Intervenção do Deputado
Lino de Carvalho
Orçamento do Estado para 2001
(Debate na generalidade)
7 de Novembro de 2000
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Ao debater um Orçamento de Estado estamos antes de mais a debater políticas.
E é a análise das políticas do Governo, com a evidente
tradução nos números do Orçamento, que justifica
o voto que aplicaremos às propostas em análise.
Talvez a discussão do Orçamento para 2001 tenha começado
efectivamente com as afirmações do Primeiro Ministro, vestido
de Secretário Geral do PS, de que queria o Orçamento aprovado
à esquerda.
Poucos terão acreditado nessa possibilidade e ela evidentemente não
se concretizou.
Na realidade a proposta de Orçamento mantém e em alguns casos
até aprofunda, linhas essenciais da política de direita até
aqui seguida.
E a atitude que, da parte do PCP, temos em relação a todas as
propostas e também às propostas orçamentais é votá-las
em função do conteúdo. E é isso que também
faremos em relação a este Orçamento.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Um Orçamento não um simples papel amorfo e inócuo. É
antes o documento que melhor traduz a orientação das políticas
do Governo.
Ouvimos ontem o Sr. Primeiro Ministro referir-se ao aumento da despesa social
neste Orçamento. Mas facilmente constatamos que muito do que é
orçamentado como despesa social não é na verdade encaminhado
para as prestações sociais.
É o que acontece no Ministério da Saúde. Boa parte dos
dinheiros que o Orçamento da Saúde comporta vão direitinhos
para os bolsos do capital económico que vai ganhando cada vez mais terreno
nesta área.
Aconteceu com a injecção mais de 277 milhões de contos
para limpeza da dívida no Orçamento de 1999, que foram rapidamente
devorados pelos grupos privados dos medicamentos, das farmácias, dos
equipamentos, dos convencionados ou dos meios complementares de diagnóstico.
O descalabro financeiro do sector da saúde, bem patente nas dívidas
que mais uma vez se acumulam na proposta de Orçamento para 2001 não
pode ser visto de forma inocente. Faz parte de uma clara estratégia de
degradação do Serviço Nacional de Saúde para abrir
caminho à almejada privatização, exigida há muito
pelos interesses económicos que mais ordenam neste sector.
Quando o Governo continua a privilegiar na gestão hospitalar a incompetência,
o compadrio partidário ou outro está a preparar a privatização
da saúde.
Quando o Governo continua a negar à gestão pública os meios
financeiros e humanos para dar resposta às necessidades de cada instituição
está a preparar a privatização da saúde.
Quando o Governo continua a submeter a política de medicamentos às
perspectivas de lucro das indústrias farmacêuticas e do sector
das farmácias está a privatizar a saúde.
Cabe aqui perguntar ao governo o que é feito do famigerado protocolo
entre o Ministério da Saúde e a indústria farmacêutica.
Este protocolo previa a devolução de determinadas verbas pela
indústria quando o crescimento da despesa com medicamentos fosse superior
a 4%. Que é feito dele Sra. Ministra da Saúde?
A incompreensível não activação do protocolo pelo
Ministério da Saúde terá certamente agradado ao sector
dos medicamentos. E que assim, enquanto o orçamento da saúde teve
mais 9 milhões de contos de prejuízos a indústria farmacêutica
teve mais 9 milhões de contos de lucro.
E vejamos ainda o que acontece com o programa de acesso aos cuidados de saúde.
Fazendo vista grossa da lei, aprovada nesta Assembleia, o Governo está
a convencionar a recuperação de listas de espera com o sector
privado, sem que se prove estar esgotada a capacidade dos hospitais públicos.
Desta forma o Governo tenta afastar definitivamente dos serviços públicos
estas prestações, que são obviamente as mais apetecíveis
para o sector privado e engrossa os lucros deste sector à custa do orçamento.
O Orçamento da saúde e o seu acréscimo têm já
assim em boa parte destinatário prometido.
Foi também curioso ouvir o Senhor Primeiro Ministro dizer que, caso o
Orçamento fosse chumbado, o regime de duodécimos significaria
a existência de rupturas nos serviços de saúde. Acontece
que este ano, por via das restrições impostas directamente pela
Ministra da Saúde, essas rupturas, que nalguns casos poderão até
atingir níveis mínimos de segurança, já existem.
E que, se saiba, não estamos a viver de duodécimos.
O mesmo se diga ainda em relação aos investimentos em equipamentos
de saúde em que desapareceram nesta proposta orçamental muitos
dos projectos anteriormente inscritos, designadamente os que não têm
cabimento no III Quadro Comunitário de Apoio, ou os grandes hospitais
a construir na cintura de Lisboa, que o Governo se prepara para entregar aos
privados.
Esta proposta de Orçamento aprofunda a privatização continuada
e programada da saúde. Nesta proposta de Orçamento o capital económico
da área da saúde leva pela mão o Governo no caminho da
privatização.
O anunciado rigor da política da saúde resume-se afinal, a seguir
rigorosamente, em passo ordeiro mas rápido, as orientações
neo-liberais para este sector.
Outro tanto se pode dizer do sector da Educação, outra área
de despesa social onde se conjuga uma política que ao mesmo tempo vai
entregando ao sector privado muito do que caberia ao Estado assegurar e em que
se instala uma cada vez maior elitização do ensino.
Também aqui existe privatização encapotada à custa
dos dinheiros públicos.
Acontece com a rede do pré-escolar em que o Governo dá prioridade
às instituições privadas, mesmo quando algumas desviam
os subsídios do Estado para fins que não estavam previstos.
Acontece quando se multiplicam contratos de associação com escolas
privadas e ao lado, nas escolas públicas, se atribuem inúmeros
"horários zero" a professores por falta de alunos.
A política de educação é uma política elitista
e que caminha no sentido inverso ao da democratização do acesso
ao ensino.
É por isso que os manuais escolares continuam a não ser gratuitos
para a escolaridade obrigatória, nem sequer para o primeiro ciclo do
ensino básico como prometeram os dois governos do PS.
É por isso também que se estrangulam financeiramente as escolas
obrigando a uma gestão economicista e causando carências absolutamente
inaceitáveis.
É ainda por esta política que se continua a elitizar o ensino
superior, atrofiando financeiramente as instituições ou reduzindo
as verbas para a acção social escolar.
É espantoso o discurso do Ministro da Educação sobre as
propinas em relação às quais sempre nos opusemos.
Para o Ministro, quando a lei diz que as propinas devem ser utilizadas para
a melhoria da qualidade de ensino, isso não quer dizer que não
o possam ser nas despesas de funcionamento das instituições.
E a verdade é que muitas instituições, confrontadas com
a escassez de recursos atribuídos pelo Orçamento de Estado e são
obrigadas a lançar mão do dinheiro das propinas. E este ano mais
uma vez o governo vai obrigar as instituições a fazer o mesmo.
Significativa é a quebra do investimento na área da educação.
Em 2000 quase metade do orçamentado ficou por aplicar adiando-se investimentos
fundamentais. Em 2001 o próprio Governo prevê uma diminuição
do 5% e quer convencer-nos que o país já está em condições
de abrandar o investimento em educação.
Porventura ainda mais chocante é a justificação do Governo
para o desinvestimento na acção social escolar.
É que - diz o governo - o perfil sócio-económico do estudante
do ensino superior público tem-se alterado no sentido de se poderem dispensar
apoios sociais.
O Governo justifica a diminuição de apoios sociais com a elitização
cada vez maior da frequência do ensino superior, que é de facto
um resultado e um objectivo da sua própria política e que tem
como uma das causas precisamente a falta de apoios sociais para quem deles necessita.
Podemos ainda falar do retrocesso que o Governo propõe para as deduções
aos rendimentos do trabalho dependente dos cidadãos deficientes. É
que ao subir a exigência de incapacidade de 60 para 65% o Governo está
na prática a excluir deliberadamente deste benefício uma importante
fatia dos que até aqui dele beneficiaram.
Trata-se de uma incompreensível penalização de um sector
já muito carenciado da população e sistematicamente esquecido
pelo Governo. Trata-se de uma medida de intolerável insensibilidade social.
Por estes exemplos se comprova como os números redondos do aumento da
despesa social se transformam em problemas bicudos quando se conhece a realidade
do país e se conhecem as necessidades das pessoas.
É por isso que, ao apelo à esquerda, se seguiu a continuação
da política de direita. Mesmo que os partidos da direita, pressentindo
um aumento do descontentamento social, tentem agora aparecer como grandes opositores
de uma política que caucionaram em orçamentos anteriores e que
no fundamental é a sua, travestida por vezes de diferentes roupagens
ou de artificiais adereços, muito em voga na moda socialista europeia.
Dizia ontem o Eng.º António Guterres que o que está em causa
neste Orçamento é o futuro da situação política,
económica e social do país. É precisamente por isso que
não aprovamos este Orçamento; porque com ele agravará a
situação do país, designadamente nas áreas sociais.
O país precisa de uma outra política.
De uma política orientada para o progresso social, para o combate às
desigualdades, para a construção de uma sociedade mais justa.
Mas essa política não está neste Orçamento.
Disse.
(...)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Manuel dos Santos,
Penso que está um pouco enganado quanto a algumas convergências que citou.
A primeira questão que gostava de abordar em resposta à sua pergunta é a seguinte: o Sr. Deputado Manuel dos Santos considera que é defender o Serviço Nacional de Saúde fazer «vista grossa» a um acordo que o próprio Governo do Partido Socialista celebrou com a indústria farmacêutica, no qual se previa a possibilidade de a indústria devolver ao Estado uma quantia considerável no caso de a despesa com medicamentos aumentar mais de 4%?
O Sr. Deputado está de acordo que o XIV Governo tenha fechado os olhos e esquecido esse acordo, com isso perdendo-se, pelo menos, 9 milhões de contos, que, de outra forma, poderiam ter sido justamente ressarcidos ao orçamento do Ministério da Saúde?
É ou não este um exemplo paradigmático de que muita da despesa feita no orçamento da saúde, cujas «derrapagens» são muitas vezes usadas para atacar o carácter público do Serviço Nacional de Saúde, vai parar aos bolsos dos poderosos interesses económicos que existem neste sector?
É ou não verdade que a dívida que repusemos no Orçamento de 1999 foi utilizada, no fundamental, não para melhorar as prestações, não para fazer o saneamento financeiro diminuindo as margens de lucro e os poderosos interesses económicos na saúde mas, sim, para pagar mais uns quantos milhões a esses próprios interesses?
O Sr. Deputado Manuel dos Santos diz que o Governo tem controlado a despesa de saúde no essencial e não no acessório, mas o que conhecemos é que o Governo institui restrições muito graves à despesa nas unidades de saúde, não instituindo restrições, nem muito graves, nem muito sérias - nem pouco mais ou menos -, aos lucros da indústria farmacêutica ou aos lucros da Associação Nacional de Farmácias.
Aqui é que está a distinção entre o essencial e
o acessório! Para nós, o essencial para defender o Serviço
Nacional de Saúde é haver uma gestão pública eficaz,
com os meios necessários, é acabar com os privilégios ao
sector convencionado, ao sector dos medicamentos ou a outros sectores que parasitam
o orçamento da saúde.
Quanto a este ponto, não convergimos com o Sr. Deputado Manuel dos Santos!
Aliás, ficamos ainda por saber se a convergência que existe aqui
não é a convergência da política que o Governo leva
a cabo na área da saúde com os interesses que a direita também
perfilha no sentido da privatização do Serviço Nacional
de Saúde!
É que a degradação propositada do Serviço Nacional de Saúde é intencionalmente a preparação do caminho da privatização! Esta é a questão que está em cima da mesa!
(...)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado António Braga,
Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que eu tinha razão tanto no que disse em relação à saúde como no que disse em relação à educação.
Sr. Deputado, vou citar-lhe os dados que retirei, não de qualquer contabilidade criativa mas, sim, dos números fornecidos pelo Governo na comissão a que V. Ex.ª preside.
Ora, de acordo com os números que o Governo nos forneceu, o investimento na área da educação diminui, neste ano, 5%, o que corresponde, no total, a 28 milhões de contos. Estes foram os números fornecidos pelo Ministério da Educação, confirmados, aliás, pelo Sr. Ministro da Educação, quer em entrevistas que deu à comunicação social, quer na reunião da Comissão de Educação, Ciência e Cultura que o Sr. Deputado António Braga dirigiu.
Quero referir-lhe ainda um outro exemplo. Sabe o Sr. Deputado que o investimento em acção social escolar no ensino superior, que é um sector especialmente carente deste tipo de investimentos, é hoje menos de metade do previsto no último orçamento do governo do PSD?
O Sr. Deputado orgulha-se deste número quando tanto o PCP como o PS criticavam a falta de investimento nesta matéria pelos governos do PSD e agora verificamos, ao fim de cinco anos, que o Governo investe em acção social escolar do ensino superior menos de metade da verba constante do Orçamento de 1995?! Sr. Deputado, quanto a números julgo que estamos conversados.
Quero salientar também que o Sr. Deputado António Braga esqueceu-se de mencionar algumas questões importantes a que me referi na intervenção que tive oportunidade de proferir. Por exemplo, o Sr. Deputado António Braga não se referiu à questão de, hoje, as instituições do ensino superior serem obrigadas, pela restrição orçamental a que o Governo as submete, a utilizar o dinheiro das propinas para despesas de funcionamento.
O Sr. Ministro da Educação, em relação à proporção dos salários nas despesas de funcionamento, espantosamente disse que não era verdade que 100% do dinheiro do orçamento de funcionamento fosse utilizado para pagar salários. Portanto, ficamos a saber que 100% do orçamento de funcionamento não é utilizado para esse fim, mas não ficamos a saber se não será 99% ou 99,5%.
O Sr. Deputado António Braga também não se referiu a outra das vertentes da análise que fizemos em relação à política de educação, ou seja, à questão da elitização do ensino. A elitização do ensino está a ser feita, umas vezes mais a descoberto, outras vezes de forma mais camuflada, nas diversas intervenções de política educativa, com as restrições aos dinheiros para bolsas de estudo, que são este ano menores, tendo em conta a inflação, dos que existiam no ano passado, está a fazer-se, por exemplo, quando se criam políticas educativas que encaminham para a exclusão os estudantes que não são capazes, pelas suas dificuldades sociais ou económicas, desde logo, de progredir, como seria desejável, na carreira educativa, está a fazer-se quando limita os orçamentos das escolas, de todos os níveis de ensino, e as obriga a uma política não pedagógica, não educativa, mas a uma política economicista, que não é o que queremos em matéria de educação.