Intervenção da
deputada Odete Santos

Garante uma maior igualdade de oportunidade
na participação de cidadãos de cada sexo,
nas listas de candidatura apresentadas nas eleições
para a Assembleia da República e para o Parlamento Europeu
quanto aos Deputados a eleger por Portugal

4 de Março de 1999



Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores Membros do Governo,

Convém recordar, até porque nos encontramos próximo do dia 8 de Março e dada a natureza deste debate, que não pode consentir retratos desfocados, os motivos porque Março foi e continua a ser o mês em que se assinalam as lutas contra as discriminações.

Convém recordá-lo como dia simbólico que não autoriza pompas nem circunstâncias, e muito menos cosméticas. A morte das operárias da fábrica Triangle no dia 25 de Março de há muitos anos, aprisionadas e lançando-se do 9º andar como única forma de fugir a um incêndio numa fábrica sem condições de segurança, o que significa a escolha de Março para comemorar as lutas das mulheres, não autoriza que as mulheres sejam utilizadas para cosméticas de que alguns necessitam para se promoverem.

Convirá recordar o dia 8 de Março para que não se esqueça, e ressurja, a afirmação de que a luta das mulheres se norteou sempre pelo derrube das barreiras criadas e sustentadas em nome das diferenças biológicas.

Para afirmar que um propalado direito à diferença mais não serve senão para justificar discriminações.

A criação das categorias em nome da biologia , é um tremendo sinal de retrocesso.

Se recordamos a luta das mulheres, veremos claramente que elas conseguiram quebrar a barreira biológica e afirmar que nenhuma identidade sexual as podia impedir de igual acesso às profissões ditas masculinas.

Se a luta das mulheres derrubou a barreira das diferenças em função da biologia, é errado chamar sexista às discriminações das mulheres... Porque é mais e menos do que isso. É menos porque as mulheres não são vítimas, todas elas, de igual maneira, dessa discriminação. É mais , porque a discriminação das mulheres está profundamente ligada às discriminações de classes de que também são vítimas os homens.

A Proposta que o Governo nos traz, sob uma aparente capa de modernidade, faz a reconstrução das diferenças biológicas, assenta na reconstrução de categorias sexuadas de cidadãos, cumprindo objectivamente a finalidade de fazer esquecer as profundas desigualdades económicas e sociais que tanto atingem as mulheres.

Cumprindo, pelo menos objectivamente, o objectivo de atingir a solidariedade entre as vítimas de discriminação, mulheres e homens. Enquanto muito se fala da discriminação de género, quer-se construir uma barreira de silêncio sobre os reais problemas das mulheres, cuja resolução será um importante contributo para a igualdade de oportunidades de todos os cidadãos, homens e mulheres, de cada cidadão, de cada homem e de cada mulher.

A história vai assinalar que desde que, nos fins da década de 70, começaram a surgir movimentos ditos paritários, os problemas das mulheres, no trabalho, na família, na sociedade, foram relegados para 2º plano. Porque tais movimentos assinalaram como importante e definitivo, a tomada do poder a qualquer preço. Mesmo que esse preço fosse o silêncio sobre as desigualdades salariais, as desigualdades no acesso ao emprego, o trabalho com salário reduzido - o trabalho em part time - a luta contra o aborto clandestino pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez.

Mesmo que esse preço possa ser, aqui, no Parlamento Português, escamotear a situação real das mulheres portuguesas. Esconder que, neste momento, com o pacote laboral que já cá temos na Assembleia, a igualdade real das mulheres está ameaçada.

Mesmo que o preço seja passar para segundo plano a denúncia de que a grande maioria das mulheres portuguesas se situam entre os 80% dos cidadãos se ficam pelo ensino básico, e nem sempre completo. Que a taxa de analfabetismo é preenchida sobretudo pelas mulheres. Que no número dos trabalhadores a auferir o salário mínimo nacional, as mulheres são mais do dobro dos homens. Que elas ganham menos do que os homens, como acontece na União Europeia, em trabalhos iguais.

Que elas são vítimas de discriminação por estarem grávidas, como acontece, por exemplo, com as trabalhadoras das grandes superfícies comerciais, que não vêem os seus contratos a prazo renovados quando engravidam; que não são abrangidas por aumentos salariais aplicados pelas entidades patronais quando estas descobrem que vão ter uma trabalhadora em licença de parto.

Enquanto o Governo aqui vem falar da pretensa modernidade de reconstrução de um conceito meramente biológico há mulheres que sofrem em linhas de montagem. Vendo a sua saúde desaparecer ainda na sua juventude, perante a inércia do Governo que não cumpre o dever de garantir ás trabalhadoras das empresas do sector eléctrico, nomeadamente às trabalhadoras da Ford Electrónica- o caso mais gritante de cumplicidade do Governo com o poder económico no desprezo com a saúde de quem trabalha - que não cumpre o dever de garantir a saúde no trabalho.

Não, senhores membros do Governo, o debate de hoje, não é sobre a modernidade - que não o é - da discriminação de género, mas é, e continuará a ser sobre as gritantes exclusões de mulheres que fazem do trabalho uma arma para a conquista da cidadania. Para romper o gueto da barreira biológica. Para afirmar a recusa de um conceito meramente biológico de discriminação do sexo feminino. Não, senhor Presidente, senhores Deputados, senhores membros do Governo, o primeiro princípio de toda a emancipação é a recusa de classificar os seres humanos segundo distinções naturais. Princípio afirmado no artigo 13º da nossa Constituição.

E se outro artigo da Constituição acentua a necessidade de promover a igualdade entre mulheres e homens, e se o artigo 109º fala da promoção da igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, o texto constitucional no seu conjunto não autoriza a que uma lei venha impor a divisão dos portugueses em duas categorias, meramente fundadas na biologia.

Porque essa não é forma de promover a igualdade dos cidadãos, individualmente considerados, que não se diluem na dicotomia mulheres/homens.

A proposta de lei não quer saber da igualdade de oportunidades para as mulheres, que vítimas de graves discriminações, limitadas na sua participação na vida política quotidiana, sabem que estas quotas se destinam a resolver um problema do Partido Socialista. Um problema das mulheres socialistas que julgam merecer, e seguramente merecerão, um melhor lugar nas listas deste Partido, e não o têm conseguido.

Mas a luta é feita da recusa das migalhas do banquete.

A igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, no quadro constitucional, e no quadro da realidade em que vivemos, da política demissionista do Governo no combate a todas as discriminações, não se compadece, nem é constitucionalmente admissível, a um conceito meramente biológico de mulher. E isso resulta desde logo do artigo 13º da Constituição da República.

Escreveram Vital Moreira e Gomes Canotilho em anotação ao artigo 13º da Constituição da República, a obrigação de diferenciação integrando o conteúdo jurídico - constitucional do princípio da igualdade, para se compensar a desigualdade de oportunidades, significa que o princípio da igualdade tem uma função social, o que pressupõe o dever de eliminação ou atenuação pelos poderes políticos, das desigualdades sociais, económicas e culturais, a fim de se assegurar uma igualdade jurídico - material"

E continuam os referidos autores:

No que respeita á função da protecção do princípio da igualdade, no sentido de obrigação de discriminações positivas, ele constitui inequivocamente uma imposição constitucional de igualdade de oportunidades, cujo não cumprimento justifica a inconstitucionalidade por omissão".

Será talvez por isso, que a páginas 56 do Livro que o Governo fez editar - Democracia com mais cidadania - consta que o professor Vital Moreira escreveu, acerca do cumprimento do artigo 109º da Constituição:

" Uma terceira hipótese é a do estabelecimento directo de quotas por parte da lei, com carácter vinculativo, com as consequências inerentes, nomeadamente a não aceitação de candidaturas que não respeitassem as quotas legalmente estabelecidas e a penalização noutros aspectos... É aqui que podem começar os problemas de constitucionalidade. Na verdade, pode entender-se que um sistema de quotas desta natureza, legalmente definido e legalmente vinculante, pode infringir o princípio da igualdade de tratamento das pessoas, independentemente do sexo" ( fim de citação)

Não se reconhece aqui a proposta do Governo?

Uma proposta que, como já o dissemos, penaliza exclusivamente os partidos e desresponsabiliza outros intervenientes neste processo, nomeadamente o Governo.

Saliente-se, porque esse é mais um claro sinal de cosmética, que a proposta do Governo apenas quer instituir quotas para o Parlamento Europeu e para a Assembleia da República ...

Falando-se tanto, e fala-se justamente, da subrepresentação escandalosa de mulheres nos órgãos de poder local, aí onde o poder se exerce mais próximo das populações, aí onde o universo dos eleitos é de 40.000, pergunta-se por que motivo o Governo parou e não quis garantir quotas às mulheres? E por que é que não quer instituir um sistema de quotas para o próprio Governo?

A operação paridade ou partilha do poder através de quotas assenta para mais num outro dado falso. O de que a identidade sexual, a biologia, determina uma nova forma de fazer política. Mais humanizada. Mais atenta aos problemas sociais.

Também aqui é preciso dizer que não é a biologia que forma as convicções ideológicas. Até Freud sorriria com afirmações que a tal respeito se produziram. Como disse Elisabete Badinter perante o Senado Francês, as posições políticas são determinadas em função da ideologia e não do sexo.

Entre Gandi e Marléne Albright, optamos claramente por um homem. Entre Martin Luther King e Golda Meir optamos claramente por um homem.

E não preferimos nem Golda Meir nem Moshe Dayan. Nem a mulher, nem o homem..

Sejamos claros:

As propostas que endeusam as mulheres enquanto tais, em vez de contribuírem para a promoção da igualdade, para o combate a todas as discriminações, para a luta dos povos pela sua emancipação, mais não fazem do que erguer novas barreiras, com a aparência de que se vai fazendo alguma coisa.

É que a Democracia, não está zarolha apenas porque os dois sexos não estão representados de forma equilibrada. A democracia está zarolha e míope, poderá ser afectada de cegueira, enquanto se verificarem exclusões aos mais diversos níveis.

As quotas, a paridade, não têm nada a ver com igualdade.

As quotas, a paridade, não são um valor de esquerda.

O Partido Comunista Português não está satisfeito com a percentagem de mulheres que tem acesso aos órgãos de poder político. Porque isso reflecte o atraso em que nos encontramos no combate ás discriminações.

Mas os números indicam, apesar de tudo, que o PCP se situa à frente no esforço de contribuir para uma maior participação política das mulheres.

Mas não estamos satisfeitos. Por isso assumimos o compromisso público de assegurar um significativo reforço de mulheres nas nossas listas eleitorais.

E desafiámos os restantes partidos a assumirem compromissos similares.

O reforço da participação política das mulheres deve assentar no empenho voluntário dos Partidos Políticos, também para que eles fiquem sujeitos à sanção ou ao prémio eleitoral por parte de cidadãos, homens e mulheres.

Entretanto, continuaremos a dar voz às lutas das mulheres. Das mulheres que não se vêem neste retrato desfocado apresentado pelo Governo.

As mulheres para quem o combate continua. Pela igualdade. Pela justiça.

Disse.