Sobre os direitos sexuais e reprodutivos e a luta pela despenalização do aborto
Nota da Comissão Política do PCP
21 de Novembro de 2003

1. Portugal confronta-se com um Governo e uma maioria parlamentar que se afirma explicitamente como um travão a qualquer avanço legislativo em matéria de despenalização do aborto, ao mesmo tempo que aposta na tentativa de impôr, na esfera do Estado, valores ideológicos e princípios de actuação que contrariam direitos civilizacionais consagrados na Constituição e nas leis em matéria de direitos sexuais e reprodutivos.

A acção política, ideológica e psicológica do Governo e da sua maioria parlamentar aposta numa frontal ruptura com o carácter democrático e progressista presente na legislação portuguesa em matéria da maternidade-paternidade – como um direito, uma escolha e uma função social do Estado –, o papel da educação sexual em meio escolar, bem como relativamente aos valores e princípios que devem nortear o conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos dos cidadãos, designadamente das mulheres.

2. São disso expressão as diversas leis que têm vindo a ser aprovadas na área do trabalho, da família e da segurança social . As opções presentes nas Grandes Opções do Plano e do Orçamento de Estado para 2004, são claras quanto à aposta em manter linhas de acção assentes na proibição do aborto seguro, nas restrições ao planeamento familiar e à contracepção, a desvalorização da educação sexual em meio escolar, a par da ausência das medidas adequadas à prevenção de gravidezes precoces. Regista-se a ausência de referência a programas ou projectos no âmbito da saúde sexual e reprodutiva.

3. O PCP considera que, para o êxito da luta pela despenalização do aborto, se impõe um vigoroso combate às concepções e posições da maioria PSD-CDS/PP que aposta na criminalização das mulheres, na estigmatização das que têm de recorrer à interrupção voluntária da gravidez e no escandaloso favorecimento, com meios e recursos do Estado, de organizações criadas para mover combate à despenalização do aborto e para manter uma tranquila convivência com o dramático problema do aborto clandestino.

4. Apesar do enorme obstáculo que representa a existência de uma maioria de direita na Assembleia da República, o PCP continua a sustentar com firmeza a exigência de se enfrentar, finalmente, com coragem o problema do aborto clandestino e de terminar com uma criminalização que ofende os mais elementares valores humanos e civilizacionais e representa uma intolerável agressão e ameaça às mulheres portuguesas, como o julgamento da Maia e outros casos com investigação em curso bem evidenciam.

Recorde-se a este propósito que, logo no início da nova legislatura, cumprindo um relevante compromisso eleitoral, o PCP entregou na Assembleia da República um projecto de lei de despenalização do aborto (nºI/IX), no que foi seguido pela apresentação pelo Bloco de Esquerda de um projecto de lei sobre a mesma matéria..

Isso significa claramente que o empenho do PCP é o de que a AR debata e aprove uma lei nesse sentido, já que se desejasse um outro referendo sobre o tema teria então antes apresentado um projecto de resolução com vista à sua convocação.

Ao mesmo tempo, não se pode deixar de sublinhar que as dificuldades resultantes da existência de uma maioria parlamentar do PSD e do CDS-PP se projectam não apenas na aprovação de uma lei de despenalização do aborto, mas também na aprovação parlamentar de uma proposta de novo referendo sobre a matéria, uma vez que o PSD e o CDS-PP até incluíram no seu acordo de coligação um referência explícita de oposição à convocação de um novo referendo.

5. O PCP respeita as opiniões de diferentes de sectores e personalidades que, ao anunciarem o seu empenho prioritário numa campanha a favor da convocação de um novo referendo, parece terem aceite a tese do PS da indispensabilidade política do recurso a um novo referendo ou então são guiadas pelo juízo de que a maioria PSD/CDS-PP terá maiores dificuldades em se opor a um referendo do que à aprovação de uma lei de despenalização.
Este juízo ignora ou minimiza porém o que o PSD/CDS-PP já expressaram sobre esta matéria.

Não contestando a legitimidade do recurso a fórmulas que abram um espaço para a participação dos(as) cidadãos(ãs) e para a afirmação pública de uma corrente de opinião, o PCP esclarece entretanto que, ao contrário do que muitas notícias erróneas têm difundido e que o próprio texto da petição em curso não esclarece, uma petição subscrita por 75 mil cidadãos não conduz por si só à convocação de um novo referendo mas sim ao debate e votação de uma proposta nesse sentido na Assembleia da República (e que, mesmo que aprovada, carece sempre da posterior concordância do Presidente da República), o que qualquer partido representado na Assembleia da República pode também provocar em qualquer momento.

6. Como o provou no passado, preferindo que o primeiro passo seja a tentativa de aprovação na AR de uma lei de despenalização do aborto, o PCP não exclui travar nenhuma outra batalha, mesmo que não corresponda às suas opções e preferências.

Mas o PCP espera que outras forças e personalidades compreendam que, por razões de coerência, o PCP não pode passar a empunhar a bandeira do referendo sobre IVG que foi a do PSD e do PS há cinco anos, e que o PCP e tantos outros sectores e personalidades vivamente combateram. Não pode alinhar-se pela teoria absurda – e sem nenhum fundamento constitucional – de que, uma vez feito um referendo (que, naquele caso, nem sequer teve efeito vinculativo), só por novo referendo se poder decidir sobre a matéria, nem contribuir para a negação, explícita ou implícita, da inequívoca legitimidade que a AR mantém para legislar sobre a interrupção voluntária da gravidez.

Entretanto, o PCP chama ainda à atenção que a colocação de um novo referendo como prioridade de acção política e reivindicativa não deixará de ser usada para reforçar as teses que negam à Assembleia da República a capacidade, legitimidade e responsabilidade de poder vir a aprovar um projecto-lei de despenalização do aborto.

7. Não havendo, de imediato, nenhum caminho fácil à vista, o PCP considera que as propostas e iniciativas para se colocar a prioridade na reclamação de um novo referendo não farão o consenso entre todos os que apoiam a causa da despenalização do aborto.

O PCP continua a ser activamente favorável a que, a par de um urgente combate aos recuos em curso em matéria de educação sexual, planeamento familiar e do conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos, a primeira prioridade no plano institucional nesta matéria continue a ser a tentativa de aprovação pela AR de uma lei de despenalização do aborto, sendo indispensável que se desenvolva um vasto movimento de opinião que, entre outras finalidades, pressione a Assembleia da República nesse sentido.