Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,
Alguém terá dito um dia que a verdadeira imagem de um país é dada pelas suas
prisões. A forma como são tratados os cidadãos privados de liberdade é sempre,
em cada país, o espelho do respeito com que são encarados os direitos fundamentais
de todos os seus cidadãos.
O respeito para com a dignidade dos reclusos e a preocupação com a função ressocializadora
das prisões, são sinais de maturidade democrática e são questões essenciais
quanto ao respeito pelos direitos humanos.
Sendo esta Interpelação ao Governo centrada nas questões que mais nos preocupam
quanto à administração da Justiça, não podemos deixar de atribuir especial relevância
às preocupações que temos com o sistema prisional português. Não apenas pelos
problemas que são criados, ou que não são resolvidos no seu interior, mas também
pelas disfunções sociais e judiciárias que nele se reflectem.
O Senhor Ministro dirá que nos últimos anos aumentou o investimento no sistema
prisional, com a construção de mais prisões, com a alargamento de algumas das
já existentes, com um esforço considerável no melhoramento das condições de
reclusão. Não negamos que esse esforço tem sido feito e que a situação do sistema
prisional melhorou nos últimos dois anos quando comparada com a enorme crise
que atravessou nos anos de 1995 e 1996. E temos consciência obviamente que o
sistema prisional é obrigado a confrontar-se com problemas que não gera, mas
que é obrigado a gerir.
Mas seria irresponsável da nossa parte ter um juízo de satisfação perante uma
realidade que continua a ser inquietante. O sistema prisional português continua
a ser mais punitivo que ressocializador. É um sistema que reflecte as disfunções
da aplicação da Justiça: Está cheio de pequenos delinquentes, presos preventivamente,
ou a cumprir sucessivas penas pela prática reiterada de furtos ou de crimes
ligados à toxicodependência, mas faltam lá os criminosos de colarinho branco
e os poderosos, que a Justiça se revela incapaz de punir. É um sistema que se
confronta com gravíssimos problemas quanto à assistência médica aos reclusos,
sendo um meio de grande incidência e de propagação da toxicodependência, da
SIDA e de outras doenças contagiosas. É um sistema que, visando prevenir e combater
a criminalidade, acaba objectivamente por reproduzir condições para a reincidência
e para a consolidação de percursos criminosos.
Os dados conhecidos são preocupantes. A maioria da população prisional é jovem,
iletrada e quase condenada à reincidência. Cerca de 45% dos reclusos têm menos
de 30 anos. Mais de 70% não passaram do ensino básico, sendo que uma boa parte
de entre eles não sabem ler nem escrever. 46% dos reclusos são reincidentes.
O primeiro problema que normalmente vem ao de cima quando se discute o sistema
prisional é o da sua sobrelotação. Há, evidentemente, razões para isso. A lotação
das cadeias portuguesas está muito acima do limite aceitável, com todos os problemas
que daí decorrem e que são muitos. Mas resolver-se-á esse problema, simplesmente,
criando mais cadeias e aumentando a sua lotação? Do nosso ponto de vista, esse
investimento é necessário, mas não é suficiente para resolver os problemas de
fundo. O problema de Portugal não é ter cadeias a menos, mas antes, ter presos
a mais.
Ao contrário do que muitas vezes se diz, a verdade é que se prende muito, em
Portugal. Temos hoje uma taxa de reclusão de 147 presos por cada 100.000 habitantes,
quando em qualquer outro país da União Europeia essa taxa oscila grosso modo
entre os 60 e os 80.
E também não é verdade que as penas aplicadas em Portugal sejam brandas. Pelo
contrário. Portugal tem a maior duração média de prisão efectiva de toda a União
Europeia, que aumentou de 36 meses em 1994 para 44 meses em 1997.
Há evidentemente razões conduziram a esta situação. A falta de condições para
a prevenção da pequena criminalidade, a nula prioridade que durante muitos anos
foi dada ao policiamento de proximidade, a criação de um clima de alarmismo
entre a população gerador de naturais sentimentos de insegurança, que o Partido
Socialista tanto usou como arma política quando se encontrava na oposição, contribuíram
para criar uma pressão da opinião pública – e é preciso dizê-lo, das forças
policiais – no sentido do uso e abuso da prisão preventiva e da utilização das
penas privativas da liberdade para além do que seria porventura estritamente
necessário.
Mas o problema da população prisional não reside apenas no seu excesso, em termos
quantitativos. O que acontece é que, enquanto nas prisões se amontoam os toxicodependentes
e outros autores de pequenos delitos, os criminosos de colarinho branco ostentam
a impunidade e os sinais exteriores de riqueza. Enquanto a maioria dos toxicodependentes
não têm, nem maneira de se tratar, nem meios para se defender, nem um sistema
de defesa oficiosa condigna, e sofre implacavelmente a acção da Justiça, os
autores de crimes de corrupção, de fraudes de grande dimensão, de branqueamento
de capitais de origem criminosa, escapam facilmente às malhas de um aparelho
judiciário que nunca foi convenientemente preparado para os combater e eximem-se
facilmente à aplicação da Justiça usando todos os meios que a própria acção
criminosa lhes faculta. Numa palavra: a população prisional reflecte fielmente
as consequências de uma Justiça socialmente injusta.
A resolução do problema da sobrelotação prisional não passa por isso apenas
por construir mais prisões, embora se reconheça a necessidade de investimentos
no sistema prisional que melhorem qualitativamente a sua capacidade.
Quando verificamos que dos cerca de 10 mil presos que cumpriam penas nas nossas
prisões em finais de 1997, cerca de 8 mil cumpriam penas por crimes contra o
património ou por crimes relativos a estupefacientes, sendo a sua maioria toxicodependentes,
facilmente concluímos que, em vez de mais prisões, do que precisamos é de mais
CAT's, de mais comunidades terapêuticas, de uma legislação que encaminhe os
toxicodependentes para o sistema de saúde e não para o sistema prisional.
Também não é verdade, ao contrário do que por vezes se pensa, que a maioria
dos reclusos se limitem a cumprir uma parte relativamente reduzida das penas
a que foram condenados. Não só isso não é verdade, como nos últimos anos tem
diminuído a concessão de liberdade condicional. E pior: No caso de cidadãos
estrangeiros a quem tenha sido aplicada pena acessória de expulsão após o cumprimento
da pena de prisão, o que se verifica é que não só a pena é cumprida rigorosamente
até ao fim, sem liberdade condicional e sem saídas precárias, como a expulsão
é executada de imediato e sem dar sequer a possibilidade de um contacto directo
com a família.
O que verdadeiramente falta em Portugal são sistemas credíveis de medidas alternativas
à prisão. A utilização das medidas de trabalho a favor da comunidade não têm
expressão. Em 1997 houve apenas 14 casos de aplicação destas medidas. Escasseia
a utilização do regime aberto. Tardam as medidas de controlo que permitam substituir
com vantagem o recurso à prisão preventiva. Não se verificam, na prática, casos
de suspensão provisória de processos relativos a toxicodependentes para tratamento,
não obstante o enorme efeito prático que esta medida poderia ter, pelo facto
de não haver qualquer comunicação digna desse nome entre os tribunais e o sistema
de saúde.
Isto para já não falar dos estrangeiros indocumentados que, na falta dos famosos
centros de instalação temporária, aguardam a sua expulsão nas prisões como se
todos eles tivessem cometido crimes que o justificassem.
Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Quando em 1996, o Senhor Provedor de Justiça elaborou um excelente estudo sobre
as condições prisionais, concluiu: