Lei-Quadro da Política Criminal
Intervenção de Odete Santos
25 de Janeiro de 2006

Sr. Presidente,

Vou esbanjar um bocadinho do «imenso» tempo de que disponho, que são 9 minutos, para colocar algumas questões.

A primeira surgiu-me quando V. Ex.ª, Sr. Ministro, disse, na sua intervenção, que o Ministério Público tem de prestar contas pelas acções passadas e presentes. Isto soa a ajuste de contas, pelo que penso que V. Ex.ª deve desfazer esta impressão que pode ficar no ar. Aliás, corresponde a uma expressão que também ouvi ao Partido Socialista na comissão parlamentar, que foi: «agora é que isto vai começar a doer».

Creio, pois, que V. Ex.ª terá todo o interesse em explicar esta matéria. A segunda questão que gostaria de colocar tem a ver com o seguinte: é que não basta uma lei referir que continua a vigorar o princípio da legalidade. Isto faz-me lembrar aquela anedota do juiz que dizia para o advogado do então réu: «Ó Sr. Dr., diga lá ao seu cliente que confesse». E o advogado dizia para o cliente: «Confessa Zé Nega».

De facto, dizer que não viola o princípio da legalidade não quer dizer nada.

Pergunto a V. Ex.ª se é ou não verdade que esta lei confessa a infradotação do Ministério Público e dos órgãos de polícia criminal de meios humanos e técnicos necessários à investigação criminal.

É ou não verdade que, com esta falta imensa de dotação dos meios necessários, na ausência de verdadeiras medidas de política criminal, como descriminalizações, como consensualizações relativamente à conflitualidade social, o princípio da oportunidade entra agora, de uma forma muito mais alargada, através desta proposta de lei?

É ou não verdade que estamos a assistir a uma derrapagem do princípio da legalidade, aliás introduzido também na revisão constitucional de 1997? Pergunto: quando é que V. Ex.ª pensa que essa derrapagem vai terminar?

(…)

 

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr. as e Srs. Deputados:

Penso que depois de tudo o que já foi dito, inclusivamente por teóricos destas matérias — eu citaria, entre todos, o Prof. Costa Andrade, num recente seminário, em Coimbra, sobre o que é a política criminal —, depois de tudo isto, é de pasmar que se continue a insistir em que isto é uma lei-quadro da política criminal.

É evidente que não é! Isto é uma lei com muito pouco de inovação, apenas em relação à questão das prioridades, e é uma lei que visa, sobretudo, a acção penal pública.

Não tenho, efectivamente, muito tempo para falar aqui do que é a política criminal, mas queria recordar ao Sr. Ministro que aquilo que referiu que, em matéria de prevenção da pequena criminalidade, poderia ser feito através de uma resolução me parece que é inconstitucional, porque aquilo que podem fazer é o que está no Código do Processo Penal e que aqui, nesta proposta de lei, não alteram.

De facto, a resolução tem de ser um acto político, para ser constitucional, e não tem eficácia externa. Mas, não podendo, assim, sequer, vincular o Ministério Público, acabará por sobre ele, o Ministério Público, recair o odioso de não ter cumprido prioridades. Aliás, a intervenção do Sr. Ministro, retirando do contexto uma afirmação numa obra teórica de um professor de Direito e situando essa frase neste momento, em que houve acontecimentos muito recentes em matéria de investigação criminal, acabou por confirmar que esta é uma proposta de lei contra o Ministério Público.

O Ministério Público acabará por ser responsável por não ter seguido as orientações quanto à pequena criminalidade, ou não ter exercido a acção penal em processos não prioritários, mesmo que a tal se veja obrigado por manifesta falta de meios humanos e técnicos.

Através desta proposta também se condiciona e limita o Ministério Público, que, assim, vê o princípio da oportunidade invadir a sua acção. Aliás, o relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias reconhece isto porque, em vez de falar no princípio da legalidade mitigada ou legalidade aberta, fala em que a proposta de lei acolhe o princípio da oportunidade mitigada. E considero isto sintomático e muito interessante para o futuro…!

O Ministério Público é limitado e condicionado na sua acção e nem sequer poderá ter em conta a comunidade local em que intervém e adaptar as prioridades. Condiciona-se a própria magistratura judicial, que vai ser obrigada — embora sendo independente —, de facto, a respeitar as prioridades do poder político.

Cabe aqui recordar o que o representante da Ordem dos Advogados disse, na chamada Unidade de Missão, e aquilo que ditou para a acta — isto está no site da Ordem dos Advogados —, a saber: «a total discordância com a iniciativa legislativa, pois que, com os termos objectivos e orientações e suprimindo as prioridades, a lei ganharia um carácter mais genérico, que evitaria interpretações no sentido da intromissão do poder político na esfera do poder judicial» (acabei de citar).

A verdade é que bem se compreende esta preocupação.

O facto de a proposta dizer que «não fica prejudicado o princípio da legalidade» nada quer dizer! E isto coloca a questão da falta de meios para a investigação criminal. Falta de meios não só no que respeita ao Ministério Público como no que respeita aos órgãos de polícia criminal, nomeadamente no que toca à Polícia Judiciária, onde se verifica — e ontem ouvimos — que «só tem preenchidos cerca de metade dos seus cargos, com a sangria provocada pelo alargamento da idade da reforma; onde se verifica, ainda, que o orçamento para este ano é inferior a 50% do orçamentado para o ano passado, sendo certo que o orçamento para 2005 já era insuficiente» — estou a citar a informação que nos deram.

Relativamente ao Ministério Público, a verdade é que esta magistratura não tem o controlo sobre os recursos humanos — cujas especificidades do trabalho deveriam determinar uma formação adequada. O Ministério Público não tem o poder de assegurar os meios.

A verdade é que nem esta proposta nem qualquer outra procede à reestruturação do Ministério Público, desejável e foi o Ministério Público que chegou a proceder a uma reestruturação quando, ainda antes de a lei o consagrar, foi criado o DIAP para fazer face à criminalidade mais grave.

Não se encontra na proposta de lei uma única palavra quanto à especial obrigação que o Governo tem de assegurar os meios para que, de facto, este diploma não redunde na entrada, pela porta dos fundos, do princípio da oportunidade, impedido de entrar pela porta da frente. Porque o princípio de uma oportunidade mitigada está definido como não sendo possível no Código do Processo Penal, que admite a legalidade aberta com alguns instrumentos de oportunidade.

Em nome da constatação de que nem tudo pode ser julgado, não pode reservar-se a investigação criminal apenas aos crimes prioritários, colhendo os cidadãos incautos nas malhas da prescrição de processos, pondo-se em causa, nomeadamente a segurança dos cidadãos, quando, pela previsível falta de meios, a chamada pequena criminalidade se vir impune e sentir as rédeas largas para continuar a construir uma carreira delituosa.

Mas, porque tenho de terminar, vou abreviar dizendo que, ao fim e ao cabo, o percurso das leis orgânicas do Ministério Público apontam, de facto, posições muito curiosas por parte daqueles que, outrora, defenderam a autonomia do Ministério Público, mas que, num princípio de oportunidade — aqui, no sentido de oportunismo —, modificaram, depois, a sua posição.

Recordaria, de facto, porque isto é importante, a lei de organização da investigação criminal é bem o exemplo desse desvio e da vertigem pelo poder punitivo que assalta, normalmente, o poder executivo.

Nessa referida lei de investigação criminal, através da qual se amputou uma parte, e grande, da dependência funcional dos órgãos de política criminal em relação ao Ministério Público, perguntava, então o Ministro António Costa: «Quem é que guarda o guardião?» e referia-se ao Ministério Público. E, agora, encontramos a resposta: a maneira de guardar o guardião é, ao fim e ao cabo, também ter uma política contra os interesses dos cidadãos.

E o cidadão, aquele que estiver informado e que consiga entender o porquê da desigualdade de tratamento de que é vítima, perguntará: «e quem é que guarda o Governo desta maioria absoluta? »

Há-de ser guardado…! Cá estaremos!

Esta proposta de lei não inova, abrange pouco mais do que a acção penal pública, e foi para isso que foi

congeminada: para colocar na mira a autonomia do Ministério Público.