Declaração de Ilda Figueiredo
Deputada do PCP no Parlamento Europeu

Conferência de Imprensa do PCP

11 de Janeiro de 2002


A sete dias da leitura da sentença do processo em julgamento no Tribunal na Maia em que, a par de outros arguidos, 17 mulheres são acusadas da prática de aborto clandestino, estamos em condições de apresentar um balanço final da iniciativa que promovemos visando a subscrição por personalidades de diversos países de uma Declaração Internacional de Solidariedade com estas nossas compatriotas.

Como se recordarão, esta iniciativa começou por ser inicialmente dirigida aos deputados ao Parlamento Europeu (tendo de imediato encontrado um grande acolhimento traduzido na assinatura da Declaração por cerca de 60 deputados pertencentes a diversos grupos políticos) e foi depois alargada a personalidades da vida política e social, cultural, artística e científica de diversos países que, como o texto da Declaração propunha, entendessem manifestar a sua "activa e emocionada solidariedade" com as 17 mulheres portugueses e formular "de todo o coração" o desejo de que "as instâncias judiciais portuguesas, no exercício soberano e independente das suas atribuições, façam justiça absolvendo as acusadas".

É com uma grande satisfação e alegria, que cremos será bem compreendida, que verificamos não estarmos sós nesta causa, e que hoje podemos anunciar que esta iniciativa se traduziu num importante e significativo movimento de solidariedade internacional, com expressão nos cinco continentes, como se confirma plenamente não apenas pela assinatura de diversas personalidades de grande notoriedade e prestigio internacionais, mas sobretudo pela assinatura da Declaração, em pouco mais de dois meses, por um total de 1.104 personalidades de 42 países e pelo apoio expressamente manifestado por 57 entidades estrangeiras, designada-mente organizações sociais e de mulheres.

A esta luz, creio que esta iniciativa foi inteiramente justa e útil e que, exactamente porque há causas e valores que ultrapassam as fronteiras nacionais, foi justo e útil que às importantes e meritórias acções de solidariedade desenvolvidas no plano nacional designadamente pela Plataforma pelo Direito de Optar (e entre as quais destacamos o -infelizmente pouco divulgado - manifesto subscrito por mais de 420 personalidades da vida nacional) se viesse juntar a voz livre e responsável de tantas personalidades de outros países que, em muitos casos, além da assinatura, transmitiram pessoalmente a sua amargura, surpresa e indignação com uma situação que, como refere a Declaração, ofende "valores de civilização em que todos nos reconhecemos".

Por razões de inteira justiça, queremos sublinhar que a dimensão e êxito desta iniciativa se fica, em boa parte a dever, não tanto às diligências e contactos que directamente estabelecemos, mas ao esforço e iniciativa de muitas e muitas personalidades, de cidadãs e cidadãos e de organizações estrangeiras que, com grande dinamismo, empenho e generosidade, ajudaram à circulação internacional da Declaração e à respectiva recolha de assinaturas.

E é por isso que, agradecendo a todos(as) os(as) subscritores(as) e organizações que apoiaram a Declaração, queremos deixar expressa uma especial menção de gratidão para todos aqueles que sentiram o apelo interior de levar a mais pessoas a urgência deste testemunho internacional em defesa da dignidade humana das 17 mulheres acusadas, no processo da Maia, de prática de aborto clandestino, isto é, acusadas de algo para o que, apesar da sua (indesejável) dimensão social, a lei portuguesa continua a prever - de forma injusta e retrógrada - a possibilidade de punição com pena de prisão até 3 anos.


Finalmente, queremos afirmar com toda a clareza que, no nosso ponto de vista e na nossa sensibilidade, a única forma de fazer realmente justiça será a absolvição das 17 mulheres que estão a ser julgadas sob a acusação ( repito, sob a acusação) de terem feito o que, ao longo de décadas e décadas, já foi feito por centenas de milhar de portuguesas na grande maioria das vezes em situações de dramático "estado de necessidade" e baseadas em decisões pessoalmente muito dolorosas.

Sem pretender interferir nem na marcha da justiça nem nos seus critérios, manifestamos entretanto a opinião de que a aplicação da justiça, por vezes, deve ser muito mais do que a mera verificação ou prova de um "crime" tipificado na lei e a consequente aplicação, em qualquer modalidade, das penas previstas ou permitidas pela lei. E, neste sentido, chamamos a atenção para que em situações particulares, por vezes o poder judicial por razões de sensibilidade social e por consciência de um crescente consenso social sobre a ineficácia e inadequação das penas previstas na lei, evita - e bem - proceder a uma rígida e mecânica aplicação da lei.

Para que não sobre nenhuma espécie de equívoco, queremos afirmar ainda, com total clareza e convicção profunda, que o prosseguimento e o desenvolvimento da luta pela justa e válida causa da despenalização do aborto em Portugal não precisam para nada da condenação das 17 mulheres acusadas no processo da Maia.

E isto, para além da suprema razão de que nada pode ou deve passar à frente do interesse directo das mulheres acusadas, porque entendemos que a pungente situação em que as 17 mulheres foram colocadas por força de uma denúncia, a devassa das suas vidas que tiveram de enfrentar com as perguntas com que foram confrontadas representam uma tão desmedida e inaceitável violência que, só por si, são razões suficientes para que, tão breve quanto possível, Portugal seja finalmente dotado de uma lei de despenalização da interrupção voluntária da gravidez aprovada pela Assembleia da República.

Para que haja um movimento de transferência do aborto da esfera da clandestinidade e do risco para a saúde das mulheres, para a esfera da legalidade e da segurança médica, no contexto de um acrescido e paralelo esforço para a generalização do planeamento familiar e da educação sexual.

Para que na sociedade portuguesa se termine com essa corrosiva duplicidade que agita fantasmas e duros adjectivos contra uma lei de despenalização, mas convive tranquila e pacificamente, dia após dia, com o drama do aborto clandestino.

Para que seja posto termo a esta permanente ameaça sobre as mulheres que recorrem ao aborto clandestino, que está inscrita no Código Penal, como o processo da Maia acaba de dolorosamente lembrar.

Para que o século XXI, vivido em Portugal, não mais tenha mulheres sentadas no banco dos réus por este motivo.