Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais
Intervenção da deputada Odete Santos
17 de Setembro de 1998

 

Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados

Iniciamos um processo legislativo de extraordinária importância para a Justiça, logo para os cidadãos, sem que a Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias tivesse oportunidade de ouvir todas as entidades que da crise da Justiça têm especialmente conhecimento. E que é necessário ouvir para que as soluções encontradas num diploma instrumental das restantes reformas sirvam os cidadãos.

Não foi ouvida no processo preparatório do presente debate a Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Não foi ouvido o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Não foi ouvida a Ordem dos Advogados. Não foi ouvido o Sindicato dos Funcionários Judiciais. A sua audição reveste-se de uma necessidade tanto maior quanto é certo que a versão da Proposta de Lei Orgânica que a Assembleia hoje debate difere, em questões que não de pormenor, daquela que àquelas entidades foi submetida pelo Governo para emissão de Parecer.

Algumas das divergências entre as duas versões são polémicas e importaria um aprofundamento maior das soluções por forma a que um instrumento de tanta importância para o comum dos cidadãos não continuasse a sua gestação num ambiente já caracterizado por alguma conflitualidade.

A proposta de Lei tem algumas soluções já esperadas e inevitáveis.

Em 1987 quando esta Assembleia travou um aceso debate sobre a Lei Orgânica que está em vigor, dissemos a propósito da polémica introdução dos Tribunais de Círculo, dissemos: Cá estaremos no futuro para discutir as consequências da criação desses Tribunais. E tivemos oportunidade, de facto, de constatar nas sucessivas alterações à Lei Orgânica, a propósito desses Tribunais, que as críticas tinham sido certeiras.

A máquina judiciária não resistiu ao aprendiz de feiticeiro, e assistimos com algum desespero ao agravamento da crise causada por uma reforma autista que ignorava o país que temos.

Pese embora o facto de alguns Tribunais de Círculo- aqueles a quem foram dados os meios necessários para um regular funcionamento - funcionarem hoje sem sobressaltos - a verdade é que os efeitos daquela reforma se reflectiram e reflectem ainda de uma forma negativa sobre os cidadãos que sofreram e sofrem a morosidade da Justiça levada ao extremo ( julgamentos houve marcados, e já há uns anos, para o ano 2.001, pasme-se).

Mas funcionem bem ou mal, a verdade é que os Tribunais de Círculo têm sempre alguns efeitos nocivos aos concelhos onde se encontram sediados os Tribunais de Comarca, longe do Círculo, contribuindo para a sua desertificação. Ressente-se também a formação contínua dos magistrados, afastados pela estrutura do Tribunal de Círculo da aprendizagem resultante do estudo dos processos mais complexos. E os cidadãos, afastados do Círculo, muito embora possam ter optado por mandatário domiciliado no Círculo, sentem a justiça longe, gorando-se o objectivo de aproximar a Justiça dos cidadãos. Factor importante da sua confiança na mesma.

Assim, a reversão a um sistema de corregedoria, parece-nos imprescindível.

Poderá ser discutível se a opção certa é a dupla corregedoria, ou a corregedoria outrora existente.

Sabemos que a dupla corregedoria, apondo a experiência de dois Juízes de Círculo ao Juiz da Comarca, poderá trazer uma uniformização da Jurisprudência a nível do Círculo. Mas a questão é saber se não se cairá num excesso de uniformização, e se não seria preferível que uma maior diversidade de soluções jurídicas tivesse os meios necessários para a sua manifestação. A questão afinal, está em saber se não se corre o risco de cristalização da Jurisprudência a nível do Círculo, inimiga da modernidade. Seja como for, estamos de acordo com a extinção dos tribunais de Círculo.

Importa, no entanto, saber de que forma se processará essa extinção. Por forma a que a máquina judiciária não conheça novos colapsos com a passagem milhares de processos para os Tribunais de Comarca sem meios para acorrer a tal volume.

Esperamos do Ministério da Justiça a Regulamentação da Lei para nos pronunciarmos definitivamente sobre esta reforma.

Mas se esperávamos a extinção dos Tribunais de Círculo - aliás já há muito anunciada - não compreendemos que na Proposta de Lei não surja o Círculo como estrutura que concentre determinados serviços necessários aos Tribunais de Comarca. O Círculo com perícias médico - legais, com técnicos habilitados a produzir pareceres nos processos de menores, com a concentração de uma Biblioteca Jurídica ao dispor dos operadores forenses, com serviços de apoio às vítimas de crimes violentos, nomeadamente mulheres e crianças.

E muito menos compreendemos que ao mesmo tempo que se extinguem os Tribunais de Círculo se queiram ressuscitar estruturas correspondentes - as Varas Cíveis.

Aliás, esta é uma das propostas que não constava da versão original posta em debate público pelo Ministério da Justiça.

Temos uma péssima experiência e ainda bem recente do funcionamento das Varas. Pergunta-se: por que motivo se quer insistir num sistema que não provou, quando se extinguem os Tribunais de Círculo?

A esta solução não damos o nosso acordo.

Como não damos a outras soluções que pesem embora aspectos positivos da Proposta de Lei, não podem deixar de pesar na avaliação da mesma na sua globalidade.

Regista-se como negativo que não se aproveite para fixar desde já a competência dos Julgados de Paz. Com o que se aceleraria a sua regulamentação em diploma própria. Remeter tudo para diploma especial faz-nos recear numa dilação da entrada em funcionamento de uma estrutura que muito contribuiria para combater a morosidade judicial, com a solução de alguma pequena conflitualidade fora do formalismo da orgânica judiciária.

Negativo é também a despromoção dos Juízes dos Tribunais do Trabalho.

Com efeito, acabando-se com a equiparação dos Juízes dos Tribunais do Trabalho a Juízes de Círculo, sendo certo que presidem a Tribunais Colectivos, pergunta-se se isto ajudará à formação de magistrados com especiais conhecimentos na área do Direito de Trabalho, com especialidades próprias, que não admitem a solução dos conflitos pelas regras puras do direito civil, sob pena de às injustiças sociais somarmos a injustiça na aplicação da Lei.

Os Juízes dos Tribunais do Trabalho, num país em que se agudizam os conflitos laborais, e que maior agudização conhecerá se o Governo levar por diante o pacote anti-laboral, assumem, para os Trabalhadores uma importância fundamental que a presente Proposta de lei não lhes reconhece. Numa manifesta insensibilidade perante a jurisdição laboral.

Mas se aqui aparece clara a intenção do Governo, há outras disposições na Proposta de Lei cujo objectivo se apresenta confuso.

Porque motivo se transpuseram para a Lei Orgânica matérias que são claramente do Estatuto dos Magistrados Judiciais?

Porque motivo o concurso, a graduação e o provimento das vagas no Supremo Tribunal de Justiça, matéria daquele Estatuto, nos aparece agora nesta proposta de lei?

Que significado tem isto?

Não será lícito duvidar sobre se será esta uma forma encapotada de se dizer que a carreira dos Juízes termina na Relação?

Será esta uma forma encapotada de defender um outro modelo do Supremo que não está na nossa tradição e de abrir caminho para reformas, neste aspecto, que alguns desejariam?

Quanto a nós entendemos que os juízes de carreira na quota já prevista no Estatuto dos Magistrados Judiciais, são imprescindíveis no Supremo Tribunal de Justiça.

A carreira dos Juízes não termina na Relação mas no Supremo Tribunal de Justiça.

Os artigos da Proposta de lei relativos ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça têm de ser eliminadas da mesma, para permanecerem, como estão no Estatuto dos Magistrados Judiciais, de acordo, aliás, com a Constituição da República.

A versão final da Proposta de Lei acabou, por trazer ainda outro motivo de conflitualidade. Sem razão de ser. E que bem se pode contornar.

De facto, alterar o que hoje consta da lei orgânica quanto à independência dos Tribunais, que assenta nas garantias dos Juízes constantes da Constituição - inamovibilidade, existência de um órgão privativo de gestão e disciplina da magistratura judicial, não sujeição a quaisquer ordens e instruções, não responsabilização pelas suas decisões salvas as excepções consignadas na lei- fazendo depender essa independência da autonomia do Ministério Público, representará uma capitis deminutio dos magistrados Judiciais. A autonomia do Ministério Público que alguns entendem não ser independência dado que se trata de uma carreira hierarquizada, recebendo ordens e instruções, será mesmo garantia da independência dos Tribunais ?

Se o é, então por que não se consagra também a norma do Estatuto dos Advogados que cooperando na administração da Justiça, também estarão então a garantir a independência dos Tribunais?

Senhor Presidente
Senhores Deputados
Senhor Ministro da Justiça:

A avaliação do impacto das alterações resultantes desta Proposta de Lei depende muito da sua regulamentação.

Trata-se de uma proposta que revela algum desiquilíbrio. Tímida nalgumas soluções. Como em relação à reincidência em limpar de processos os Tribunais de recursos através da subida das alçadas. Solução que breve se encontrará ultrapassada, mas que entretanto inviabilizará recursos em processos que podem revelar um interesse vital para os cidadãos. Entendemos que seria importante, e o Ministério tem os meios adequados para produzir tal trabalho, encontrar a forma de garantir os recursos, independentemente da alçada, em acções em que as matérias em discussão se revestissem de importância determinante do direito a recorrer. Como acontece nas acções de despejo. Fazendo depender o direito de recurso, residualmente, do valor das alçadas.

Vamos esperar que o debate na especialidade traga as correcções que visivelmente são necessárias. E esperamos que as audições que não foram feitas, possam contribuir para uma Lei Orgânica onde se reconheça o equilíbrio da reforma.

De que, de alguma maneira, padece esta Proposta de Lei.

Disse.