Disposições complementares do quadro jurídico-legal sobre asilo e refugiados, assegurando a plena transposição para a ordem jurídica interna da Directiva 2003/9/CE, do Conselho, de 27 de Janeiro de 2003, que estabelece as normas mínimas em matéria de acolhimento de requerentes de asilo nos Estados-membros
Intervenção de António Filipe
6 de Janeiro de 2006
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr. as e Srs. Deputados:
Esta matéria relativa ao direito de asilo é de importância transcendente, apesar, obviamente, do carácter relativamente limitado desta iniciativa a que o Sr. Secretário de Estado, aliás, aludiu, dado o seu carácter de certa forma regulamentar e complementar de disposições legais já existentes.
Mas esta é, de facto, uma matéria de grande importância do ponto de vista democrático e no da defesa dos direitos humanos. Importa, por isso, lembrar que a legislação portuguesa em matéria de direito de asilo conheceu, em 1993, um profundo retrocesso, de que, aliás, foi possível recuperar, em alguns aspectos, em 1998, aquando da legislação vigente; em todo o caso, tratou-se de uma recuperação que, do nosso ponto de vista não foi total, continuando a legislação portuguesa a padecer de graves deficiências no aspecto da defesa dos direitos dos requerentes de asilo, dado o carácter excessivamente expedido e administrativo de que se reveste a apreciação dos seus pedidos.
Em todo o caso, importa lembrar que, hoje, esta matéria está mais pacificada do ponto de vista do debate político do que esteve aquando do debate desse profundíssimo retrocesso que, em 1993, foi provocado pela legislação aprovada, nessa altura, pelo governo presidido pelo Prof. Cavaco Silva…!
De facto esse governo não só aprovou, mediante decreto-lei — portanto, completamente à revelia desta Assembleia — uma legislação de asilo profundamente restritiva e lesiva dos direitos dos requerentes, e muito pouco respeitadora dos direitos humanos; não apenas o fez como, perante o justificadíssimo exercício do direito de veto, por parte do Presidente da República de então, Dr. Mário Soares, que chamando vivamente a atenção para as responsabilidades que Portugal tinha nessa matéria, tendo em conta a experiência amarga de muitos portugueses que foram exilados políticos durante a ditadura, vetou esse diploma suscitando o respectivo debate parlamentar…
E é bom lembrar também que nessa altura esse veto foi pretexto para a abertura de um grave conflito institucional provocado pelo Primeiro-Ministro de então, Prof. Cavaco Silva, que fez convocar esta Assembleia de urgência, em pleno mês de Agosto de 1993, para afrontar o Presidente da República, que ele considerava uma «força de bloqueio», na medida em que, como bem nos lembramos — e lembra-se o Sr. Secretário de Estado, que era Deputado nessa altura e lembro-me eu, que também aqui estava —, para o Prof. Cavaco Silva qualquer entidade pública que ele não controlasse em absoluto era uma «força de bloqueio»!… E o Presidente da República era uma «força de bloqueio», por isso havia que afrontá-lo!
Lembramo-nos desse momento em que a Assembleia da República, através da maioria de que o PSD dispunha, foi utilizada precisamente para abrir um conflito institucional!
Bom, esses tempos estão ultrapassados e esperamos que não voltem, mas em todo o caso temos hoje um ambiente mais favorável para poder discutir esta matéria do direito de asilo.
Nós vemos este diploma, naquilo que ele vale, como a inserção de disposições complementares em matéria que tem que ver, sobretudo, com os direitos dos requerentes de asilo. E creio que importa averiguar, dado que estamos a discutir matéria regulamentar, como é que as coisas se passam efectivamente no terreno, porque aí temos algumas preocupações.
Obviamente, há aqui matérias que deverão ser vistas na especialidade, algumas disposições concretas que nos suscitam certas reservas de que no momento certo daremos conta.
Congratulamo-nos com o facto de esta transposição não seguir os critérios mais restritivos em voga na União Europeia. Sabemos que os tempos não são favoráveis, ao nível da União Europeia, para os requerentes de asilo, que há uma onda securitária que contamina de certa forma a matéria do direito de asilo e que continua a haver uma confusão, para cuja perversidade o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados chamou a atenção, entre imigração clandestina e direito de asilo, quando importa separar absolutamente essas duas matérias.
Aliás, essa confusão era uma das pedras de toque da legislação do Prof. Cavaco Silva, que confundia deliberadamente as duas questões de forma a justificar limitações injustificadíssimas relativamente aos direitos dos requerentes de asilo.
Portanto, é bom que isso fique claro, que Portugal mantenha uma posição firme e intransigente em defesa dos direitos humanos e de valores humanitários e que não embarque em ondas securitárias muito em voga na União Europeia.
Mas importa verificar, em concreto, como é que as coisas se passam. E digo isto com base num exemplo recente, que não terá que ver estritamente com a matéria de asilo mas, sim, com uma matéria conexa.
Todos tivemos conhecimento de que há muito pouco tempo atrás o Sr. Secretário de Estado Adjunto e da Administração Interna fez encerrar — e muito bem — um contentor, que existia no Aeroporto Francisco Sá Carneiro e que não respeitava padrões mínimos de dignidade humana, onde estava um conjunto de cidadãos, que, presumo, aguardava expulsão, porque se encontrava em Portugal ilegalmente.
A existência desse contentor e as suas condições foram alvo de notícia e de algum escândalo público justificado e o Sr. Secretário de Estado, tanto quanto soubemos pela comunicação social, deslocou-se ao local, considerou que aquelas instalações não eram dignas e fê-las encerrar colocando as pessoas em situações mais dignas — e fez muito bem!
Simplesmente, tivemos conhecimento de que um dos cidadãos que denunciou essa situação, dirigindo-se a vários ministérios, entre eles o das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, devido à sua tutela sobre a ANA, a empresa responsável pelas infra-estruturas aeroportuárias, recebeu uma resposta relativamente a esse mesmo assunto, que enviou aos grupos parlamentares, da Chefe de Gabinete do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, no sentido de que «as instalações existentes nos vários aeroportos têm condições mais do que apropriadas para acolher os passageiros conside rados inadmissíveis em território nacional». E mais, no caso do Aeroporto Francisco Sá Carneiro, foi-lhe dito que «apesar de se tratar de instalações provisórias, de pré-fabricados, as instalações colocadas à disposição para os fins em apreço eram condignas — com ar condicionado, camas e sanitários — pois apresentavam condições que estavam ao nível das existentes em qualquer aeroporto internacional europeu».
Portanto, ficamos sem saber quem tem razão, se o Sr. Secretário de Estado, que considerou que as instalações eram indignas e deveriam ser encerradas, ou se o Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, que considerou que as mesmas não só «eram condignas como ainda por cima tinham ar condicionado, camas e sanitários e estavam ao nível das existentes em qualquer aeroporto internacional europeu»…!
E digo isto para chamar a atenção para o facto de que não basta legislar generosamente sobre uma matéria, é preciso saber como é que essa legislação é aplicada na prática, para que não apareçam serviços ou departamentos ministeriais que considerem adequadíssimas formas de tratamento que qualquer pessoa bem formada considera indignas e inadequadas!
É importante que os requerentes de asilo, em Portugal — e não me refiro apenas às pessoas a quem seja deferido o processo de asilo —, sejam tratados de uma forma condigna e humanitária desde o momento em que pisam território nacional, para que situações como estas não possam vir a ocorrer.