSD e o-do-PS-quase-integralmente-transcrito-do-do-PSD - apresentam-se com mais virtudes e com menos defeitos do que o do PP - sendo que este último parece inspirado nos "peace corps" da era Kennedy de há 30 anos. O contínuo apelo à história comum, se transformado num mero chavão acrítico e mesmo alienador, pode fazer esquecer que essa história tem a ver com quase 500 anos de colonialismo e 50 de fascismo - pelo que, se ela nos liga, também nos separa. Como todas as histórias de todos os povos, aliás. Porque se alguns só agora descobriram a cooperação, nós outros, comunistas, há muito a tínhamos já descoberto na solidariedade activa com os povos das ex-colónias na luta comum contra o colonialismo e o fascismo. Nestas coisas, o tempo tem muito a ver com o modo. Nestes novos tempos de mundialização e globalização, as "modas" vão pouco no sentido do enraizamento das solidariedades mútuas entre os povos e os países, e não é raro que a cooperação sirva de biombo para correntes de sentido único sempre em desfavor do elo mais fraco. É por isso que a palavra se encontra por vezes tão desacreditada, e levante assim mais suspeitas do que entusiasmos. Daí que a cooperação seja, para um país como Portugal, uma questão fundamental, de natureza estratégica, e, como elemento de afirmação de Portugal no mundo, factor igualmente de reforço da nossa própria identidade. A cooperação portuguesa, em particular com os países africanos que utilizam o Português como sua língua oficial - não pode aparecer inquinada pela suspeita de não ser mais do que uma mera "testa de ferro" de interesses que pouco têm a ver com o nosso povo e com os povos desses países.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
No quadro anteriormente delineado, os projectos de lei agora em apreço, particularmente os apresentados pelo PSD e pelo PS, deverão merecer uma discussão aprofundada em sede de especialidade. Pela nossa parte, estamos disponíveis para um contributo que julgamose útil necessário.
Disse.