Lei da Nacionalidade
Intervenção de António Filipe
13 de Outubro de 2005
Sr. Presidente, S
rs. Deputados,
Srs. Membros do Governo,
Sr. Ministro,
Começo por dar ao Governo as boas-vindas a esta alteração da Lei da Nacionalidade. Esta é uma matéria pela qual nos temos vindo a bater através de várias iniciativas apresentadas nesta Assembleia, tendo deparado sempre com a oposição do governo anterior. Como tal, embora tenhamos estado alguns meses à espera desta iniciativa e deste debate, saudamos o Governo pelo facto de agora ser possível iniciar um processo legislativo para alterar esta Lei.
Queria dizer que há alguns aspectos da proposta de lei que, para nós, representam um progresso. Refiro- me, por exemplo, à inversão do ónus da prova, regressando agora a uma situação que existiu até 1994 e que foi, então, mal alterada, tendo bloqueado a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização sem que o Estado português tivesse, sequer, de dar qualquer justificação.
Por outro lado, é também positivo que um requisito como o dos recursos económicos deixe de ser relevante para a atribuição de nacionalidade portuguesa por naturalização, como parece decorrer da proposta de lei aqui em discussão.
Finalmente, também nos parece que pode ser positivo passar para o Ministério da Justiça uma competência que cabe actualmente ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). De facto, este não é um processo policial e, portanto, não faz sentido ser uma polícia a tratar dele. Digo-o sem qualquer menosprezo pelo SEF, mas a verdade é que o conhecimento que todos temos do obstáculo objectivo que este serviço tem sido ao decurso dos processos aconselha a que esta matéria passe para o Ministério da Justiça, desde que este não passe a funcionar como o SEF…! É este o requisito fundamental para que as coisas passem a funcionar e gostaria que o Governo nos desse, hoje, garantias quanto a este aspecto.
Há, todavia e na nossa opinião, aspectos limitados na proposta de lei. Antes de mais, reconhecer a nacionalidade portuguesa originária apenas a crianças nascidas em Portugal cujos pais tenham residência legal há mais de seis anos parece-nos extremamente limitado e passível de criar situações de injustiça.
Para dar um exemplo, uma criança que nasça hoje em Portugal, filha de um casal de imigrantes que viva legalmente em Portugal há cinco anos, que tenha chegado a Portugal no ano 2000, não pode adquirir a nacionalidade portuguesa originária, ainda que viva cá toda a sua vida, que não vá ao país de onde os pais são originários e que não reconheça, ao longo da sua vida, outra pátria que não seja a portuguesa. Tal parece-nos extremamente redutor.
É certo que não estamos aqui a falar da legalização de imigrantes. Estamos a falar de uma coisa completamente diferente e não podemos utilizar este processo legislativo como uma forma de, enviesadamente, promover um processo de regularização extraordinária ou qualquer coisa parecida com isso. Na verdade, pensamos que há um passivo muito grande em matéria de regularização de imigrantes, mas essa é outra questão e nós separamo-la completamente. De todo o modo, pensamos que a proposta de lei vai deixar injustamente de fora muitos cidadãos em relação aos quais se justificava plenamente o reconhecimento da nacionalidade portuguesa. Esperamos, portanto, que o Governo, neste processo, ainda possa ponderar esta posição, para que se encontre uma solução mais justa e menos limitada do que aquela que presentemente propõe.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr. as e Srs. Deputados:
A apresentação da iniciativa legislativa do PCP resulta da evidência de que a Lei da Nacionalidade, a Lei n.º 37/81, alterada em 1994, precisa de ser modificada para corresponder a situações concretas de elementar justiça.
A Lei da Nacionalidade portuguesa adoptou o jus sanguinis como critério determinante para a atribuição da nacionalidade portuguesa originária, em detrimento do critério do jus soli. Significa isto que a lei portuguesa considera portugueses de origem os cidadãos filhos de portugueses nascidos em qualquer parte do mundo, desde que declarem que querem ser portugueses. E, ao invés, não considera portugueses de origem cidadãos filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, ainda que tenham vivido em Portugal toda a sua vida e não tenham conhecido, sequer, qualquer outro país.
Nós compreendemos a primeira situação, isto é, compreendemos que seja importante manter uma ligação à comunidade nacional, por parte dos descendentes de emigrantes portugueses a residir no estrangeiro, e, nessa medida, aceitamos como compreensível o critério do jus sanguinis para atribuição da nacionalidade originária. Quanto à segunda realidade, a da imigração em Portugal, já se nos afigura injusta e inadequada a solução da lei vigente, porque ignora a realidade da imigração actualmente residente em Portugal e não contribui, em nada, para criar laços de pertença e de inserção na comunidade portuguesa de cidadãos que sempre viveram em Portugal, que não conhecem outra pátria, que têm a nossa língua como língua materna e que, para além disso, querem, efectivamente, ser portugueses.
A realidade da imigração em Portugal alterou-se profundamente nos últimos anos. Portugal deixou de ser apenas um país de emigração e passou também a ser um país de acolhimento. Consequentemente, a Lei da Nacionalidade portuguesa deve ser alterada em conformidade com essa nova realidade.
Acresce que a aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização tem vindo a revelar-se, na prática, extraordinariamente difícil. E é difícil devido, sobretudo, a uma prática administrativa fortemente restritiva, particularmente a partir das alterações legislativas que se verificaram em 1994.
De facto, a lei portuguesa permite apenas a aquisição da nacionalidade por naturalização aos cidadãos que sejam maiores de idade, que residam em Portugal há mais de seis anos, que conheçam a língua portuguesa e que tenham idoneidade cívica — o que é, obviamente, justificado —, mas que, para além disso, demonstrem possuir meios de subsistência suficientes e comprovem uma ligação efectiva à comunidade nacional.
Desde logo, o critério dos meios de subsistência é, em si mesmo, inaceitável. Não se compreende que um cidadão que tenha passado toda a sua vida em Portugal, que viva em Portugal há mais de uma década, que reúna todos os demais requisitos para ter nacionalidade portuguesa veja negada a atribuição dessa nacionalidade só porque é pobre, só porque não tem os rendimentos que a lei portuguesa exige para que a nacionalidade portuguesa lhe seja concedida.
Ser ou não ser português não pode depender de ter mais ou menos dinheiro. À face da lei, os portugueses pobres não podem ser menos portugueses do que os portugueses ricos. Se não se pode perder a nacionalidade por não ter dinheiro, também não deve ser negada a nacionalidade com fundamento na insuficiência de meios económicos.
Relativamente à demonstração da ligação efectiva à comunidade nacional, tem-se verificado um critério restritivo, quase absurdo, em relação à generalidade dos cidadãos que requerem a concessão da nacionalidade portuguesa, contrastando com situações em que a nacionalidade portuguesa é atribuída por razões de conveniência. Há muitos cidadãos, designadamente originários de países de língua oficial portuguesa ou seus descendentes, que residem em Portugal há muitos anos e que tentam, também desde há muitos anos, sem sucesso, adquirir a nacionalidade portuguesa. Por uma ou outra razão, usando da discricionariedade que a lei lhe permite, as autoridades portuguesas não consideram suficientemente provada a ligação efectiva à comunidade nacional.
Verifica-se, portanto, hoje uma situação de dois pesos e duas medidas, que tem vindo a motivar um justificado protesto junto das comunidades imigrantes. E é preciso, do nosso ponto de vista, que esta situação seja alterada.
Por outro lado, importa introduzir alterações no regime de aquisição da nacionalidade por efeito do casamento com cidadão português. Não faz sentido que alguém casado com um cidadão português ou com uma cidadã portuguesa tenha de esperar três anos para poder adquirir a nacionalidade do seu cônjuge.
Trata-se de um diferimento dos efeitos do casamento sobre o estado civil que não tem qualquer base razoável. Não se compreende que um dos cônjuges tenha passaporte português e se desloque ao estrangeiro nessa qualidade e que o outro cônjuge se veja impedido de o fazer apenas porque não estão casados há três anos e, portanto, não pôde ainda adquirir a nacionalidade portuguesa.
Por outro lado ainda, importa equiparar as situações de união de facto ao casamento para efeitos de aquisição da nacionalidade, embora com um particular cuidado, para evitar situações de fraude. Não basta alguém dizer que vive em união de facto com um cidadão português ou com uma cidadã portuguesa. Do nosso ponto de vista, esta situação, para ter efeitos sobre a aquisição da nacionalidade, deve ser reconhecida or um tribunal cível. E, aqui, sim, deve fazer-se depender de um prazo razoável a existência da união de facto, prazo esse que propomos que seja de dois anos.
Sintetizando, o PCP propõe, em primeiro lugar, que seja reconhecida a nacionalidade portuguesa originária aos cidadãos nascidos em território português, filhos de estrangeiros que aqui residam habitualmente a qualquer título, desde que não se encontrem ao serviço do respectivo Estado e que declarem que querem ser portugueses.
Em segundo lugar, pretendemos fazer regressar o ónus da prova da ligação efectiva ao território nacional à situação que existia até à lei de 1994, isto é, o requerente tem de demonstrar que vive em Portugal há mais de seis anos, que conhece bem a língua portuguesa, que é maior, que não foi condenado pela prática de qualquer crime punível com pena de prisão de máximo superior a três anos e que possui uma ligação efectiva à comunidade nacional. E, quanto a este último aspecto, se as autoridades portuguesas tiverem razões para supor que, apesar de tudo, essa ligação efectiva não existe, devem fundamentar a sua recusa e não fazer recair esse ónus sobre o próprio requerente.
Em terceiro lugar, propomos que seja eliminado o critério dos recursos económicos do requerente como critério para a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização.
Propomos também que seja eliminado o decurso obrigatório de três anos para a aquisição da nacionalidade portuguesa pelo casamento, podendo essa aquisição dar-se a todo o tempo na constância do casamento, e que a união de facto há mais de dois anos seja equiparada ao casamento para efeitos de concessão da nacionalidade, desde que tal situação seja reconhecida por um tribunal cível.
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:
Como referi há pouco, consideramos que a proposta de lei do Governo contém aspectos inegavelmente positivos, embora seja limitada quanto a uma questão essencial.
Saliento como aspectos positivos da proposta de lei do Governo, que merecem a nossa concordância, a reversão da inversão do ónus da prova quanto à inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional, pelas razões que acabei de referir; a eliminação do critério dos meios de subsistência para atribuição da nacionalidade portuguesa por naturalização, também pelas razões que referi há pouco; e algum alargamento que o Governo propõe quanto à possibilidade de aquisição da nacionalidade portuguesa quer no que se refere aos imigrantes de terceira geração quer no que se refere à passagem de 10 para 6 anos do período mínimo de residência dos progenitores necessário para este efeito no que se refere aos cidadãos que não são originários de países de língua portuguesa, equiparando todos os cidadãos quanto a este aspecto.
Agora, sendo positiva, parece-nos que é limitada, na medida em que este critério dos seis anos de residência legal dos progenitores se nos afigura particularmente restritivo e susceptível de gerar situações de injustiça e de condenar ao não reconhecimento da nacionalidade portuguesa um conjunto de cidadãos que, efectivamente, são tão portugueses como qualquer de nós, que nasceu em Portugal e que fez a sua vida em Portugal.
Portanto, estamos a condenar qualquer cidadão que tenha nascido em Portugal, filho de pais estrangeiros, desde que eles não residam legalmente em Portugal há mais de seis anos, e estamos a falar de pessoas nascidas nos próximos filhos de emigrantes residentes em Portugal em situação legal e que não vão ser portugueses de origem e vão continuar a não ser portugueses ao longo da sua vida, apesar de nascerem aqui, crescerem aqui, irem aqui à escola, trabalharem em Portugal e de, eventualmente, não conhecerem o país dos seus pais. Esta é uma situação que, do nosso ponto de vista, é injusta e não vai contribuir para que esses cidadãos possam ter uma integração plena na comunidade nacional.
Do nosso ponto de vista, dever-se-ia ir mais longe e ter uma concepção mais justa e mais alargado quanto à concessão da nacionalidade originária a cidadãos efectivamente nascidos em Portugal, embora filhos de pais estrangeiros.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Nuno Magalhães,
Muito obrigado pelas suas perguntas, que me permitem clarificar, de facto, aspectos concretos quanto ao regime que propomos.
Quanto à primeira questão que o Sr. Deputado coloca da residência habitual, trata-se de uma questão de português. Aliás, se se exige o conhecimento da língua portuguesa aos cidadãos estrangeiros para obterem a nacionalidade portuguesa, é suposto também que todos nós que temos a nacionalidade portuguesa saibamos que língua estamos a falar. E aquilo que propomos é exactamente o que vem em qualquer dicionário. Residir habitualmente em Portugal é, obviamente, residir em Portugal com carácter de permanência. Estamos a excluir, obviamente, os turistas que venham a Portugal por um curto período, as pessoas que não tenham, de facto, a sua residência em Portugal.
O que queremos evitar são soluções restritivas, como, por exemplo, a que pode decorrer se na lei dissermos que são cidadãos residentes em Portugal, porque isso pode causar confusão e ser susceptível de ser interpretado no sentido de que só os que tenham autorização de residência em Portugal, que é uma figura tipificada na lei, cuja adopção seria extraordinariamente restritiva e, por isso, não é esse o nosso critério.
O que entendemos é que os cidadãos, desde que, de facto, estejam estabelecidos em Portugal, estejam cá a trabalhar, vivam cá, tenham cá a sua residência, embora não no sentido que está tipificado na lei, que é extraordinariamente restritivo…
O que queremos evitar é que se estabeleça essa confusão, que se caia na armadilha de dizer que só pode ter a nacionalidade portuguesa quem tenha autorização de residência em Portugal. Este é um critério que não aceitamos, porque seria extraordinariamente restritivo e injusto.
A segunda questão que o Sr. Deputado me colocou tem a ver com a ligação à comunidade portuguesa. Achamos que se deve regressar a um regime que já vigorou em Portugal entre 1981 e 1994 e que um dos governos do PSD alterou.
Do nosso ponto de vista, mal.
A lei portuguesa, até 1994, já estabelecia um critério para que haja uma demonstração da ligação efectiva à comunidade nacional, que tem a ver com os anos de residência cá. Se alguém tem de demonstrar que vive em Portugal há mais de seis anos e que demonstra que conhece a língua portuguesa… Portanto, há critérios que permitem verificar, desde logo, se existe ou não uma ligação efectiva à comunidade nacional.
Dir-me-á: mas pode não existir! Obviamente que, se não existir, se as autoridades portuguesas tiverem razão para supor que, apesar de existirem esses indícios claros de ligação, ela não existe, têm de o demonstrar.
Agora, aquilo que tem acontecido é que, devido à inversão do ónus da prova, que se operou em 1994, as autoridades portuguesas, perante alguém que requer a concessão da nacionalidade e comprova todos os elementos que lhe são pedidos, consideram não estar suficientemente demonstrado e recusam-na. E não têm de explicar porquê, limitam-se a recusar. Recusam porque não.
E o que achamos que é fundamental é que se acabe com este regime de recusa automática e infundamentada e que sejam as próprias autoridades a ter de demonstrar que essa ligação não existe efectivamente, apesar da prova demonstrada.
Aliás, a proposta de lei também vai nesse sentido e, por isso mesmo, saudámos esse aspecto.