Política de negócios estrangeiros
Intervenção de Bernardino Soares
2 de Março de 2006

 

 

 

 

 

 

 

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros,

Em primeiro lugar, quero dizer que, para nós, este debate é sobre posições políticas e sobre política e não sobre posições pessoais. Em segundo lugar, entendemos — e isso reflectir-se-á numa segunda questão que teremos ocasião de colocar ao Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros — este debate como um debate sobre política externa, pelo que não deixaremos de abordar outras matérias. Mas não fugiremos a esta questão que, todos sabemos, esteve na origem e no intuito da interpelação do CDS-PP.

Sobre esta questão, começamos por dizer, como o fizemos num anterior debate desta Assembleia a propósito dos votos aqui aprovados, que, para nós, a liberdade de expressão é inquestionável. Lutámos no nosso partido muitas décadas por ela e não abdicamos em circunstância alguma de defendê-la.

Depois, também é inequívoca para nós a condenação de actos violentos, de reacções violentas, que existiram em reacção a esta questão dos cartoons e que são absolutamente inaceitáveis.

Em relação ao famoso, digamos assim, comunicado do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, teremos de dizer que ele tem aspectos que são manifestamente insuficientes, pois teria beneficiado em vincar estas duas questões que acabei de abordar, até se quisesse reforçar a outra que acabou por ser o centro da intenção desse comunicado.

É verdade que, em nossa opinião, tem algumas abordagens e expressões que são um pouco despropositadas, mas não deixamos de dizer que a intenção de contribuir para o aliviar e não para o acirrar da tensão é positiva, ponto de vista este que valorizamos.

E sabemos bem, olhando para o que se passou nas últimas semanas e meses, que quem tem beneficiado, quem tem aproveitado, quem tem cavalgado esta situação são os extremismos, são os radicalismos, é a extrema-direita em vários países, desde a Dinamarca até outros, e provavelmente aqui, em Portugal, também, e isso não tem contribuído para a procura da paz, para a procura da «solução pacífica dos conflitos internacionais», como diz a nossa Constituição, e para a procura de uma relação de concordância e de cooperação entre os povos, como é obrigação do Estado português e à qual está vinculado pela Constituição portuguesa.

Os cartoons tiveram certamente uma função provocatória — e com a mesma liberdade de expressão com a qual foram feitos, temos de dizê-lo —, que foi aproveitada para reacções extremistas e de cariz inaceitável.

Mas também sabemos — e isso não pode estar desligado deste debate — que toda esta situação se encaixa nos apetites intervencionistas de alguns, que procuram alimentar esta situação para justificar políticas intervencionistas, militaristas e de recurso à força noutros países soberanos, como aconteceu no passado.

Ora, é aqui que o problema se põe e é esta a questão que quero colocar-lhe, Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros. A nossa dúvida é se a intenção manifestada no comunicado se traduz, depois, completamente na prática. É que, para se traduzir na prática, o Governo português tem de demarcar-se da política da Administração Bush, que tem conduzido a uma política intervencionista e militarista nesta matéria. E não é com o prolongamento da participação de Portugal na intervenção no Afeganistão que se passa à prática nesta política de apaziguamento e de solução pacífica dos conflitos internacionais.

A questão é, pois, esta: a intenção afirmada no comunicado tem alguma tradução prática ou continuaremos na política do seguidismo com a política externa da Administração Bush?

(…)

 

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

Esta interpelação do CDS assenta numa visão maniqueísta mas não ingénua de uma política internacional baseada na lógica da guerra de civilizações, da guerra de religiões, aliás, bem patente nalgumas das declarações dos responsáveis da bancada desse partido ao dizerem que Portugal passou a estar no papel do «vilão», não se sabendo muito bem quem é o «mocinho», como se costumava dizer nos antigos filmes de cowboys .

O CDS-PP insere-se, aliás, na linha dos que se empenham no aprofundar da tensão e da clivagem com o mundo islâmico para justificar mais aventuras militaristas de ocupação e de subjugação de povos e países.

Esta interpelação foi o contributo modesto, desajeitado, do CDS-PP para esse objectivo.

Quanto ao Governo, quero dizer-lhe, Sr. Ministro, que, de facto, a prática não condiz com a intenção positiva, porque não se pode continuar presente no Iraque e no Afeganistão em missões que violam a Carta das Nações Unidas, no seu espírito e na sua letra, e com isso querer contribuir para o apaziguamento da vida mundial. Esse não é o caminho, essa não é a solução!!

Estas presenças são, elas próprias, um obstáculo à paz e um contributo negativo que contraria na prática a intenção positiva afirmada naquele comunicado tão discutido hoje e nas últimas semanas e meses.

Portanto, ao contrário do que diz o CDS-PP, a política do Governo nesta matéria não tem o apoio do PCP!

Valorizámos, sim, de forma positiva um determinado aspecto de um determinado pronunciamento. Escusa o CDS-PP, portanto, de pensar em enviar para cá o retrato que não é aqui o destinatário adequado…!

Finalmente, Sr. Ministro, quero dizer-lhe ainda que, nesta matéria, defendemos aquilo que está na Constituição, isto é, que as relações internacionais do Estado português se orientem pelos princípios da solução pacífica dos conflitos internacionais e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados.

Esta interpelação e este debate deixam-nos no final uma grande interrogação em relação a uma outra matéria, já aqui aflorada num debate mensal com o Sr. Primeiro-Ministro. Refiro-me à questão da preparação da ressurreição do chamado tratado da constituição europeia, que, pelos vistos, está a ser preparada também com a participação do Governo português. E havemos de discutir no futuro o que querem dizer insistentes referências à presidência portuguesa da União Europeia em 2007 e a ligação da mesma à recuperação de um tratado que está moribundo, morto e enterrado, que foi rejeitado pelos povos europeus, que não lhes serve e que também não serve ao nosso país.