Sobre a situação no sistema de Justiça e a necessidade de um Programa de Medidas urgentes para a Justiça em Portugal
Declaração de Luís Sá, da Comissão Política do PCP
3 de Dezembro de 1998

 

1 - Tem-se verificado nos últimos tempos um conjunto de acontecimentos na área da Justiça com um grande impacto mediático e que têm chamado a atenção para este importante sector do Estado e do sistema político democrático. Foi o caso do processo Leonor Beleza, dos desentendimentos e choques entre magistraturas, da revelação de problemas e atrasos na investigação criminal, das desinteligências e contradições no campo legislativo. O anúncio do eventual arquivamento de importantes processos judiciais, no âmbito do Acórdão sobre prescrições, teve igualmente um especial significado.

Sem subestimar a importância de algumas questões colocadas, o PCP chama a atenção para o facto de se manterem importantes problemas de fundo, para os quais tem alertado ao longo dos anos e que são os centrais nesta matéria. Estão nesse caso a morosidade da Justiça, o seu custo elevado e a sua menor qualidade para as camadas sociais com menos recursos. No conjunto, aos olhos dos cidadãos, resulta um sistema de Justiça que favorece objectivamente as classes dominantes, os poderosos, podendo estar em causa a própria credibilidade do poder judicial.

No estado da Justiça em Portugal há três aspectos fundamentais que devem merecer especial atenção:

Com a conquista da democracia em 25 de Abril de 1974, aumentou muito o recurso dos cidadãos aos tribunais, tal como aumentou o elenco de direitos que é possível fazer valer por meios judiciais. Ao mesmo tempo, mantiveram-se ou agravaram-se fenómenos de exclusão social e pobreza e outras fontes de conflitualidade social, cresceu a sofisticação do crime e também a mediatização da Justiça, tudo factores de conflitualidade jurisdicional acrescida. Não houve, entretanto, a atenção devida à Justiça, nem as medidas correspondentes a este aumento do recurso aos meios judiciais.

Esta situação, que se foi acumulando e agravando ao longo dos anos, não pode continuar e é imperioso fazer-lhe frente no imediato, nomeadamente através de um Programa de medidas urgentes para a resolução dos problemas da Justiça em Portugal.

2 - Naturalmente, os Tribunais não são imunes à crítica. O PCP compartilha com a generalidade dos cidadãos justificadas preocupações com o actual estado de coisas. Mas não pode também deixar de denunciar vivamente todos aqueles que pretendem utilizar a justa indignação das populações para pressões que visam denegrir os Tribunais e as magistraturas judicial e do Ministério Público, atacando o poder judicial com o objectivo de bloquear e neutralizar a sua acção.

Estas pressões, cujos aspectos mais visíveis se traduzem por declarações mais ou menos radicais ou folclóricas de comentadores e figuras públicas, insere-se num processo mais profundo, que se vem intensificando, contra a independência dos Tribunais e na defesa e continuação de privilégios e impunidades dos detentores do poder económico e político.

3 - Como Partido responsável, o PCP reconhece que a grave situação da Justiça tem causas profundas e não pode ser imputada inteiramente ao actual Governo. Mas também é verdade que ao actual Governo cabem especiais responsabilidades no atraso e na falta de concretização de medidas que contribuam para a credibilização e, sobretudo, para a realização da Justiça. No quadro do Programa de medidas que o PCP propõe, impõe-se, em especial, uma actuação nas seguintes catorze direcções:

  1. Actualização da divisão judiciária, criando desdobramentos de círculos e de comarcas nas áreas de maior concentração demográfica e com maior acumulação de processos em atraso;
  2. Criação efectiva e rápida das bolsas de juizes para acudir aos casos de grande acumulação de serviço e atrasos nas comarcas;
  3. Combate ao excesso de formalismo processual e concretização das medidas de simplificação processual, incluindo a reconsideração de prazos de recurso, sem prejuízo dos direitos e garantias constitucionais;
  4. Recurso a formas extrajudiciais de resolução de conflitos, pelo alargamento da arbitragem e pela implementação dos julgados de paz;
  5. Rápida modernização e desburocratização do aparelho judicial e melhoria das condições de trabalho dos operadores judiciários;
  6. Melhoria da acessoria técnica e dos meios informáticos e tecnológicos ao dispor dos juizes, que permitam melhorar a celeridade da sua actuação e a informação disponível;
  7. Reforço e optimização dos meios à disposição das autoridades judiciais e dos órgãos de polícia criminal, com vista a uma melhor e mais rápida investigação criminal;
  8. Concretização de medidas legislativas e administrativas que, com salvaguardados direitos constitucionais, reduzam a possibilidade de manipulação dilatória da investigação e julgamento da alta criminalidade, criminalidade económica e "crimes de colarinho branco";
  9. Concretização de alternativas às penas de prisão e ao excesso de prisão preventiva, dignificação da situação dos reclusos e medidas de efectiva reinserção eficazes na prevenção da reincidência no crime e na delinquência;
  10. Organização de um programa de divulgação sistemática da função social do Direito e dos tribunais, começando pelas escolas e através de outros meios;
  11. Criação da carreira do Defensor Público, para dignificar a defesa dos cidadãos com menores recursos e melhorar o acesso ao Direito;
  12. Dignificação do estágio dos advogados, com maior responsabilização pública na sua formação e apoio;
  13. Criação de um Observatório da Administração da Justiça, junto da Assembleia da República, com a participação de elementos vindos dos tribunais e das instituições representativas dos profissionais de Justiça, das universidades, da comunicação social e outros;
  14. Elaboração anual de um Livro Branco sobre a Justiça e seu envio à Assembleia da República para assegurar um debate alargado.
4 - O PCP vê com grande interesse e considera oportunas, desde já, todas as iniciativas e debates que visem dialogar, assegurar a participação, concertar posições, atenuar contradições e superar atrasos e bloqueios, bem como todas as que vão no sentido de contribuir para a consolidação de um poder judicial democrático e para a salvaguarda da independência dos Tribunais. A uma semana das comemorações do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, resolver adequadamente os problemas da Justiça em Portugal e assegurar a sua democratização será uma forma de contribuir para lhe dar um conteúdo efectivo nesta área e para tornar a Justiça mais eficaz e colocá-la mais perto das populações.


Mesa da Conferência de Imprensa

Luís Sá - membro da Comissão Política do PCP
Odete Santos - Deputada do PCP na AR
José Neto - membro do Comité Central do PCP