Debate do Orçamento de Estado para 1997 na Assembleia da República
Intervenção (Abertura) do Deputado Octávio Teixeira
13 de Novembro de 1996

 

O Orçamento do Estado é o documento essencial para a Assembleia da República e os cidadãos poderem ajuizar das efectivas orientações ideológicas e opções políticas de um Governo. Num programa de Governo, ou mesmo num documento dito de Grandes Opções do Plano, na forma como tem sido apresentado por este e anteriores Governos, podem ser vertidas muitas declarações de intenções, de que se pode discordar ou concordar, mas que fundamentalmente carecem da prova da prática política para conhecermos da sua sinceridade. Mas um Orçamento não dá margem para declarações de intenções. Ele é, por excelência, o instrumento de concretização das reais e efectivas intenções e opções de um Governo. É essa a questão básica que se coloca em relação ao Orçamento do Estado para 1997. Tanto mais quanto é certo que, após um ano de governação, o senhor Primeiro- Ministro e o seu Governo não podem já, como o fizeram com o seu primeiro Orçamento, alegar a falta de tempo e de conhecimento concreto dos "dossiers" para apresentarem um Orçamento que não espelhe com toda a fidelidade o seu querer e vontade políticas. O Orçamento do Estado para 1997 é, necessária e obrigatoriamente, o Orçamento que concretiza, em toda a sua plenitude e sem sofismas, a orientação ideológica fundamental e as opções políticas essenciais deste Governo, do Governo do Partido Socialista.

A grande e exclusiva preocupação deste Orçamento, a orientação determinante política e entusiasticamente assumida pelo Governo, é a doentia obsessão pela moeda única e a reverente submissão ao cumprimento dos critérios de convergência nominal. E é indubitável que o cumprimento desses critérios tem efeitos restritivos na actividade económica, impede a recuperação plena da economia portuguesa, a dinamização do investimento produtivo e a necessária melhoria do nivel de vida dos portugueses e de satisfação das funções sociais que ao Estado incumbem. Por isso o Orçamento de Estado se apresenta em "contraciclo" com as efectivas necessidades e exigências da economia e sociedade portuguesas. Na situação actual do País, em particular uma situação de grande desemprego, exigia-se uma política orçamental de cariz não restritivo, para incentivar a procura de bens, a produção e o emprego. Mas a cegueira ideológica do Governo, as concepções neoliberais que enformam a sua política económica e que se reflectem no Orçamento, levam-no a persistir numa via que deveria ser de sinal proibido. Uma via da travagem do potencial de crescimento económico do País, da deterioração das condições objectivas que favoreçam a recuperação económica e financeira de muitas empresas, da asfixiante contenção do consumo e do investimento privados e, inevitavelmente, do aumento do desemprego. Por acréscimo, uma via sem regresso. Porque os sacrifícios e restrições que hoje impõe à economia e sociedade portuguesas se multiplicarão e agravarão no futuro, após a eventual concretização da unicidade monetária.

Desta orientação básica e determinante decorrem, explicitamente três opções políticas essenciais, caracterizadoras do Orçamento e da política do Governo. A primeira opção é a de uma assumida posição do Governo contra os salários. Definindo como orientação geral e universal o congelamento ou redução dos fracos níveis salariais dos trabalhadores portugueses, agravando o já profundo desequilíbrio existente na distribuição do Rendimento Nacional, em prejuízo, mais uma vez e sempre, dos salários, dos rendimentos dos trabalhadores. Propondo e advogando que os aumentos de produtividade, que o Governo prevê de 2,25%, revertam exclusivamente em favor do capital. A opção política do Governo do PS é clara: trabalhadores que têm emprego, produzam mais e melhor, mas não esperem tirar disso qualquer proveito próprio.

A segunda opção do Governo é contra o emprego. Estamos perante um Orçamento que não terá qualquer efeito indutor de menos desemprego. Inversamente, e com inusitado despudor político social, o Governo assume neste Orçamento o agravamento do desemprego, o agravamento do maior flagelo com que o País actualmente se debate. A terceira grande opção do Governo é a de um Orçamento manchado pelo fundamentalismo privatizador do Governo do PS. Sem qualquer fundamentação séria sob os pontos de vista económico e social. Assente exclusivamente numa opção politico-ideológica e numa míope perspectiva de obtenção de receitas que reduzam a dívida a pública e aliviem o peso dos juros orçamentais. Perspectiva tão míope quanto errada, como o próprio Orçamento para 1997 o comprova. Porque para compensar, financeiramente, a perda dos actuais níveis de dividendos que o Orçamento embolsa das EP's seria necessário que as privatizações rendessem mais 2,5 mil milhões de contos. E nisso nem o Primeiro-Ministro acreditará. A não ser que privatize não apenas todas as EP's que ainda restam, mas praticamente tudo o que é público. Objectivo, aliás, em que o PS parece mostrar-se empenhado, procurando desta feita ultrapassar pela direita os Governos do PSD. Já que o Governo do eng. Guterres se propõe mesmo, neste Orçamento, privatizar vias rodoviárias já construídas com dinheiros públicos e actualmente não sujeitas a qualquer portagem.

Esta orientação e estas opções, senhor Presidente e senhores Deputados, seriam suficientes para suscitar a clara oposição e inequívoca rejeição, pelo PCP, deste Orçamento do Estado.

Mas há mais, e igualmente negativo. Como noutras intervenções do meu Grupo Parlamentar se demonstrará, este é, ainda, um Orçamento de desaceleração do apoio a áreas sociais e económicas essenciais para o presente e o futuro da sociedade portuguesa. Como exemplos, recordo, por agora, apenas dois aspectos relacionados com o Orçamento da Segurança Social. Por um lado, a redução de 11 milhões de contos na dotação para subsídio de desemprego, numa lastimável linha de actuação do Governo que tem vindo a reduzir a percentagem do número de desempregados subsidiados relativamente aos desempregados oficialmente inscritos. Por outro lado, os míseros aumentos das pensões e reformas anteontem anunciados. Que vai o senhor Primeiro-Ministro dizer àquele idoso casal de alentejanos que, nesse dia, num canal televisivo declarou que só comiam uma refeição de carne por mês, porque as reformas não davam para mais? Com um aumento real de 368$00 por mês vai dizer-lhes que já podem comer carne, ou peixe, uma vez por semana? Não. Pura e simplesmente V. Exa. lhes diz, mesmo sem falar, que a sina deles é continuarem a comer, apenas e tão só, açorda e mais açorda e que terão de pagar mais 8% em muitos dos medicamentos que necessariamente têm de comprar! Isto, senhor Primeiro-Ministro e senhores Membros do Governo, não é certamente sinónimo de qualquer solidariedade social. Antes é a sua completa negação.

Este é, ainda, senhores deputados, um Orçamento que agrava a profunda e generalizadamente reconhecida injustiça de um sistema fiscal que penaliza os rendimentos do trabalho por conta de outrém, beneficia ilegitimamente os lucros das grandes empresas e as aplicações e rendimentos financeiros e especulativos e protege a fraude fiscal. Agravamento da injustiça duplamente visível neste orçamento. Por um lado, com a proposta de redução até 2 pp. da taxa do IRC, ao mesmo tempo que mantém inalteradas as taxas do IRS. Por outro lado com a progressão geométrica dos benefícios fiscais. Aliás, senhores deputados socialistas, faço-lhes uma pergunta directa: que justificação ideológica, política ou social, dão V. Exas. aos trabalhadores portugueses para o facto de, em apenas dois anos, o vosso Governo aumentar o montante da perda de receita orçamental por benefícios fiscais em 50%, passando de 130 milhões de contos em 1995 para 190 milhões em 1997? Que orientação socialista, ou tão só de alguma justiça social, é esta?

No que respeita à fraude fiscal, ficamos a aguardar a resposta do Governo à seguinte questão: porque razões o Governo, pura e simplesmente, desconhece neste Orçamento tantas e tantas sugestões apresentadas pela Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal para promover o combate à fuga e evasão fiscais? Provavelmente, dir-nos-ão: aí estão as colectas mínimas. Sobre isso, quero desde já, em nome do PCP, deixar claras três questões centrais. Em primeiro lugar, não somos contra a sua aplicação porque as consideramos um mal menor, ou um mal necessário, face à inadmissível situação a que chegámos. Em segundo lugar, não aceitaremos que essas colectas mínimas possam servir para aumentar a carga fiscal sobre os trabalhadores, agora por uma sobrecarga injustificada dos trabalhadores a "recibo verde", que são obrigados a sujeitar-se a esse regime por não encontrarem emprego com plenitude de direitos. Em terceiro lugar, ninguém conte connosco para viabilizar a aprovação e aplicação de quaisquer impostos ou colectas com efeitos retroactivos. Porque questões centrais, elas devem ser encaradas muito seriamente pelo Governo e por toda a Assembleia da República.

Mas uma reflexão mais, senhores Membros do Governo e Senhores Deputados, nos suscita essa medida da colecta mínima. É a da dúvida de que ela se insira numa vontade séria, por parte do Governo, de combate efectivo à fraude fiscal. Porque para atingir esse desiderato, as colectas mínimas, como a utilização mais geral de métodos indiciários, nunca poderão ser o instrumento principal mas basicamente um complemento. E assim sendo, é pelo menos muito estranho que, entre outras omissões, o Governo se demita de dotar a Administração Fiscal de um mecanismo indispensável à averiguação de crimes ou de contra-ordenações fiscais, como é o do alargamento das possibilidades de acesso às informações abrangidas pelo sigilo bancário para efeitos fiscais. Ao completo arrepio, aliás, do que sucede na generalidade dos restantes países da União Europeia e da esmagadora maioria dos países da OCDE. O Governo não pode desconhecer que, neste âmbito, o "sistema actual tem objectivamente como consequência proporcionar uma elevada (e inaceitável) protecção a grande parte dos contribuintes que mais gravemente violam as suas obrigações em matéria fiscal". E sabe que isso tem como efeitos a diminuição da receita tributária, a quebra de credibilidade do sistema fiscal e a profunda iniquidade na repartição da carga fiscal. Querem o Governo do eng. António Guterres e o Partido Socialista manter esta situação com tão negativas consequências? Se não o querem, então provem-no concretizando. No plano da seriedade, a única questão que a este respeito merece ser ponderada é a de que existirá entre os portugueses uma cultura pouco favorável ao fisco e tolerante às infracções fiscais. Ou até receios, fundados ou infundados, de que a eliminação ou enfraquecimento do sigilo bancário perante a Administração Fiscal possa ser abusivamente aproveitado para outros fins. Não o desconhecemos. Mas isso não pode justificar a paralisia parlamentar e governamental nesta matéria. Aquelas realidades justificam, isso sim e nada mais que isso, que a ampliação das possibilidades de acesso da Administração Fiscal às informações protegidas pelo sigilo bancário seja feita numa perspectiva gradualista. Mas a começar quanto antes. Por isso, o PCP apresenta para debate e votação neste Orçamento, uma proposta nesse sentido. Definindo as situações em que se deverá aplicar desde já e sujeitando o acesso às informações a regras processuais claras e apertadas. É uma proposta muito cautelosa. Com tantas e exactamente as mesmas cautelas que a Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal propôs no seu Relatório. Porque a proposta do PCP sobre o primeiro e necessário passo a dar no alargamento da quebra do sigilo bancário para efeitos fiscais dá corpo às muito prudentes sugestões daquela insuspeita Comissão. Aguardamos com curiosidade a reacção dos restantes Grupos Parlamentares, em particular do PS, mas também a do Governo que diz querer combater a fraude fiscal, promover a equidade e aliviar o peso que incide sobre os trabalhadores. Senhor Primeiro-Ministro e senhor Ministro das Finanças: oferecemo-lhes a possibilidade de emendarem o erro do vosso esquecimento e de concretizarem as vossas piedosas declarações de intenções. Esperamos que acolham esta oportunidade com seriedade e com real vontade política de combater o crime fiscal.

Ao apresentar este Orçamento, o Governo sabe perfeitamente quais as consequências económicas e sociais que dele decorrerão. Sabe que o desemprego vai continuar a aumentar, que vai prosseguir o encerramento de empresas, que muitos trabalhadores vão continuar a passar para o desemprego e muitos jovens permanecerão à porta do emprego que não encontram. Sabe que os trabalhadores empregados e os pensionistas e reformados verão o seu poder de compra ainda mais afastado da média europeia, ao mesmo tempo que prosseguirá a via ascensional dos lucros das grandes empresas, e m particular das financeiras. Sabe que os salários continuarão a suportar o peso fundamental da carga fiscal, que os lucros e as operações financeiras e especulativas serão acrescidamente beneficiados e que a fraude fiscal continuará a florescer. E sabendo tudo isto, o Governo e o PS podem igualmente ter a certeza que este seu instrumento essencial de autêntica "repressão" económica e social da sociedade portuguesa terá do PCP uma rejeição clara e inequívoca.