Intervenção de Carlos
Carvalhas,
Secretário-geral do PCP, no Debate «Saúde: pública e para todos!» Lisboa, 25 de Janeiro de 2003 |
Esta nossa iniciativa decorre num quadro em que se têm acentuado as desigualdades e em que se tem agravado a situação social. Diminuição dos salários reais, que o Governo quer também levar à prática em 2004 e 2005, aumento do desemprego, encerramento e deslocalização de empresas em zonas do país em que não há alternativas, degradação das funções sociais do Estado debaixo da capa de menos Estado e redução do nível e qualidade de vida de milhares e milhares de famílias.
Este quadro que se reflecte no nível de bem estar dos portugueses tem, também e naturalmente, tradução no estado de saúde dos portugueses e exige uma política bem diferente quer no plano económico e financeiro, quer na política de redistribuição do Rendimento Nacional, quer na política fiscal e na política de saúde.
Ora a resposta que no essencial o Governo tem dado e apontado, debaixo de uma fraseologia demagógica de pretensa preocupação com os doentes, tem-se resumido à conhecida fórmula neoliberal: quem quer saúde que a pague! Isto é inaceitável.
A poupança e a aplicação criteriosa e racional dos meios e recursos que são escassos é um imperativo, uma exigência, uma necessidade mas é também imperioso que estas exigências não sejam o pretexto e a cortina de fumo para a mercantilização da saúde dos portugueses, que é o que está em marcha. O acesso aos cuidados de saúde e aos medicamentos não pode estar determinado pela busca do máximo benefício ou sujeito irrestritivamente às leis do mercado. O que está em causa é uma questão de saúde e, muitas vezes, uma questão de vida ou de morte.
A defesa e a revitalização do Serviço Nacional de Saúde é hoje uma questão fundamental da nossa sociedade e constitui um elemento decisivo de uma política de desenvolvimento, progresso e justiça social.
Integrando a dinâmica de avanços sociais que se seguiram à Revolução de Abril, a criação e desenvolvimento do SNS foi ao longo destas mais de duas décadas um elemento decisivo e um instrumento indispensável da universalização do acesso à saúde e um factor determinante no progresso social.
O Serviço Nacional de Saúde tem sido alvo de muitos ataques visando a sua destruição. Vários governos do PSD e do PS praticaram uma política que, por acção ou omissão, nunca deixou verdadeiramente de enfraquecer o SNS e os cuidados de saúde.
Pela nossa parte reconhecemos a importância e os méritos do SNS mas não temos a ideia de que está tudo bem no Serviço Nacional de Saúde. Existem justas e fundadas razões para a crítica e o descontentamento da população.
Assim é com muitas carências ao nível de instalações.
Assim, é com crescentes dificuldades no acesso aos cuidados de saúde de largas faixas da população, seja porque não têm acompanhamento por um médico de família, seja porque estão sujeitos a intermináveis listas de espera para fazer uma cirurgia ou a inaceitáveis demoras que chegam a ser reais impossibilidades de obter uma consulta ou um tratamento especializado.
Assim também é com um custo cada vez maior dos cuidados de saúde, que faz da nossa população aquela que, no conjunto da União Europeia, para além daquilo com que já contribui através dos impostos, mais despesas com saúde suporta directamente.
O PCP tem apresentado respostas a estes problemas: gestão hospitalar, filas de espera, política do medicamento...
Entretanto, o Governo encontrou, neste quadro, forma de criar umas largas dezenas de lugares para os seus boys. Com o novo modelo de empresarialização dos hospitais, o Governo constituiu 31 Conselhos de Administração Hospitalar, para os quais nomeou 170 gestores. É um ver se te avias de gestores hospitalares, nomeados, de facto, pelo aparelho do PSD, na sua maioria sem qualquer ligação ou experiência no sector da saúde. Para além disso, estes novos gestores ganham, em geral, o dobro do que recebem os administradores dos restantes hospitais, alguns de grande complexidade e dimensão.
O Serviço Nacional de Saúde tem sido, na verdade, minado por graves problemas que progressivamente afectaram e afectam o seu desempenho.
Cresceu a promiscuidade entre sectores públicos e privados com estes a parasitarem os recursos públicos e o Orçamento de Estado, fazendo com que seja hoje indispensável a qualquer reforma progressista da saúde em Portugal a exigência de uma rigorosa separação dos interesses, de uma fiscalização mais apertada e da defesa intransigente do interesse colectivo.
Manteve-se e mantém-se um modelo de gestão sem responsabilização dos gestores escolhidos por nomeação política, em que a cor partidária e não a competência tem sido o factor determinante para as funções em causa, em que o cumprimento de objectivos e o aumento e melhoria da capacidade de resposta nunca foram prática corrente. A falta de articulação, por exemplo entre hospitais e centros de saúde, foi e continua a ser uma das principais causas de desperdício e ineficiência, causadora de enormes dificuldades aos utentes, sem que na prática se tenham dado passos significativos para resolver o problema.
A escassez de pessoal, quer devida à irracional política do sistema de numerus clausus que impede a formação de quadros superiores, quer ao sucessivo e sistemático congelamento de vagas na função pública, levando inevitavelmente a uma maior precarização, dificultou e dificulta a resposta às necessidades.
Dizendo que vai atacar e vencer estas questões, o Governo PSD/CDS-PP tem vindo a desencadear uma verdadeira operação de privatização na saúde, procurando abrir crescentemente espaço para os grupos económicos privados, geralmente à custa do erário público e desguarnecendo o direito à saúde de todos os portugueses.
O Governo decidiu entregar a construção dos 10 novos hospitais previstos a Grupos privados e decidiu fazê-lo invocando falsos argumentos de falta de financiamento e apontando supostas vantagens para o Estado. Na verdade, esta operação de entrega de 10 hospitais aos privados é um magnifico negócio para estes e um péssimo negócio para o Estado. É que, mesmo que o Estado se endividasse para financiar a construção dos hospitais, o custo seria menor para os cofres públicos do que aquilo que, previsivelmente, se vai pagar anualmente durante décadas aos privados.
Quanto às novas sociedades anónimas hospitalares elas são o caminho aberto para a privatização. Desde logo porque já se prevê a entrega de serviços do hospital, mesmo de serviços de prestação directa de cuidados de saúde, a entidades privadas. Mas também porque é fácil prever o caminho a que levarão as restrições ao financiamento das unidades hospitalares. Quando no próximo Orçamento já não puder utilizar o capital social para pagar dívidas, lá virá a proposta de entrada de privados nos hospitais mesmo que, numa primeira fase, de forma minoritária.
Ao mesmo tempo que avança com a privatização na rede hospitalar, o Governo não se quer atrasar na abertura do mercado dos cuidados primários de saúde aos interesses privados. Com as anunciadas alterações neste sector o Governo visa desarticular a rede pública de cuidados primários de saúde, privatizando os nichos lucrativos e deixando ao abandono o resto. O que irá acontecer à promoção da saúde, à prevenção da doença, ao planeamento familiar e a tantas outras vertentes da medicina geral e familiar que não se compadecem com uma política de pagamento por ficha de doente, nem serão do interesse dos privados?
Com as medidas anunciadas, o Governo põe em causa uma rede de cuidados decisiva para assegurar a universalidade do acesso, a mais próxima das populações e que tem na sua filosofia uma indispensável integração na comunidade que é marca característica de cuidados de saúde modernos.
Quanto à política do medicamento é sabido que a população portuguesa é, já, das que mais paga directamente do seu bolso o custo dos medicamentos, com especial penalização dos sectores mais desfavorecidos.
A introdução e a utilização de genéricos, há muito defendida pelo PCP, apesar de persistir a existência de genéricos de marca, é um caminho positivo.
Recordamos que ainda em 1999, precisamente a 7 de Maio, PS,PSD e CDS/PP chumbaram sem apelo nem agravo o projecto do PCP visando a introdução dos genéricos. Só mais tarde os outros partidos se vieram a render à justeza da posição do PCP. Perdeu-se tempo e dinheiro. A sua consagração legal é positiva. Só que o Governo introduziu à boleia a questão da comparticipação por preço de referência fazendo com que o utente passe a pagar mais pelo mesmo medicamento sempre que o médico receitar por marca e proibir a substituição.
Na verdade, no preambulo da Lei afirma-se e bem que, “os cidadãos (...) devem dispor da possibilidade de, no acto de fornecimento ou dispensa dos medicamentos lhes ser proporcionada a opção pelo medicamento com a mesma substância activa, segurança e valor terapêutico, ao menor preço”.
Porém, cedendo a pressões da Ordem dos Médicos, logo no art.º 3º, o Governo esqueceu-se do que acabava de proclamar no preâmbulo, ao dispor hipocritamente que, “não obstante ser reconhecida a liberdade de opção por parte do utente”, o farmacêutico ou o seu colaborador devidamente habilitado “só poderão alterar o medicamento prescrito a pedido do utente se não houver uma declaração expressa do médico prescritor”. E, neste contexto, o artigo seguinte logo consagra que a receita integrará “a declaração do médico prescritor sobre a dispensa ou não do medicamento genérico”.
São conhecidas as espantosas declarações da Ordem dos Médicos e as posições de conservadorismo de alguns médicos avessos a qualquer alteração nesta matéria, especialmente se ela implicar a aproximação da regra da prescrição pelo princípio activo. Assim, nos casos em que o médico não autorizar os genéricos os cidadãos vão passar a pagar muito mais pelo medicamento de marca. Já foram apontados acréscimos de 63% no custo a suportar pelo utente.
É, por isso, uma exigência de justiça social que se introduza, como o PCP já propôs na Assembleia da República, uma clausula de garantia que salvaguarde os interesses dos utentes e que este procedimento seja revisto.
Mas nem as dificuldades concretas, nem a propaganda demagógica do Governo conseguem esconder que é possível uma outra política de saúde em Portugal. Uma política que o PCP tem vindo a propor e a defender, sustentada no aproveitamento das capacidades do Serviço Nacional de Saúde, na participação das populações, no respeito pelos direitos dos profissionais, na aplicação racional e criteriosa dos meios e recursos, que são escassos, e de combate ao desperdício e à ineficiência.
Neste momento em que decorre o Fórum Social de Porto Alegre, onde se encontra uma importante delegação do PCP e da JCP, é também de lembrar as consequências da globalização capitalista com a crescente polarização de riqueza e incapacidade de dar resposta a graves problemas da Humanidade, antes as agravando e designadamente os relativos às questões da saúde.
A SIDA atinge no mundo 42 milhões de seres humanos, mais de 3 milhões são crianças. A malária mata por ano 1 milhão de pessoas em África, ou seja 3 000 por dia.
As epidemias e pandemias atingem sobretudo os países pobres. O acesso destes países aos medicamentos mais essenciais continua a ser impedido, nomeadamente pelos EUA, a nível da Organização Mundial do Comércio. Continua a ser negado o direito dos países em vias de desenvolvimento de produzirem medicamentos sem a autorização (pagamento) dos respectivos Laboratórios.
É necessário continuar a mobilizar a opinião pública contra esta injusta situação.
Assim como é necessário que a opinião pública mundial declare nas ruas o seu veto à dita guerra preventiva que os EUA preparam contra o Iraque para satisfazer os interesses petrolíferos americanos e o complexo militar americano e britânico. É, por isso, que o nosso Partido, conjuntamente com outras forças políticas e sociais, convoca uma grande manifestação em Lisboa contra a guerra, no dia 15 de Fevereiro, data em que também haverá manifestações noutras capitais europeias. É necessário parar a guerra antes que ela comece. No Iraque há um milhão de crianças que sofre de subnutrição e estimativas de organismos internacionais apontam para 900 mil as crianças que morreram nos últimos dez anos em consequência do apertado embargo económico. Uma nova guerra seria uma tragédia para este povo. Não há nenhum argumento que justifique a guerra dita preventiva, que está a ser preparada, não em nome do direito, mas sim da afirmação hegemónica dos EUA.
É por isso que apelamos a todas as camadas da população, a todas as sensibilidades democráticas e humanistas para que, independentemente das diversidades partidárias, se mobilizem para fazer de 15 de Fevereiro uma grande jornada de luta contra a guerra.
A propaganda do Governo e da direita para justificar as suas opções e ludibriar e atrair quem os ouve assenta em várias mistificações e muita demagogia.
O Governo, em especial o Ministro da Saúde, afirmam repetidamente não querer saber de ideologias; que o que lhes importa é tratar os doentes. Assim tentam disfarçar as suas reais opções políticas de ataque ao direito à saúde e de mercantilização dos cuidados de saúde.
Dizem não ter complexos com o sector privado, sendo indiferente se as pessoas são tratadas pelos serviços públicos ou por privados. Assim justificam a crescente transferência dos cuidados de saúde para entidades privadas, à custa dos dinheiros públicos e abdicando de utilizar as capacidades do Serviço Nacional de Saúde. Não há duvida que quando comprovadamente os serviços públicos não têm capacidade de responder a uma necessidade inadiável, se deve admitir o recurso a outras entidades. Mas o que não é admissível é o recurso sistemático a privados sem que as capacidades públicas estejam esgotadas. Não é aceitável, e contraria até as tão apregoadas regras de boa gestão, que o Estado pague a outros para fazerem aquilo que ele próprio tem capacidade para fazer.
Repete também o Governo que tem muito respeito pelos profissionais de saúde mas que antes dos seus direitos vêm os direitos dos utentes. Mas, na verdade, nem o Governo respeita os profissionais de saúde e os seus direitos, nem há qualquer contradição entre direitos de quem trabalha na saúde e as necessidades dos utentes. De facto, o que verdadeiramente prejudica o utente é que os profissionais de saúde estejam progressivamente mais sujeitos à precariedade, a critérios de gestão economicistas ou à degradação das suas condições de trabalho, vendo assim degradadas as condições para o desempenho com qualidade da sua função.
(...)
Com esta iniciativa de debate sobre o rumo da política de saúde o nosso Partido não só aprofundou a sua reflexão, como colheu também sugestões e propostas de resposta aos problemas, resposta que também terá expressão na nossa intervenção na Assembleia da República.