Orçamento do Estado para 2004
Intervenção de Luísa Mesquita
5 de Novembro de 2003

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhoras Deputadas,
Senhores membros do Governo,

Ao contrário do que o Governo tem vindo a afirmar, ontem e hoje, o Orçamento de Estado para 2004 investe nas desigualdades sociais, na pobreza e no desemprego.

É um orçamento que afasta Portugal e os Portugueses, pelo quarto ano consecutivo, da média de crescimento da União Europeia.

É um orçamento contra os rendimentos dos trabalhadores, contra a justiça social.

É um orçamento que endivida o presente e hipoteca o futuro.

É um orçamento de submissão aos ditames do pacto de Estabilidade.

É um orçamento de ataque às funções sociais do Estado.

E se dúvidas existissem, a área da Segurança Social é um indesmentível exemplo.

O Governo volta a não cumprir para 2004, tal como já havia feito em 2003, a Lei de Bases da Segurança Social, designadamente quanto às transferências a que está obrigado para o Fundo de Estabilização Financeira, pondo em perigo a reserva necessária para pagar, futuramente, as pensões de reforma e outras prestações sociais.

Só nestes dois anos a extorsão chega a 700 milhões de euros.

Depois do saque, o Ministro Bagão Félix anunciará a falência e concluirá que o milagre serão os fundos complementares privados.

E o BCP publicará as bênçãos.

Onde pairam as promessas da maioria, sobretudo do candidato Paulo Portas e do CDS-PP, propagandeadas de feira em feira, relativamente à melhoria das condições de vida dos reformados.

Onde estão as promessas de convergência das pensões mínimas com o salário mínimo.

Onde ficaram as promessas do complemento de família para ao casais mais idosos.

Como se justifica que decresçam as verbas para o Rendimento Social de Inserção, quando todos os dados apontam para o aumento da pobreza em Portugal, colocando-nos no primeiro lugar dos países com o crescimento mais vertiginoso do desemprego.

As políticas e as medidas de combate à pobreza e de inclusão social têm constituído meros spots publicitários e não pretendem alterar os verdadeiros indicadores que fustigam milhares de famílias portuguesas.

A pretexto do combate à fraude, o Governo anunciou recentemente alterações aos subsídios de doença, reduzindo em 15% as baixas até 30 dias e em 5% as baixas prolongadas, que o Orçamento de Estado para 2004 já consagra.

Diminuem-se os subsídios de doença, reduz-se o universo dos seus beneficiários, pretendendo transformar o sistema público de Segurança Social num sistema de mínimos, numa sociedade anónima de assistência e caridade.

E ao mesmo tempo anuncia-se para 2004 a continuação do aumento do desemprego que já atinge hoje, mais de 440 mil desempregados, mais 100 mil, do que há um ano atrás.

Também na educação o objectivo é claro e valem todas as estratégias.

A aposta é na desresponsabilização do Estado face à escola pública e na suspeição de todos os interlocutores.

A escola pública é, de forma despudorada, postergada face ao favorecimento do sector privado.

A escola é para esta maioria um espaço de elites seleccionadas, saudosas de um passado sem futuro.

E quando ao espaço educativo chegam outros, que não os eleitos, propõe-se-lhes o mundo do trabalho precoce ou uma via profissionalizante mais adequada à sua origem de classe.

Não foram ingénuas as divulgações dos rankings das escolas e a disponibilização à comunicação social da informação recolhida.

A lógica do mercado na educação tem que criar condições para evidenciar as empresas que, à partida, interessa posicionar nos primeiros lugares.

Por isso o Orçamento de Estado para 2004 vem confirmar que a escola pública, gratuita e de qualidade não é para todos.

A exclusão, o abandono e o insucesso escolares são assumidos como factos para os quais não se propõem medidas.

Propõe-se antes a diminuição da educação básica para níveis do antes 25 de Abril.

Diminui-se o financiamento para o Ensino Superior Público, promove-se a procura de receitas próprias e, simultaneamente, assegura-se o financiamento do ensino superior privado.

Destrói-se a gestão democrática das instituições e a participação e a pedagogia dão lugar a musculados conselhos de administração.

Em sede de Comissão de Economia, o Ministro da Educação foi claro na sustentação dos números.

Educação com menos despesa, com mais alunos por turma e com vínculos laborais mais precários para os docentes.

Mas se o decréscimo orçamental põe em causa o funcionamento das escolas, com um corte na ordem dos 4% (sem considerar a inflação e as anunciadas cativações), as despesas de investimento levam um corte de mais de 20%.

Aos cortes significativos na Educação Pré-escolar, na difusão da Língua e da Cultura Portuguesas no estrangeiro, nos Ensinos Básico e Secundário, na Acção Social Escolar é preciso acrescer ainda a baixa taxa de execução de 2003.

Diferente não é a situação da Ciência e do Ensino Superior.

As Grandes Opções do Plano constituem, um conjunto de frases redundantes e abundantemente repetidas.

Só entendíveis quando se lê o Orçamento de Estado.

Às instituições do Ensino Superior – Universidades e Politécnicos são retirados mais de 20 milhões de euros que ditarão a qualidade do seu funcionamento no próximo ano.

Decréscimo que o governo ilude com a inflação das receitas próprias das instituições, que contam este ano, de forma encapotada, com o vergonhoso aumento das propinas.

O governo tomou a decisão.
A maioria aprovou.
E as famílias pagam.

E não tendo coragem política para assumir a malfeitoria, o governo entregou o ónus aos responsáveis das instituições, com a ameaça confirmada de desinvestimento, por parte do Estado, no respectivo Orçamento.

Tudo isto, diria o Primeiro Ministro, em nome da qualificação dos portugueses e do desenvolvimento do país.

Ficámos no entanto a saber, em sede da Comissão, que existem alguns milhões, que, a partir de Janeiro de 2004, poderão funcionar como extintores de incêndio.

Um saco azul que, naturalmente, só alguns terão a sorte de conhecer.

Na ciência, os números anunciados, indiciavam um aumento, apesar de pouco significativo, relativamente ao sistema científico nacional.

Os dados do orçamento dizem que não é assim.

Considerados onze Laboratórios – sete de dupla tutela nas áreas da Defesa, Obras Públicas, Economia, Agricultura, Desenvolvimento Rural e Pescas, Saúde e Ambiente e ainda quatro na dependência do Ministério da Ciência e do Ensino Superior, os números não desmentem.

Descem as verbas para o funcionamento e para o investimento, num valor global de 12,3%, crescendo a pressão sobre as instituições para procurar receitas próprias e substimar as actividades de I&D.

Se olharmos individualmente algumas destas unidades de investigação a situação é preocupante.

Por exemplo o INETI, que engloba agora o Instituto Geológico e Mineiro tem um orçamento de funcionamento inferior aquele que o INETI, sozinho, tinha em 2003.

Quanto ao PIDDAC, apesar de um decréscimo global inferior ao funcionamento, não deixa de ser inexplicável o corte de verbas em Laboratórios como o LNEC (menos 22%) ou o Ricardo Jorge (menos 45%).

Também a autonomia financeira dos Laboratórios de Estado, usurpada no orçamento de 2003, se mantém, bloqueando o seu funcionamento.

Dizia o governo que a meta da Comissão Europeia de 3% do PIB relativamente à despesa nacional em I&D, a atingir em 2010, é ainda um desafio possível para Portugal.

Admitindo que o governo sabe do que fala, era bom que explicasse como, sobretudo à comunidade científica que, ano após ano é confrontada com uma progressiva asfixia financeira das instituições.

E porque para este governo as funções sociais do estado são alvos a abater, também o acesso a um Serviço Nacional de Saúde de resposta geral e universal está cada vez mais longe dos portugueses.

As políticas restritivas quer de recursos humanos, quer financeiros, agravam diariamente os problemas e paralisam as potencialidades.

Sabe-se que mais de um milhão de portugueses, não tem médico de família e simultaneamente o governo ignora a urgência de uma política de recursos humanos, capaz de responder às necessidades do sector.

Num país em que 23% da população não possui rendimentos superiores a 60% do rendimento médio nacional, os portugueses pagam directamente mais de 40% das despesas com a saúde.

As taxas moderadoras aumentaram 30% a 40% nas urgências e consultas em Centros de Saúde e Hospitais.

No cumprimento cego do Pacto de Estabilidade as opções políticas dependem exclusivamente de critérios economicistas.

A transformação de 34 hospitais em sociedades anónimas é disso um exemplo.

Na discussão do Orçamento de Estado o governo não disponibilizou informação e impediu uma discussão séria da verdadeira situação destas unidades de saúde.

No entanto, o que se sabe, é deveras preocupante.

A precarização dos vínculos laborais é regra, o primado da saúde dá lugar ao primado da gestão empresarial. E a diminuição dos recursos financeiros, indispensáveis à prestação dos cuidados de saúde, põe em causa a missão dos profissionais.

A procura de receitas próprias viabiliza a selectividade dos utentes e das intervenções.

Em primeiro lugar o lucro e depois o cidadão.

Nesta panóplia de preversões, o governo afirma que gastou menos na área da saúde que o orçamento de funcionamento previsto.

Não o provou.

Mas o défice do exercício de 2003 para 2004 duplica.

Relativamente ao investimento a quebra é brutal. A um corte de 28%, acresce ainda uma baixa taxa de execução, sinónimo de projectos parados ou simplesmente arquivados.

Também as verbas para as Administrações Regionais de Saúde diminuem, debilitando ainda mais os cuidados primários, a saúde pública e preventiva.

Entretanto, já está em curso, mais uma entrega a privados de novos hospitais, que deixarão de integrar o Serviço Nacional de Saúde.

Durante 25 ou 30 anos o direito à saúde das populações abrangidas estará dependente do apetite pelo lucro.

Outros países já o fizeram, recuaram, perante as desvantagens mas a maioria não integra o grupo dos que aprendem com os erros.

Se não, atente-se no escândalo que envolve a entrega ao Grupo Mello, através do Hospital Amadora/Sintra, de 118,6 milhões de euros.

Verba superior aquela que o governo propõe para os hospitais distritais de nível 1.

E que é o dobro do orçamento previsto para os vários hospitais psiquiátricos públicos.

E que constitui 80% das verbas previstas para a recuperação de listas de espera.

É tão só, mais do que o PIDDAC do Ministério da Saúde para 2004.

E enquanto o governo procede ao leilão do Serviço Nacional de Saúde, confiscando informação e produzindo publicidade enganosa, os portugueses distanciam-se, cada vez mais, do direito e do acesso à saúde.

Senhor Presidente,
Senhoras Deputadas,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo

Estas são algumas das razões que determinam o nosso voto contra.

Consideramos que as políticas sociais poderiam e deveriam contribuir, decisivamente, para uma sociedade mais solidária e mais justa.

O País que temos não resulta de nenhum fatalismo histórico, mas de opções políticas que sustentam um modelo económico injusto na repartição da riqueza, inaceitável na desvalorização do valor do trabalho e inadmissível no ataque feroz e permanente que faz às funções sociais de Estado.

Outro poderia ser o país, se outras e mais justas fossem as opções políticas.

Disse.