«MATARAM-NA POR CINCO TOSTÕES»
À CONVERSA COM MARIANA CASCALHEIRA, CAMPONESA DE QUINTOS*
Entrevista por Miguel Patrício

Vila, amiga e companheira de Catarina Eufémia, Mariana Teresa Correia Cascalheira, de Quintos, concelho de Beja, é um testemunho vivo imprescindível para se tentar compreender, por um lado, como é que os trabalhadores rurais alentejanos e as suas (grandes) famílias viviam nos anos Cinquenta, por outro, um pouco da personalidade da mártir camponesa, que, mais do que uma jovem irreverente, foi uma consciente lutadora política, com ligações ao único partido clandestino existente e em actividade na altura, o Partido Comunista Português.

Mariana Cascalheira, nascida a 29 de Maio de 1936, pertence a uma velha geração de mulheres do Alentejo que, quando crianças, deixaram a escola (era sozinha de mulher», como nos disse) para ajudar os pais a criar os irmãos, executando os mais diversos trabalhos domésticos. Como a maioria dos filhos dos rurais alentejanos, começou a trabalhar no campo muito cedo, apenas com 11 anos. Cedo? Se Mariana começou a trabalhar cedo, que dizer dos irmãos, que começaram a trabalhar aos 5 anos?

No diálogo (não lhe chamamos entrevista) que teve connosco - e que aqui tentamos reproduzir de forma simples, respeitando o máximo possível a linguagem oral, embora, naturalmente, sem a imprescindível vivacidade da mímica -, Mariana Cascalheira começa por nos descrever os seus tempos de infância e juventude e revela-nos os motivos que levaram os seus familiares próximos a passar de camponeses a operários, na Área Metropolitana de Lisboa. Propositadamente, fizemos algumas perguntas provocantes a Mariana, nomeadamente em relação à Reforma Agrária e à actividade do PCP no Alentejo nos anos Cinquenta, tendo a velha camponesa respondido de forma inteligente, acrescentando que a Reforma Agrária «já não volta no meu tempo, mas há-de voltar».

Mariana Castalheira fala-nos de Catarina Eufémia, «uma mulher que sabia o que queria e o que dizia». Por último, a velha camponesa fala-nos da sua experiência como presidente da Junta de Freguesia de Quintos, já depois do 25 de Abril.

Com que idade começou a trabalhar?

(Um sorriso e um longo suspiro) Ai, ai!... Comecei a trabalhar com 11 anos.

Andou na escola?

Graças a Deus.
Até que classe?

Até à 3.ªFiz a 3.ª classe com 9 anos.

Porque não fez a 4.ª classe?

Eu tinha seis irmãos e era sozinha de mulher e, então, a minha mãe trabalhava no campo e eu ficava em casa cuidando dos meus irmãos.

- Era mais nova, mais velha?

Era mesmo ao meio. Havia três mais novos e três mais velhos, éramos sete.

A senhora é que tinha de tratar da casa?

Sim senhor. O meu pai sempre possuiu gado e tínhamos muito trabalho.

O seu pai era pequeno agricultor?

Não, era amigo de criar gado, tinha sempre assim um «rebanhito”. Era pastor. Depois o meu pai fez uma aventura que, se calhar, muita gente não era capaz de fazer. Com cinquenta e tal anos, foi para Alverca do Ribatejo.

Foi para lá trabalhar?

Como aqui não havia trabalho, os meus irmãos mais novos levavam os verões Inteiros sem trabalhar e então foram para Alverca. Convidaram a minha mãe para ir lá, ela foi ver e não gostou da maneira como estavam sendo cuidados, trabalhando e maltratados... A minha mãe veio, falou como meu pai, venderam as coisinhas todas que tinham e foram para Alverca. Estiveram lá 18 anos, olhando pelos meus Irmãos e a trabalhar.

Em Alverca trabalhavam no campo ou em fábricas?

Os meus irmãos trabalhavam em fábricas e o meu pai na construção civil, dando serventia a pedreiro.

Portanto, de camponeses passaram a operários...

Sim senhor... o meu pai com cinquenta e tal anos. O meu pai nunca gostou de lá estar, mas, para ajudar os filhos...

Isso foi em que ano, lembra-se?

Há 45 anos (1958).Nessa altura abalou muita gente do Alentejo...
Pois, era um tempo de fome, de muita fome.

E a senhora ficou aqui em Quintos ou também foi para Alverca?

Eu fiquei, já era casada. E também ficaram dois irmãos meus.

E a D. Mariana começou a trabalhar com 9 anos em quê?

Comecei a trabalhar com 11 anos, aos 9 foi quando fiz a 3.ª classe. O primeiro trabalho que fiz foi mondar.

A monda durava quanto tempo?

Começávamos aí em Janeiro, depois era a monda do grão e essas coisas todas... era até Maio, até que viesse a «aceifa». Nos fins de Maio já se ceifavam favas e cevada aveia, depois era o trigo, até Julho. Às vezes já estava muito calor e a gente não aguentávamos e ceifávamos só até ao meio-dia.

A apanha do grão era à noite?

Pois, o grão era à noite, da uma da manhã até às dez e meia, coisa assim. Tinha de ser apanhado pela fresca, senão cai para o chão.

Iam a pé para o local do trabalho?

Nem que fosse no fim do mundo, íamos a pé.

E a apanha da azeitona era cm que altura?

Começávamos no fim de Outubro e era até fins de Natal.

A apanha da azeitona era (é) difícil, por causa do frio e da chuva. Começavam a trabalhara que horas?

Começávamos às oito horas, mas tínhamos de abalar de casa aí às seis ou sete da manhã, conforme o local para onde íamos trabalhar, se era perto ou longe. Depois, voltávamos às sete horas da noite, sem luz, sem nada, todas molhadas e mal agasalhadas... Muitas das minhas camaradas ainda vinham carregadas com lenha para se aquecer aquele bocado da noite. Eu nisso tive sorte, porque o meu pai tinha burros e carregava a lenha. Mas havia pessoas que andavam na minha companha que, ao fim de um dia de trabalho, ainda vinham com um molho de lenha à cabeça.

A apanha da azeitona era um trabalho cansativo, com a agravante do frio e da chuva?

Pois. A gente muitas vezes ficávamos com os dedos todos dormentes.

Usavam luvas?

Não, não se podia apanhar azeitonas com luvas. A gente chegámos a pontos de andarmos trabalhando à azeitona sem comer. Não deixavam tão-pouco a gente comer.

Então porque?

Não tínhamos hora de almoço. E ninguém podia dizer nada. Se alguém tentava dizer alguma coisa, no outro dia já não podia trabalhar.

Quando começou a trabalhar, com 11 anos, quanto é que ganhava por dia?

Ai! já não me lembro, mas, se calhar, aí uns seis escudos (0,03 cêntimos) por dia. Eu ainda cheguei apanhar e a descascar amêndoas três e quinhentos (3$50- três escudos e cinquenta centavos) por dia.

Quanto custava um pão nessa altura?

Não me lembro, porque nessa altura toda a gente cozia o panito em casa. Só as pessoas que viviam muito mal, muito mal, é que compravam o pão. Acho que um pão de quilo custava à volta de dois escudos. Olhe, cozíamos o pão de noite: amassávamos às oito horas da noite e quando a gente abalávamos para o trabalho já deixávamos o panito cozido.

Amassavam todos os dias?

Não, de oito em oito dias. E, às vezes, cozíamos quando ainda tínhamos dois ou três panitos duros, que era para não se comer logo os moles, para não se comer tanto. O pão mole era mais desluzido, comia-se mais depressa. Pense lá bem: a gente éramos nove pessoas lá em casa, cozíamos aí uns 35 ou 40 quilos para a semana.

Ainda se lembra o que é que comiam nessa altura?

Eu não era daquelas que viviam mais mal. Havia quem comesse uma açordinha à noite e andasse o dia todo sem comer. A gente lá em casa não passávamos essas fomes. Também lhe digo uma coisa: o meu pai chegou a andar meses sem descalçar as botas... se calhar só para lavar os pés, mas para dormir não, pois passava muitas noites sentado numa pedra, chovendo, com o guarda-chuva aberto e com uma manta, guardando o gado, tanto dele como dos outros. Para criar sete filhos, pense lá bem como é que era.

E o seu marido, o que é que fazia?

O meu marido, agora reformado, era trabalhador do campo. Mais tarde, nos anos Sessenta, foi trabalhar para a Alemanha. Depois do 25 de Abril só lá esteve um ano e tal. Na Alemanha, trabalhava numa manutenção militar.

E a senhora deixou de trabalhar com que idade?

Tinha aí uns 53 ou 54 anos.

Ainda trabalhou na Reforma Agrária? Em que cooperativa ou UCP [Unidade Colectiva de Produção]?

Sim, aqui na UCP «Pioneiros da Reforma Agrária».

Foi melhor esse tempo ou antes do 25 de Abril?

Então que pergunta! Não tem comparação. Foi melhor.

Então foi melhor porquê?

Porque todos tínhamos responsabilidade e todos defendíamos o nosso lugar, não era preciso andar o capataz atrás, e isto e aquilo e o outro...

Na Reforma Agrária também não podiam almoçar, como acontecia no tempo do agrário?

Claro que comíamos. Eu não posso dizer mal da Reforma Agrária, porque lutei muito por ela.

Também não quero que diga mal. Só quero que me diga o que pensa da Reforma Agrária.

Nunca houve uma coisa melhor do que a Reforma Agrária. Deixou-me bastante saudades. No meu tempo já não volta, mas há-de voltar.

O que fazia na UCP onde trabalhou?

Fazia o mesmo, mas melhor e com mais gosto.

Na sua opinião, tinha uma salário justo? Dividiam os produtos por todos, como era?

Na UCP, trabalhávamos para a gente, não éramos explorados por ninguém, por isso o salário era justo. Aqui na nossa UCP não dividíamos os produtos, comprávamos tudo, mas mais barato. E os descontos não eram só para a gente, que trabalhamos na Reforma Agrária, também eram para as pessoas da terra. Aquela vacaria que além está, no tempo do agrário, havia um letreiro a dizer que era proibida a entrada, e, depois, a partir da Reforma Agrária, passou a ser diferente, «vendiam-no» o leite às pessoas da terra e dávamos para as escolas.

E agora também é assim?

Não, depois da Reforma Agrária acabaram com tudo.

No tempo da Reforma Agrária havia mais ou menos vacas e outro gado? Havia mais ou menos produção?

Havia mais produção, porque as pessoas interessavam-se mais, estávamos a trabalhar para a gente e para a terra.

Quer dizer que a Reforma Agrária também foi boa para a própria freguesia?

Pois, além das pessoas da aldeia comprarem mais barato, depois havia mais dinheiro e comprávamos máquinas, rações, sementes, adubos e coisas nas mercearias de cá. A Reforma Agrária foi uma coisa muito boa para o povo todo.

Vamos agora falar um pouco sobre a Catarina Eufémia? Ela era de Baleizão ou aqui do Quintos?

Ela era de Baleizão. O marido dela era cantoneiro e veio trabalhar para cá, por isso vieram para cá morar. Eles estiveram numas casas nó meio de Quintos, mas por pouco tempo, porque a renda era alta, tinham três filhos e o marido ganhava pouco. Por isso eles vieram morar para aqui [monte onde hoje habita Mariana Cascalheira], porque isto não era uma casa como é agora, era um celeiro e já velhote.

E esta casa era de quem? Da sua família?

Esta casa era de um agrário. Ela [Catarina Eufémia] veio para Quintos e ele arrendou-lhe a casa. Depois, foi fazer a «aceifa» a Baleizão, mataram-na e o marido nunca mais quis saber...

Quando ela morou aqui, você morava aonde?

Naquelas casas ali ao lado, aquelas que estão caídas, que eram dos meus pais. Éramos vizinhas. A coitada tinha uma vida muito difícil. Difícil era para toda a gente nessa altura.

Ela chegou a pertencer ao seu rancho, trabalharam juntas?

Mãe da minha alma!... «Lidi» com ela, conhecia-a tão bem como aqui as minhas mãos. Então o último filho que ela teve nasceu ali ao lado... o primeiro beijinho que ele apanhou foi meu... assim que «subo» que ela tinha tido o filho vim logo lê-la. «Lidi» muito com ela.

Lembra-se do dia em que ela morreu?

Lembro-me, mas eu não estava por aqui. Lembro-me do dia da abalada dela para Baleizão. Eu fui para uma ceifa de empreitada. No dia que ela abalou, ia morrendo logo no caminho.

Ia morrendo como?

Abalou para Baleizão, a pé, com três filhos pequenos.

Foi pela estrada? Isto ainda são uns 10 quilómetros de Quintos a Baleizão?

Não foi pela estrada, foi a direito, atravessando aí os campos. Foi ela e outra vizinha, que também era de Baleizão. E, então, no tempo da «aceifa» havia sempre aquelas coisas, o patrão oferecia tanto, o trabalhador achava pouco e não saía [não ia trabalhar], perdia-se às vezes dois e três dias.

Era uma espécie de greve!?

Mas vindo aio terceiro ou quarto dia, as pessoas não tinham «mais remédio» que era sair [ir trabalhar]. Ela como não era daqui e como o marido dela também não ceifava, então nem sempre saía, porque cada qual puxava as suas mulheres [trabalhadoras]... uma prima, uma irmã... e ela, coitadinha, ficava em casa, sem trabalho. E então o que é que ela resolveu? Ir para Baleizão, deixava os filhos com a sogra e fazia a «aceifa».

E ela precisava de trabalhar...

Pois, a coitada. A minha mãe e mulheres de outro tempo estavam a lavar no barranco - nesse tempo não havia máquinas, não havia água canalizada, não havia nada... lavávamos no barranco -, a minha mãe viu a Catarina abalar com três filhos pequenos e disse-lhe: «Ainda assim, comadre Catarina, para onde é que você vai?» Ela respondeu-lhe: «Vou para Baleizão. Vocês aqui não saem, não saem, mas quando vem a terça ou a quarta-feira todos saem, todos ganham e eu não ganho nada. Vou para Baleizão, a minha sogra fica-me com os meus filhos e eu faço lá uma rica «aceifa». A minha mãe disse assim: «Ai, comadre Catarina, com três filhos, ainda assim o que é que você vai fazer? O seu marido ganha para o panito e o azeite, aonde é que você vai, mulher»!? As mulheres do outro tempo, desde que houvesse pãó e azeite para a açorda... A Catarina voltou-se para a minha mãe, tão zangada, e disse-lhe: «Então só comemos pão e azeite»? Coitada, abalou... Ela abalou para Baleizão e a gente abalou para uma empreitada, para os matos [zona de montado], ao pé de Corte Condessa, na freguesia de Salvada. Andávamos ceifando, chega lá o dono da seara e disse: «Sabem quem mataram em Baleizão? Foi a Catarina Eufémia». Ai!, eu fiquei, valha-me Deus,... valha-me Deus, coitadinha. Mataram-na por cinco tostões.

Diga-me uma coisa: ela teve essa pequena discussão com a sua mãe, porque a sua mãe e as mulheres mais velhas satisfaziam-se com pão e azeite, para a açorda. A Catarina não era da mesma opinião. A Catarina tinha consciência política?

Tinha. Tinha e muita.

Ela pertencia a algum partido?

Pertencia ao Partido Comunista Português.

A sério?

Sim senhor, sim senhor.

Há quem diga que não...

Então nesse tempo qual era o partido que havia?!

Não sei...

Mas eu sei. Nunca dei notícia de mais nenhum.

Só havia o Partido Comunista? Só o PCP é que tinha reuniões com os trabalhadores? E a senhora, já pertencia ao Partido?

Eu não pertencia, mas já nessa altura era simpatizante. Já o meu pai era simpatizante do Partido Comunista. E os meus irmãos também.

Recebia o «Avante» e propaganda política?

Isso era uma coisa que tinha de ser muito bem vista. Quem ficava com essas coisas, tinha de as saber esconder, às vezes debaixo do colchão. Isto era muito mau, não havia liberdade. O meu pai, em sonhando que, de madrugada, deitavam papéis a falar da situação política, ia buscá-los e vinha logo para eu ler. Quanto ao «Avante» era preciso um grande segredo, por causa da Guarda e da PIDE.

Chegou a ter reuniões com a Catarina Eufémia?

A gente não chegámos a ter reuniões. Cheguei a trabalhar num sítio em que as estremas das propriedades de Baleizão davam aqui com as nossas, e a Catarina juntava-se com os dois grupos, quando íamos à água, e combinava coisas, falava dos salários, como devíamos fazer.

Portanto, ela era uma mulher com consciência política?

Sim, sim, e muita. Do Partido Comunista é que ela era. Eu não dava notícia de mais nenhum.

E o marido, também?

Eu com o marido já não tinha aquela lidação. Não o ouvia, como a ouvia a ela. Olhe, era uma coisa fora de série, foi por isso que a mataram. Não havia por aqui mais nenhuma mulher igual. Ela sabia as coisas e não tinha medo de nada.

Ela esclarecia as outras companheiras? Segundo você me disse há pouco, quando ela foi trabalhar para Baleizão criticou as mulheres de Quintos, por ficarem em casa dois ou três dias mas depois irem trabalhar e não terem uma posição firme...

Pois, ela via essas coisas todas. E mataram-na por cinco tostões. Ela foi para lá, e aquele patrão, o Fernando Nunes, em Maio de 1954, dava 12 escudos [0,06 cêntimos] por dia ao pessoal de Baleizão. As pessoas queriam 12$50 e ele não quis dar. Então, o pessoal de Baleizão não quis ir trabalhar. Ele foi buscar pessoas ao Penedo Gordo, por 12$50. Quando as pessoas de Baleizão souberam, acharam muito mal de ele não querer dar 12$50 ao pessoal da terra e ir buscar outros e pagar essa quantia. Depois, o que é que a Catarina e outros trabalhadores de Baleizão, mulheres e homens, fizeram? Tentaram ir falar com os de Penedo Gordo, queriam interromper, para aquela gente não começar a trabalhar.

E depois?

Foi nessa altura - ela era a da frente, porque era uma mulher muito decidida -, que o guarda disparou a sangue frio. No grupo também havia homens?

Havia. Mas nesse tempo, homens e mulheres, tudo tinha medo. Sofremos tanto, tanto, tanto... Ai, que esse tempo não volte.

Era uma seara de favas?

Era. Quando era ceifa de favas, poucas vezes os homens andavam com a gente.

Porquê?

Porque nas favas tinham de levaras mesmas margens que a gente [as mulheres] levávamos e os homens tinham de ganhar sempre mais. Os homens ganhavam mais na «aceifa» do que a gente. No trigo, por exemplo, a gente levávamos duas margens e os homens levavam três.

O que é uma margem?

Uma margem é um rego. Às vezes a gente estamos falando e as pessoas não percebem. Na «aceifa», os homens ganham sempre mais uma parte do que as mulheres. A gente levávamos duas margens e ganhávamos duas partes e os homens levavam três margens e ganhavam três.

Nessa altura, dos 12$00/12$50, quanto ganhavam em Quintos?

Pouco mais ou menos a mesma coisa. Isto era tudo o mesmo.

Quando vocês combinavam as jornas, com a Catarina e com as outras mulheres ligadas ao PC?, ligadas à luta, ela dirigia a conversa? Como é que ela dirigia a reunião, lembra-se?

Aquilo não era bem uma reunião, era um encontro. Era na fonte, onde íamos à água. A fonte era quase à estrema de Vale de Alcaide, que pertence a Baleizão, com a estrema do Barroca (1), que pertence a Quintos. Era aí que as mulheres de Quintos e de Baleizão «se encontrávamos». Não falávamos só do trabalho, falávamos de outras coisas, que ela dizia à gente, que a gente éramos umas parvinhas ao pé dela. A mulher sabia.

Era uma mulher mais esclarecida?

Ela era uma pessoa com muito.., sabia tudo. Ela discutia com qualquer pessoa, fosse feitores, fosse tudo, até com os patrões. Uma vez estava com ela e já não sei o que o patrão lhe disse, que ela respondeu: «Sai daí, malandro, malandros, não fazem nenhum e têm tudo, e a gente quer semear uma leira de coentros e não temos onde «assemear». A mulher era muito esclarecida. Não dizia era onde aprendia nem donde vinham aquelas instruções.

Ela trazia alguns papéis para vocês lerem?

Sim, e foi por isso tudo que a mataram, porque ela era uma mulher diferente, a gente éramos umas parvinhas ao pé dela. Quem lhe dava aqueles esclarecimentos todos, não sei. Na altura, havia quem dissesse que era o marido que lhe dava aqueles esclarecimentos todos. Ela chegou a fazer urna angariação de fundos para o Francisco Miguel...

O Francisco Miguel [já falecido], velho militante comunista, natural de Baleizão?

Sim, uma vez juntou um grupo de mulheres e pediu-nos dinheiro para o Francisco Miguel, que estava preso. A gente arranjámos a maneira de lhe dar, umas quinze tostões, outras vinte e cinco tostões, à medida que podíamos...

Ela conhecia o Francisco Miguel?

Não sei, pelos vistos. Já nessa altura ela falava no Álvaro Cunhal.

Esse nomes para vocês não representavam nada?

A gente sabia mais ou menos, mas não conhecíamos, não havia televisões, não havia nada dessas coisas. A primeira vez que fomos a Baleizão, à homenagem dela - tanta gente, tanta gente, que aquilo não tem explicação, tanta família -,as ruas cheias de gente, quem conhecia o Álvaro Cunhal agarrado a ele, «abraçando nele», eu cá até pensava que era algum da PIDE, pensava que era para fazerem mal ao homem. Conhecia-o da fotografia, que ainda hoje a tenho em casa, mas pessoalmente nem sabia quem era.

Voltando atrás, a Catarina fez subscrições a favor do Francisco Miguel, que na altura estava preso?

Sim senhor. E aparecia com papéis do Partido Comunista. Eu não conhecia outro partido. Hoje é que já há mais partidos, mas nesse tempo...

Era o único que defendia os trabalhadores?

Pois, então. Aqueles papéis era tudo falando na classe operária, nos trabalhadores do campo... Por isso eu nunca conheci outro partido. E ela falava do Partido Comunista?

Ela falava muito do Partido Comunista. Era do que ela falava sempre, sempre... Toda a gente, mesmo patrões, dizia que ela era comunista.

Ela não falava só sobre questões relacionadas com os salários?

Falava de tudo. Eu não sei aonde é que ela ia buscar coisas que nós nunca tínhamos ouvido falar, como a emancipação da mulher, por exemplo. Eu gostava de ler e não era das mais parvas, mas não conhecia a maioria das coisas que ela falava. Ela por vezes dava-me coisas para ler... Mas havia aí pessoas que até tinham medo de lidar com ela. Tinham medo de serem presas. A gente éramos vigiadas em todo o lado, diga lá!... Até quando íamos apanhar grãos, às tantas da noite, a guarda ia-nos perseguindo, para apanhar as nossas conversas.

Houve muitas prisões políticas aqui em Quintos?

Daqui nunca foi ninguém preso. Agradecemos ao padre. Ele nunca foi bom para ninguém, mas nisso foi bom. Vinham aí para saber se havia aqui comunistas, e ele dizia assim: <‘Aqui em Quintos não há comunistas. Dêem-lhes vinho, dêem-lhes pão, que aqui não há comunistas». E nunca chegou a denunciar ninguém, porque ele sabia quem é que lutava por essas coisas, quem escrevia frases nas paredes.

Ainda se lembra dos nomes de antifascistas aqui de Quintos?

Éramos muitos, alguns já morreram. Olhe estou a lembrar-me da Zulmira... Zulmira Maria da Silva. O pai dela também era simpatizante do PCP. Era assim, a gente ouvia os nossos pais...

E encontravam-se sempre na fonte?

Quase sempre. Ainda chegaram a dizer ao meu marido - na altura éramos namorados: «Não queiras pôr emenda na tua moça, qualquer dia ainda lhe acontece o mesmo da Catarina Eufémia». Como eu «ombrava» muito com ela, éramos vizinhas, amigas e companheiras, íamos trabalhar juntas... Ela era mais velha do que eu, mais velha mas não muito, aí uns quatro ou cinco anos. Mas a minha natureza era assim, também gostava da política. E assim que chegou o 25 de Abril, nunca mais estive sossegada.. -

Sossegada?

Pois, nunca mais estive sossegada na política.

Ainda voltando às reuniões clandestinas, não se lembra mesmo de nomes de pessoas?

Era tudo às escondidas. Já não me lembro dos nomes... Lembro-me da fonte e que, às vezes, durante o trabalho, ficávamos para trás ou íamos mais para a frente, para falarmos à vontade... Agora o nome das pessoas, já não me lembro.

Tinham muito medo da repressão?

Pois. Quem é que tinha uma conversa política aí no meio da rua? A Guarda cercavam as pessoas... nem podíamos cantar na rua. Os homens tinham muito o hábito de cantar pelas ruas, chegaram a pontos que tiveram de se deixar disso. Nem na ponte, naquela ponte ali à entrada da aldeia, se podia cantar. A rapaziada sentava--se além, no Verão, e canta. Tiveram de se deixar disso. Os guardas colocavam-se cada um no seu sítio, esperavam os homens e, à medida que eles iam passando, eram chicoteados. Tenho um irmão que uma vez vinha da ponte, quando chegou às bicas, estavam os guardas à espera dele... Então e quando foi do Humberto Delgado?! Alguém sabe o que isto foi? Foi uma luta também que foi uma coisa a mais.

O que é que aconteceu nessa altura?

Nessa altura, já as pessoas iam para Beja, para as manifestações... As pessoas já estavam mais esclarecidas e já houve mais um avançozinho. Mas, depois, a partir dali, quando as eleições acabaram, a Guarda e a PIDE já sabiam aonde é que estavam os antifascistas e «vinham-nos buscar».

Houve muita repressão depois das eleições?

Sim, muita, muita... Não tem explicação. Toda a gente tinha medo de falar. Alguém podia dizer que tinha fome? Ninguém. Ninguém podia dizer «eu quero trabalhar, quero ganhar para o pão». Então foi por isso que mataram a Catarina. Só por dizer que queria trabalhar para matar a fome aos filhos. E se alguém refilava no trabalho, no outro dia já não o deixavam pegar ao serviço. Era tudo à vontade dos senhores.

Acha que estas gerações mais novas sabem o que se passou nesse tempo? Os seus netos que idade têm?

Tenho um quase com 20 anos.

Ele tem ideia do que se passou nesse tempo?

Tem, mas...

Já teve estas conversas com ele?

Sim, mais ou menos os moços de agora sabem, mas fazem-se desentendidos. Eles nem acreditam!

Eles sabem que vocês passaram fome? Hoje praticamente têm tudo, enquanto a sua geração por vezes nem um naco de pão tinha...

Eles hoje têm tudo. Têm pão, carne, iogurtes, leite... têm tudo. Não fazem ideia do que é passar fome, querer um pouco de pão e não o ter. Não fazem ideia do que é ter só uma muda de roupa para vestir. Não fazem ideia como a gente trabalhávamos...

E você e a sua família não foram dos que passaram pior...

Na casa dos meus pais nunca passámos fome, mas trabalhámos muito, muito, muito... Eu ainda escapava melhor porque era a única filha. Os meus irmãos começaram trabalhar, com o meu pai, a guardar gado, com cinco anos. Não eram os meus irmãos que o ganhavam, eram os cães que o meu pai trazia, que o ajudavam com o rebanho. Mas os meus irmãos tinham de andar sofrendo, penando, atrás do meu pai, porque não podiam estar em casa e ganhar o ordenadinho e as comedias. Mesmo que não fizessem nada, tinham que andar ao frio e ao calor, só com cinco anos.

E eles andaram na escola?

Tenho muita pena dos meus irmãos, porque os mais velhos nenhum sabe ler.

Eles andavam com o seu pai a ajudar a orientar o rebanho e o agrário dava-lhes qualquer coisa...

Pois, se o meu pai havia de meter um de fora, tinha os filhos.., e andava à vontade dele. Que eles fizessem, que não fizessem, que o meu pai se zangasse, que não se zangasse... eram os filhos dele. Mas bastante sofremos todos. Por isso, acho que todos temos as mesmas ideias.

Quando foi o funeral da Catarina, o que é que aconteceu aqui em Quintos?

Eu não estava cá, estava nos matos, para lá da Corte Condessa, onde a gente não via ninguém. Tenho um primo-irmão, que ainda é vivo, que trabalhava numa padaria e, então, como estava aqui na aldeia, porque trabalhava de noite, o regedor chegou ao pé dele e disse-lhe: «Chico, devias ir chamar o Tio António Paulino - era o enterrador, que estava numa hortinha ali ao pé da ponte do Guadiana -, porque morreu uma velhota dos matos».

Disseram que era o funeral de uma velhota e não da Catarina, para o povo não ficar a saber?

Sim. O meu primo foi dizer ao enterrador. Como era uma velhota dos matos, ninguém acompanhou o corpo à cova. Só quem foi ao funeral foram algumas velhotas de cá, que já não podiam nada na vida - porque nesse tempo em se podendo com a foice e com o sacho tinha que se trabalhar, porque não havia reformas -, foram ao funeral e qual não foi o seu espanto quando viram que era a Catarina. Ela foi sepultada com a roupa com que a mataram. A coitada não foi acompanhada, esteve sempre fechada no hospital para a autópsia, foi tudo às escondidas...

O marido e os filhos não foram ao funeral?

Os filhos eram pequenos e o marido acho que não foi. Ainda vieram pessoas de Baleizão, embora não soubessem quando era o funeral, mas a guarda não permitiu e, no regresso, já não foram pela estrada, foram aí pelos barrancos, a corta-mato...

Havia pessoas de Baleizão que queriam vir a Quintos ao funeral?

Pois, ainda tentaram, mas nem souberam, ninguém soube, foi tudo às escondidas.

A Guarda e as autoridades da altura tinham consciência que tinha sido um crime político e ia haver uma reacção das populações de Quintos e Baleizão?

Pois, pois, pois...

Como é que se chamava o regedor de Quintos?

António Francisco Felizardo.

Que profissão é que tinha?

Tinha uma padaria. Ele pouco amigo era de trabalhar, coitado.

Como é que se chama o seu primo?

Francisco Manuel Luís.

O regedor falou com o seu primo?

Pois, para ir chamar o enterrador.

O seu primo trabalhava na padaria do regedor?

Não, trabalhava noutra, de uma prima-irmã do meu primo.

Como é que se chamava o enterrador?

Não sei bem, era o Tio António Paulino.

O que é que fazia, além de enterrador?

Era trabalhador agrícola.

[Silêncio]

Pois isto deu uma volta muito grande com o 25 de Abril.

A senhora Mariana foi presidente da Junta de Freguesia de Quintos depois do 25 e Abril?

Fui, durante oito anos. De 1985 até 93, acho eu... E já tinha sido tesoureira durante três anos.

Que tal a experiência?

Boa. Só tive muita pena que tivesse acontecido o que aconteceu ao meu marido, porque a partir do dia em que ele adoeceu já não tive tempo nem cabeça para essas coisas. Eu só não fiz parte da primeira junta depois do 25 de Abril, porque o meu marido estava na Alemanha, assim que ele regressou nunca mais estive quieta.

Fez multa obra?

Não é para me gabar, mas nunca nenhum foi capaz de fazer o que eu fiz. E a bem dizer sozinha... Olhe, por exemplo, depois da Reforma Agrária, houve uma propriedade que foi devolvida, o homem veio ter comigo, que era a presidente da Junta, e disse-me que, se ele ficasse com a oficina que tinha sido da UCP, dava um bocado de terra à Junta de Freguesia. Fui falar com o presidente da Câmara, que me aconselhou a fazer o negócio, fizemos a escritura e, hoje, nesse terreno é onde toda a gente de Quintos pode semear. Cada qual tem o seu bocadinho para semear favas, ervilhas, batatas... Mas o terreno é da Junta de Freguesia. Noutro lado, já vendemos 13 lotes de terreno para construção de habitações... e o dinheiro é para a autarquia. Quando acabou a Reforma Agrária, o pouco dinheiro que havia, em vez de ser dividido por todos, foi para ajunta, para ajudar a construção da casa mortuária.

Foi uma boa experiência?

Sim, nunca tive problemas em nada... nunca tive vergonha de ir falar com este ou aquele, com o presidente da Câmara ou com um vereador, com um engenheiro... Nunca me atrapalhei. Ser autarca, servir a minha freguesia, foi um trabalho que fiz de alma e coração.

Um trabalho a bem da população...

Por exemplo, no meu tempo, a junta de Freguesia chegou a vender sepulturas a 15 contos, pagas às prestações... Se não for assim, a gente não tem nada. É a gente, porque temos as feridas, agora quem não sofreu, quem não penou... Às vezes, esses que penaram já eles estão esquecidos, quanto mais quem não sofreu.

* Publicada parcialmente in «Alentejo Popular», 25 de Abril de 2003

1Catarina Eufémia filiou-se no Partido Comunista Português em 1953, tendo feito parte do Comité Local de Baleizão, conforme depoimento de António Gervásio