Situação do sistema prisional
Intervenção do deputado António Filipe
15 de Abril de 1999

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,
Senhores membros do Governo,

Alguém terá dito um dia que a verdadeira imagem de um país é dada pelas suas prisões. A forma como são tratados os cidadãos privados de liberdade é sempre, em cada país, o espelho do respeito com que são encarados os direitos fundamentais de todos os seus cidadãos.

O respeito para com a dignidade dos reclusos e a preocupação com a função ressocializadora das prisões, são sinais de maturidade democrática e são questões essenciais quanto ao respeito pelos direitos humanos.

Sendo esta Interpelação ao Governo centrada nas questões que mais nos preocupam quanto à administração da Justiça, não podemos deixar de atribuir especial relevância às preocupações que temos com o sistema prisional português. Não apenas pelos problemas que são criados, ou que não são resolvidos no seu interior, mas também pelas disfunções sociais e judiciárias que nele se reflectem.

O Senhor Ministro dirá que nos últimos anos aumentou o investimento no sistema prisional, com a construção de mais prisões, com a alargamento de algumas das já existentes, com um esforço considerável no melhoramento das condições de reclusão. Não negamos que esse esforço tem sido feito e que a situação do sistema prisional melhorou nos últimos dois anos quando comparada com a enorme crise que atravessou nos anos de 1995 e 1996. E temos consciência obviamente que o sistema prisional é obrigado a confrontar-se com problemas que não gera, mas que é obrigado a gerir.

Mas seria irresponsável da nossa parte ter um juízo de satisfação perante uma realidade que continua a ser inquietante. O sistema prisional português continua a ser mais punitivo que ressocializador. É um sistema que reflecte as disfunções da aplicação da Justiça: Está cheio de pequenos delinquentes, presos preventivamente, ou a cumprir sucessivas penas pela prática reiterada de furtos ou de crimes ligados à toxicodependência, mas faltam lá os criminosos de colarinho branco e os poderosos, que a Justiça se revela incapaz de punir. É um sistema que se confronta com gravíssimos problemas quanto à assistência médica aos reclusos, sendo um meio de grande incidência e de propagação da toxicodependência, da SIDA e de outras doenças contagiosas. É um sistema que, visando prevenir e combater a criminalidade, acaba objectivamente por reproduzir condições para a reincidência e para a consolidação de percursos criminosos.

Os dados conhecidos são preocupantes. A maioria da população prisional é jovem, iletrada e quase condenada à reincidência. Cerca de 45% dos reclusos têm menos de 30 anos. Mais de 70% não passaram do ensino básico, sendo que uma boa parte de entre eles não sabem ler nem escrever. 46% dos reclusos são reincidentes.

O primeiro problema que normalmente vem ao de cima quando se discute o sistema prisional é o da sua sobrelotação. Há, evidentemente, razões para isso. A lotação das cadeias portuguesas está muito acima do limite aceitável, com todos os problemas que daí decorrem e que são muitos. Mas resolver-se-á esse problema, simplesmente, criando mais cadeias e aumentando a sua lotação? Do nosso ponto de vista, esse investimento é necessário, mas não é suficiente para resolver os problemas de fundo. O problema de Portugal não é ter cadeias a menos, mas antes, ter presos a mais.

Ao contrário do que muitas vezes se diz, a verdade é que se prende muito, em Portugal. Temos hoje uma taxa de reclusão de 147 presos por cada 100.000 habitantes, quando em qualquer outro país da União Europeia essa taxa oscila grosso modo entre os 60 e os 80.

E também não é verdade que as penas aplicadas em Portugal sejam brandas. Pelo contrário. Portugal tem a maior duração média de prisão efectiva de toda a União Europeia, que aumentou de 36 meses em 1994 para 44 meses em 1997.

Há evidentemente razões conduziram a esta situação. A falta de condições para a prevenção da pequena criminalidade, a nula prioridade que durante muitos anos foi dada ao policiamento de proximidade, a criação de um clima de alarmismo entre a população gerador de naturais sentimentos de insegurança, que o Partido Socialista tanto usou como arma política quando se encontrava na oposição, contribuíram para criar uma pressão da opinião pública – e é preciso dizê-lo, das forças policiais – no sentido do uso e abuso da prisão preventiva e da utilização das penas privativas da liberdade para além do que seria porventura estritamente necessário.

Mas o problema da população prisional não reside apenas no seu excesso, em termos quantitativos. O que acontece é que, enquanto nas prisões se amontoam os toxicodependentes e outros autores de pequenos delitos, os criminosos de colarinho branco ostentam a impunidade e os sinais exteriores de riqueza. Enquanto a maioria dos toxicodependentes não têm, nem maneira de se tratar, nem meios para se defender, nem um sistema de defesa oficiosa condigna, e sofre implacavelmente a acção da Justiça, os autores de crimes de corrupção, de fraudes de grande dimensão, de branqueamento de capitais de origem criminosa, escapam facilmente às malhas de um aparelho judiciário que nunca foi convenientemente preparado para os combater e eximem-se facilmente à aplicação da Justiça usando todos os meios que a própria acção criminosa lhes faculta. Numa palavra: a população prisional reflecte fielmente as consequências de uma Justiça socialmente injusta.

A resolução do problema da sobrelotação prisional não passa por isso apenas por construir mais prisões, embora se reconheça a necessidade de investimentos no sistema prisional que melhorem qualitativamente a sua capacidade.

Quando verificamos que dos cerca de 10 mil presos que cumpriam penas nas nossas prisões em finais de 1997, cerca de 8 mil cumpriam penas por crimes contra o património ou por crimes relativos a estupefacientes, sendo a sua maioria toxicodependentes, facilmente concluímos que, em vez de mais prisões, do que precisamos é de mais CAT's, de mais comunidades terapêuticas, de uma legislação que encaminhe os toxicodependentes para o sistema de saúde e não para o sistema prisional.

Também não é verdade, ao contrário do que por vezes se pensa, que a maioria dos reclusos se limitem a cumprir uma parte relativamente reduzida das penas a que foram condenados. Não só isso não é verdade, como nos últimos anos tem diminuído a concessão de liberdade condicional. E pior: No caso de cidadãos estrangeiros a quem tenha sido aplicada pena acessória de expulsão após o cumprimento da pena de prisão, o que se verifica é que não só a pena é cumprida rigorosamente até ao fim, sem liberdade condicional e sem saídas precárias, como a expulsão é executada de imediato e sem dar sequer a possibilidade de um contacto directo com a família.

O que verdadeiramente falta em Portugal são sistemas credíveis de medidas alternativas à prisão. A utilização das medidas de trabalho a favor da comunidade não têm expressão. Em 1997 houve apenas 14 casos de aplicação destas medidas. Escasseia a utilização do regime aberto. Tardam as medidas de controlo que permitam substituir com vantagem o recurso à prisão preventiva. Não se verificam, na prática, casos de suspensão provisória de processos relativos a toxicodependentes para tratamento, não obstante o enorme efeito prático que esta medida poderia ter, pelo facto de não haver qualquer comunicação digna desse nome entre os tribunais e o sistema de saúde.

Isto para já não falar dos estrangeiros indocumentados que, na falta dos famosos centros de instalação temporária, aguardam a sua expulsão nas prisões como se todos eles tivessem cometido crimes que o justificassem.

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

Quando em 1996, o Senhor Provedor de Justiça elaborou um excelente estudo sobre as condições prisionais, concluiu:

Há pouco mais de um mês, foram divulgadas as conclusões de um novo levantamento da situação nas prisões recentemente efectuado pela Provedoria de Justiça, destinado a avaliar a evolução verificada desde o Relatório de 1996. Nas conclusões que extrai, o senhor Provedor de Justiça regista evoluções positivas, mas não deixa de exprimir preocupações quanto a graves deficiências que se mantém, quer no plano do alojamento, quer da ocupação, quer do enquadramento legislativo do regime penitenciário, do sistema de execução de penas ou do Instituto de Reinserção Social, quer – e saliento este ponto pela sua gravidade – ao nível da saúde.

Diz o Provedor de Justiça que, no que à saúde diz respeito, "persiste alguma indefinição sistémica que se reflecte nalguma desarticulação que se sentiu no terreno entre os vários níveis existentes, com eventual sobrecarga nuns casos e défice de aproveitamento noutros, bem como na precariedade da situação jurídico-laboral de boa parte dos quadros médicos e paramédicos. A grande pressão exercida pela toxicodependência e pelas doenças infecciosas, conduzindo, ademais, a um esforço financeiro brutalmente acrescido cada ano que passa, exige um empenhamento mais esforçado, não só do Ministério da Justiça, mas de todo o Estado, essencialmente do Ministério da Saúde, enquanto serviço governativo com a atribuição de velar pela saúde pública."

De facto, a saúde constitúi, também do nosso ponto de vista, um dos mais graves problemas com que se confronta o sistema prisional e para o qual só têm sido encontradas respostas precárias, pontuais e assentes em boas vontades.

A população prisional é, como se sabe, extremamente carenciada. Muitos reclusos entram na cadeia já com graves problemas de saúde ou pelo menos com grandes carências de assistência médica. É uma situação para a qual a prisão evidentemente não concorre, mas que não pode deixar de tentar resolver, tanto mais que esta situação se agrava e potência no ambiente prisional.

Com uma população prisional em que avulta a presença de inúmeros toxicodependentes, onde há uma enorme taxa de seropositividade, onde alastram doenças infecto-contagiosas, é urgente encontrar respostas para as gritantes insuficiências que os serviços prisionais revelam e reconhecem a este nível.

Dispondo apenas de um hospital prisional central (em Caxias), de algumas enfermarias criadas em estabelecimentos prisionais, de uma comunidade terapêutica em meio prisional (no EPL) e de algumas alas livres de drogas, e a braços com uma impressionante falta de meios humanos quanto a médicos e enfermeiros, os serviços prisionais têm procurado responder a este gravíssimo problema através de protocolos com o SPTT e com serviços regionais do Ministério da Saúde. Não pode ser. Uma questão tão grave como é a da saúde nas prisões não pode ser resolvida apenas com base na boa vontade, embora ela seja, como em tudo na vida, indispensável.

É preciso que, para além do protocolo com o SPTT que permitiu iniciar a introdução de programas de redução de riscos em meio prisional e que importa intensificar, se desenvolva uma mais ampla cooperação entre os Ministérios da Saúde e da Justiça que permita dotar as prisões com os recursos técnicos e humanos indispensáveis para assegurar condições aceitáveis de assistência médica nas prisões.

Em resumo, senhores deputados, os graves problemas do sistema prisional, estão muito longe da resolução. Dirá o Governo que investiu muito mais no sistema prisional do que os Governos anteriores e que em comparação com a situação existente há uns anos atrás, as coisas melhoraram. Simplesmente, a comparação que tem de ser feita não é com as condições deploráveis que existiram no passado, mas sim com o mínimo que se exige para que sejam hoje respeitados direitos elementares dos cidadãos.

É óbvio que as condições prisionais são hoje muito melhores do que as que existiam no tempo do fascismo e são melhores do que as que existiam há uns anos atrás. Mas não são ainda, nem as desejáveis, nem sequer as exigíveis.

Como muito bem refere o Provedor de Justiça na introdução ao seu excelente relatório, "resulta do nosso ordenamento jurídico que a privação da liberdade não deve consistir no simples pagamento de uma dívida do delinquente para com a sociedade. Antes, a prisão deve procurar alcançar os objectivos de uma assistência prisional e pós-prisional com vista a auxiliar os presos a prosseguir, uma vez recuperada a liberdade, uma vida de acordo com os princípios de uma sã convivência social dentro dos parâmetros da Constituição".

Falta ainda muito para que esse objectivo possa ser atingido.

Disse.