Intervenção do
deputado António Filipe

Protecção de testemunhas e combate à corrupção

17 de Fevereiro de 1999



Senhor Presidente,
Senhores membros do Governo,
Senhores Deputados,

O aperfeiçoamento da legislação de combate à corrupção e a adopção de medidas legislativas de protecção de testemunhas em processo penal, são matérias que assumem uma importância e uma delicadeza indiscutíveis.

As duas iniciativas legislativas de que hoje nos ocupamos, tendo um fundo comum, que é o reforço dos mecanismos de combate à criminalidade organizada no domínio económico e financeiro, revestem âmbito e natureza muito distinta, e suscitam problemas muito diferentes, pelo que se exige uma abordagem distinta de cada uma delas.

A Proposta de Lei n.º 232/VII, relativa à alteração da legislação de combate à corrupção e à criminalidade económica e financeira, surgiu, como ninguém ignora, na sequência da revelação de factos relacionados com a Junta Autónoma das Estradas, susceptíveis de indiciar a prática de irregularidades e de actos de corrupção na gestão desse organismo público.

Esta revelação já teve pelo menos dois méritos: Motivou a apresentação de iniciativas legislativas e conduziu à abertura de processos investigatórios de natureza diversa acerca da gestão da JAE que, é legitimo supor, não teriam sido iniciados se o general Garcia dos Santos não tivesse tomado a atitude que tomou. Porém, o desencadear de medidas a reboque, ou pelo menos a propósito, de acontecimentos com impacto mediático, implicando esta ou aquela entidade, pode trazer consigo o risco de tentar responder com medidas pontuais a situações que o não são.

Não são as medidas adoptadas que estão mal. O que estaria mal, seria considerar que, descobertos eventualmente alguns casos de corrupção na instituição A ou B, ou feitas algumas sindicâncias ao funcionamento de um ou outro serviço, estariam apaziguadas as consciências, estaria erradicado o fenómeno da corrupção no aparelho de Estado e tornar-se-ía desnecessário encarar medidas sérias destinadas o preveni-lo.

O preâmbulo da proposta de lei em discussão, começa logo por afirmar, e bem, que "a luta contra a corrupção constitui um objectivo central da política criminal num Estado de Direito. Isoladamente ou ligada à criminalidade organizada de natureza económica e financeira, a corrupção subverte o funcionamento das instituições e corrói os fundamentos do Estado Democrático."

Se é certo que não vivemos num país de corruptos e que não é justo fazer recair sobre qualquer cidadão, ou sobre qualquer cidadão que exerça funções públicas, a suspeita de que se trata de um corrupto até prova em contrário, a verdade é que ninguém conhece a extensão exacta deste fenómeno.

Esta é uma criminalidade a que é muito difícil descobrir o rosto e em que a vítima - que é um povo inteiro - não está em condições de apresentar queixa. Em verdade, ninguém conhece a extensão deste fenómeno. Aparecem suspeitas de situações menos claras, aqui ou ali, mas é inútil tentar fazer um inventário que correria sempre o risco de deixar de fora o mais importante, que não se conhece.

A multiplicação de referências a situações de corrupção, designadamente através da comunicação social, sem que se saiba qual o seguimento das questões levantadas ao nível do apuramento dos factos e da responsabilização dos eventuais infractores, cria na opinião pública um clima de desconfiança e de afirmação de que é generalizado o compadrio, o nepotismo, o clientelismo e o aproveitamento pessoal de cargos públicos.

Os fracos resultados obtidos até à data no combate à criminalidade económica e financeira, seja no domínio da corrupção, seja do desvio de fundos, seja das facturas falsas, seja do branqueamento de capitais obtidos em diversas actividades ilícitas, criam na opinião pública a convicção, que os factos não desmentem, da larga margem de impunidade com que actuam os chamados criminosos de colarinho branco.

Não podemos perder de vista que, no que se refere particularmente ao crime de corrupção, existem a montante da intervenção penal mecanismos de prevenção cuja importância não pode em caso algum ser subestimada. A desburocratizarão, a transparência e a participação dos cidadãos no funcionamento da Administração Pública, a transparência no exercício de cargos públicos, designadamente ao nível das incompatibilidades e impedimentos com a acumulação de cargos e interesses privados, são elementos fundamentais de uma política séria de prevenção da corrupção aos diversos níveis do aparelho de Estado.

A proposta de lei do Governo que se refere à alteração da chamada "lei da corrupção", contém dois aspectos distintos: O primeiro, diz respeito ao levantamento do segredo fiscal nos processos por crimes de corrupção, fraudes e infracções económico-financeiras, e à criação de condições para uma maior operacionalidade no acesso ao segredo bancário por parte das autoridades judiciárias na investigação de crimes dessa natureza, prevendo designadamente uma maior responsabilização das instituições financeiras no fornecimento das informações e documentos a que sejam legalmente obrigadas.

Um segundo aspecto, diz respeito à possibilidade de dispensa de pena para os corruptores activos que tenham praticado o acto a solicitação do funcionário, que tenham denunciado o crime no prazo de 30 dias e que tenham contribuído decisivamente para a descoberta da verdade.

Quanto ao primeiro aspecto, independentemente da correcção da qualificação que é feita na legislação portuguesa do segredo bancário como segredo profissional, questão que é pertinentemente abordada no relatório da 1ª Comissão hoje mesmo aprovado, importa assinalar que a evolução legislativa recente tem sido no sentido de mitigar a intangibilidade do segredo bancário, impedindo a sua prevalência nos casos em que esteja em causa a realização da Justiça.

É reconhecido porém que os mecanismos de colaboração das instituições financeiras com as autoridades judiciárias estão ainda muito longe da perfeição, o que tem causado por vezes sérios prejuízos à investigação criminal.

Os mecanismos legais desta cooperação podem ser aperfeiçoados e esta Proposta de Lei pode contribuir para este objectivo. Mas a operacionalidade da investigação da criminalidade com forte componente económica e financeira pressupõe uma colaboração entre as entidades do sistema financeiro a as autoridades judiciárias que, dentro dos estritos limites legais, se revele mais pronta e eficiente.

A segunda ordem de questões, relativa à dispensa de pena aos corruptores activos, em certas condições, carece de uma atenta ponderação na especialidade. É certo que a colaboração dos corruptores activos com a Justiça será uma das formas possíveis de chegar ao conhecimento da prática de actos de corrupção e nesse sentido, não é uma possibilidade que deva ser, à partida, excluída. Carece, porém de cuidada ponderação, designadamente para evitar que, com recurso a esta possibilidade legal, se abra caminho para o aparecimento impune de denúncias infundadas.

A outra iniciativa legislativa hoje em debate diz respeito a uma questão, sem dúvida importante, mas não menos melindrosa, que é a protecção de testemunhas em processo penal.

A adopção de mecanismos legais para a protecção de testemunhas tem suscitado grande debate e reflexão em numerosos países e instâncias internacionais e tem já consagração em diversos ordenamentos jurídicos, tendo em consideração dois tipos distintos de situações:

Por um lado, a necessidade de proteger as testemunhas intervenientes em processos que envolvam criminalidade violenta e altamente organizada, nomeadamente no âmbito do terrorismo, do tráfico de droga, da corrupção ou de outras formas de criminalidade económica e financeira.

E por outro lado, a necessidade de proteger as testemunhas que se encontrem em situação de particular vulnerabilidade em processos que envolvam familiares próximos ou pessoas em relação às quais se encontrem em situação de dependência ou subordinação.

Quando ao primeiro caso, que é o que suscita maiores problemas, é conhecida a dificuldade em encontrar quem se disponha a testemunhar contra associações criminosas, violentes e organizadas. Por razões mais que óbvias.

Em inúmeros estudos e relatos relativos ao combate à criminalidade organizada não faltam exemplos de casos em que houve testemunhas assassinadas ou vítimas de processos implacáveis de chantagem, envolvendo muitas vezes os seus familiares próximos, ou ainda de organizações criminosas que ficaram ou permanecem impunes por força do círculo de intimidação e repressão que conseguem criar à sua volta.

São conhecidos também os problemas de segurança de todos os que, tendo pertencido a uma associação criminosa, se disponham a colaborar com a Justiça no sentido do seu desmantelamento. É o caso dos chamados "arrependidos".

É conhecida ainda a necessidade de ocultação da identidade dos chamados "agentes infiltrados" em associações criminosas, sob pena de frustrar a sua acção futura e pôr em causa, obviamente, a sua própria segurança.

A protecção das testemunhas e dos seus familiares, se fôr caso disso, é hoje em dia um imperativo do combate à criminalidade organizada que se pretenda minimamente eficaz. Não há dúvidas sobre isso.

Determinadas formas de protecção previstas na proposta de lei do Governo não suscitam problemas de maior do ponto de vista constitucional. Estão neste caso os programas especiais de segurança das testemunhas e seus familiares durante a após os processos.

Também a audição através de teleconferência, por forma a evitar a presença física da testemunha na sala de audiências, não suscita problemas difíceis de ultrapassar do ponto de vista dos direitos da defesa.

Os problemas mais melindrosos e complexos dizem respeito à conciliação entre o anonimato das testemunhas e a salvaguarda dos direitos da defesa, e designadamente com o respeito pelo princípio do contraditório.

O Governo afirma no preâmbulo da sua proposta de lei, que "tem que se reconhecer que a emergência de novas formas de delinquência, que se socorrem de meios de actuação cada vez mais difíceis de detectar, exige respostas eficazes, quer de âmbito preventivo quer repressivo, que, respeitando os princípios que estruturam o processo penal democrático, permitam assegurar, com realismo, a liberdade e a segurança".

E mais adiante, que "a repressão da criminalidade, em nome da segurança, haverá sempre que compatibilizar-se com a salvaguarda das garantias de defesa. O ponto de encontro entre estas duas tarefas, ambas igualmente a cargo do Estado, poderá sofrer deslocações por força de uma realidade que mudou, mas situar-se-á sempre, num Estado de Direito Democrático, dentro dos limites impostos pelo sistema legitimador fundamental".

Há que reconhecer porém, que a salvaguarda dos direitos da defesa e o respeito pelo princípio do contraditório, num processo em que intervenham testemunhas cuja identidade, imagem e voz sejam absolutamente desconhecidas do arguido e do seu defensor - que não podem assim demonstrar a sua eventual falta de credibilidade - é quase como conseguir a quadratura do círculo.

O processo complementar que é proposto para apreciação do pedido de não revelação da identidade da testemunha, com intervenção de um advogado nomeado para representar os interesses da defesa, que não se confunde com o defensor, é uma tentativa de salvar alguns direitos da defesa. Mas não consegue contornar o incontornável.

A ocultação da identidade da testemunha em casos absolutamente excepcionais e rigorosamente justificados é uma proposta compreensível pelas razões a que há pouco aludi. Não pomos em causa a estimabilidade dos propósitos com que esta medida é proposta. Mas importa avaliar com todo o rigor até onde é possivel chegar sem lesar de forma insuportável o nosso ordenamento constitucional. A ocultação da identidade das testemunhas pode ter-se como justificada em algumas situações limite, mas não deixa de se traduzir num grave prejuízo para os direitos da defesa.

O processo de audições que a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias decidiu já efectuar sobre esta matéria, poderá contribuir para encontrar uma solução aceitável no nosso quadro constitucional, para a qual, seguramente, contribuiremos.

Disse.