Homenagem a Fernando Lopes-Graça
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP
Lisboa, 25 de Maio de 2006

Assinalamos aqui, hoje, o centésimo aniversário do nascimento de Fernando Lopes-Graça, figura maior da cultura portuguesa, resistente antifascista, militante comunista. E é com orgulho comunista que o fazemos – um orgulho feito da enorme admiração que sentimos pela figura, pela vida, pela obra do camarada Fernando Lopes-Graça.

Não surpreende, por isso, que vos diga que esta nossa iniciativa de hoje é, tão-somente, uma das muitas que no decorrer deste centésimo aniversário levaremos a cabo. E permitimo-nos sublinhar desde já as iniciativas que terão lugar no decorrer da 30ª edição dessa importante realização política, cultural, de convívio — obra do colectivo partidário comunista — que é a Festa do Avante!, a qual, neste ano de 2006, terá como tema central a obra e a vida de Fernando Lopes-Graça, proporcionando, assim, aos muitos e muitos milhares de visitantes da Festa a oportunidade de tomarem contacto, relembrarem e homenagearem essa obra e essa vida – nas quais, como sublinhou Álvaro Cunhal no discurso proferido no funeral de Fernando Lopes-Graça, são inseparáveis o artista e o cidadão – o artista e o resistente antifascista, o democrata, o comunista.

A obra de Fernando Lopes-Graça, enquanto compositor, musicólogo, pianista, maestro, professor, investigador, teórico, crítico de arte, marcou impressivamente o nosso século XX. E tal como a sua música, muito justamente apreciada e reconhecida internacionalmente, permanecerá como referência marcante e destacada no nosso País, também o seu exemplo de integridade e coerência revolucionárias permanecerá nas nossas memórias como referência de todos os dias, de todos os momentos. Toda a sua obra de artista – cuja notável inspiração e criatividade tem raízes no património que investigou, inventariou e recriou da música popular portuguesa — está indissolúvel e impressivamente ligada à sua visão do mundo e à sua opção política e ideológica: desde as Canções Regionais às Heróicas, a obras como Em Louvor da Paz e Requiem pelas vítimas do fascismo, ou às que aqui ouvimos hoje, superiormente executadas pelo pianista camarada Fausto Neves.

Um dos aspectos mais admiráveis e exemplares na personalidade de Fernando Lopes-Graça é certamente a firmeza e a coerência das suas convicções e do seu carácter, dos seus princípios, do conjunto da sua criação intelectual e artística, da sua intervenção cívica e política. Lopes-Graça é um exemplo maior de intelectual comunista. Do intelectual livre que, por o ser em todas as circunstâncias, toma como sua a causa da emancipação e da liberdade do seu povo, a causa da luta contra o obscurantismo e a opressão, da luta contra a exploração — a causa do socialismo e do comunismo.


Membro do PCP desde 1948, a sua adesão ao Partido não é mais do que a sequência natural da intervenção de alguém que, desde a juventude – desde que, tinha ele 19 anos, ocorreu o golpe militar do 28 de Maio que abriu caminho ao regime fascista – assumiu uma corajosa e intransigente opção democrática, antifascista, progressista. À data da sua adesão ao Partido, Fernando Lopes-Graça sofrera já as perseguições políticas, a prisão, o desterro, o exílio. O fascismo vedara-lhe o acesso a cargos públicos – e mesmo quando lhe foi proposto dirigir os Serviços de Música da então Emissora Nacional, não chegou a tomar posse do cargo porque se recusou a assinar a declaração de «repúdio activo do comunismo e de todas as ideias subversivas» que o fascismo exigia aos funcionários públicos. O regime fascista vigiava e perseguia Fernando Lopes-Graça com o mesmo implacável ódio com que perseguia os resistentes clandestinos. Vigiava-lhe as intervenções, os passos, a casa, as pessoas que contactava e o contactavam. As dezenas e dezenas de folhas do seu processo nos arquivos da PIDE — com relatórios de informadores que vigiavam o seu dia-a-dia — constituem um testemunho eloquente do temor que suscitava ao fascismo a sua personalidade prestigiada, firme e intransigente. Como os melhores de entre nós, Fernando Lopes-Graça foi um resistente sem quebras, um combatente de todos os momentos: desse tempo sombrio, opressivo e repressivo do fascismo; do tempo novo, luminoso e empolgante da revolução de Abril, com as suas conquistas económicas, sociais, políticas, culturais, civilizacionais; do tempo manchado de sombras e de sinais do passado que a política de direita, a política da contra-revolução, desde há trinta anos, vem fazendo pesar sobre os trabalhadores, o povo e o País.

Como militante comunista, Fernando Lopes-Graça esteve sempre com o Partido; sempre afirmando e defendendo com convicção e coerência a razão de ser da existência e da história do nosso Partido; sempre com o nosso grande colectivo partidário e, quando isso se tornou necessário, rejeitando frontalmente e sem hesitações as tentativas internas de descaracterização do Partido; sempre afirmando de forma muito clara a sua profunda e sentida compreensão da natureza e da luta do partido a que ligou meio século da sua vida: o Partido Comunista Português, partido da classe operária e de todos os trabalhadores.

Toda a vida e toda a acção de Fernando Lopes-Graça são inseparáveis do núcleo fundamental das suas convicções, da sua inteligência e do seu génio criador voltado para o povo e para o futuro. As suas palavras, mesmo quando fala apenas de música ou de cultura são as de um revolucionário, como quando afirma: “uma cultura, qualquer espécie de cultura, é incompleta, viciada, unilateral, se só olha para o passado e recusa o presente, naquilo que ele tem ou possa ter de vivo, de criador, de fecundo, se não acompanha o presente no seu caminho de descoberta e de conquista para o futuro”.

É nessa perspectiva e nessa visão revolucionárias que se inserem as suas Canções Regionais Portuguesas, recriadas através de geniais arranjos e harmonizações – a partir do notável trabalho de recolha levado a cabo por Michel Giacometti. E, sobretudo, aquelas que, segundo ele, mais se identificavam com o povo, com os seus anseios de liberdade, de amor, de paz, de progresso, e que, porque portadoras da imensa sabedoria de vida do povo, transportavam consigo a capacidade de luta e de resistência. Canções que o Coro cantava por todo o País e que, pouco a pouco, passaram a ser cantadas por operários, camponeses, estudantes e intelectuais antifascistas – pelo povo.

E as suas Canções Heróicas – cuja beleza empolgante se funde com a beleza da poesia de combate dos grandes poetas da resistência e da luta pela liberdade — são tão profundamente parte integrante da resistência ao fascismo como cada luta de trabalhadores, cada praça de jorna, cada luta estudantil, cada greve operária. Proibidas pelo fascismo, mas cantadas por todo o País pelo Coro da Academia dos Amadores de Música – para todos, simplesmente o Coro do Lopes-Graça – as Canções Heróicas foram um estimulo e um incentivo à resistência, um grito de confiança e de esperança para os milhares e milhares de pessoas que as ouviam e, com o Coro, as cantavam. Mas foram mais, muito mais do que isso: foram, elas próprias, resistência. E quando o regime fascista as proibiu, o Coro foi substituído por um outro Coro – o das milhares de vozes cantando essas canções em milhares de locais, em convívios do mais diverso tipo, em iniciativas de resistência ao regime fascista, no exílio, nas prisões de Caxias e de Peniche. Muitas vezes, depois das actuações do Coro, apenas autorizado a cantar as canções regionais portuguesas (e, mesmo essas, sujeitas a censura prévia e com pides e bufos a vigiarem os espectáculos) as Heróicas eram cantadas pela assistência ou, no final dos espectáculos, pelo Coro e pela assistência, já longe dos ouvidos dos esbirros fascistas. Por isso, e tão naturalmente, cantámos hoje, aqui, uma das Heróicas, a Jornada: Vozes ao alto, vozes ao alto/ Unidos como os dedos da mão/ Havemos de chegar ao fim da estrada/ Ao sol desta canção – e chegámos. Com a luta da classe operária, dos trabalhadores, dos intelectuais, das mulheres, dos jovens, fizemos Abril, conquistámos a liberdade, alcançámos uma primeira grande etapa do caminho que há-de conduzir ao fim da estrada. E o Coro do Lopes-Graça cantou as Heróicas enquanto desfilava nesse momento maior da nossa vida colectiva que foi o primeiro 1º de Maio; e voltou a cantá-las, num espectáculo memorável, realizado no Coliseu dos Recreios precisamente um mês depois do Dia da Liberdade, em 25 de Maio de 1974, quando o povo, nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos escritórios, nas escolas, dava os primeiros grandes passos na caminhada do processo revolucionário; e cantou-as, ainda, em comícios e festas do Partido, e nas Unidades Colectivas de Produção da Reforma Agrária, e em colectividades e salas de espectáculos por todo o País. Porque as Heróicas foram parte integrante da resistência que construiu Abril e, por isso mesmo, eram parte integrante do processo revolucionário e continuam, hoje, a integrar a nossa luta de todos os dias por uma ruptura de esquerda contra a política direita. E bem precisamos, camaradas, bem precisamos de incentivos e estímulos como as Heróicas para a luta que temos pela frente já que ressurgem valores e objectivos de carácter social e cultural tão retrógrados como aqueles que estavam na génese da repressão e mordaça aos cantos de Lopes-Graça.

Poucos artistas têm, como Lopes-Graça, em cada criação um acto de resistência. Que em Lopes-Graça é também resistência a qualquer submissão, a qualquer facilitação, a qualquer demagogia, a qualquer transigência de linguagem ou de ordem estética. É essa a atitude coerente com o profundo respeito que tem pelo seu povo: o desejo de que se aproprie das obras certamente belas, mas complexas e exigentes que realiza, obras que abram caminho, não obras que sigam trilhos já gastos.

Foi aqui, neste mesmo espaço, num centro de trabalho do Partido, que em Outubro de 1994 Fernando Lopes-Graça fez a sua última apresentação pública: a primeira audição absoluta da peça para piano Preito à Memória de Francisco Miguel, uma vida heróica.

Nas palavras do autor, trata-se de “uma homenagem aos nossos queridos mortos” que se estreia, disse ele, no “sítio adequado”. Que nesta homenagem o camarada Fernando Lopes-Graça tenha querido individualizar especialmente o camarada Francisco Miguel Duarte constitui um último testemunho dos valores em que assenta toda a vida e toda a obra de Fernando Lopes-Graça. A homenagem a alguém cuja coragem e infatigável dedicação à causa da revolução estão estreitamente ligadas e são inseparáveis de uma forte e criativa sensibilidade, profundamente enraizada no povo a que pertencia. Homenagem prestada com a linguagem universal da música, que, tal como o ideal comunista, não reconhece, e ajuda a derrubar todas as barreiras que separem cada indivíduo da humanidade a que pertence. Lopes-Graça, intelectual, músico, comunista, caminha ao nosso lado no caminho da história.