Período de férias judiciais no Verão
Intervenção de Odete Santos
28 de Julho de 2005
Senhor Presidente:
Gostava de interpelar o Sr. Presidente no seguinte sentido: esta
proposta de lei veio publicada numa separata do Diário da Assembleia da República, para consulta pública,
com um prazo de 19 dias para o efeito — porque o dia 8 de Julho, segundo as regras do Código Civil, não
conta.
Ora, sobre esta matéria, apenas tenho conhecimento de um ofício subscrito pelo Sr. Deputado António
Montalvão Machado, na qualidade de Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias, que sugere, relativamente a esta proposta de lei e a uma outra que ainda nem
estava presente na Assembleia da República, que seja reduzido o prazo de consulta pública de 30 dias
(prazo previsto no Código do Trabalho, aqui invocado) para 20 dias, dado que tal iniciativa seria discutida
hoje, dia 28 de Julho, e de um despacho do Sr. Presidente, com o seguinte teor: «Urgente. Publique-se
diploma no Diário da Assembleia da República. Aos Presidentes das 1.ª e 11.ª Comissões para promover a
consulta pública».
Neste despacho, tal como o Código do Trabalho exige, não está justificada a redução do prazo de 30
para 20 dias, nem sequer se diz «concordo», apenas que é urgente a publicação no Diário! Aliás, já constatámos
que essa redução do prazo não foi para 20 dias mas, sim, para 19 dias, e, portanto, também aí haverá
violação do prazo estabelecido para a consulta pública.
Posto isto, pergunto ao Sr. Presidente se foi emitido mais algum despacho, para além deste, em que V.
Ex.ª ou o Presidente da Comissão — normalmente, é a Comissão de Trabalho que delibera que se procedaà consulta pública — justifiquem a redução do prazo de 30 para 20 dias, ou se esse é o único despacho
sobre a matéria.
(...)
Sr. Presidente, o ofício que tenho em mãos é do Sr. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e o mesmo não refere que se tratade uma deliberação da Comissão — e, tanto quanto estou informada, não foi. Pergunto a V. Ex.ª, Sr. Presidente, se alguém o informou de que tinha sido a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias a deliberar.
(...)
Neste caso não há leis que não a da maioria absoluta!… Passaram apenas
19 dias!
(...)
Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Justiça,
Telegraficamente, dado o pouco
tempo de que disponho, queria insistir nessa questão do estudo, para saber que operação aritmética simples
(uma regra de três simples ou composta) pode ter sido feita para se chegar à conclusão de que com
esta redução haveria um aumento de produtividade de 10%.
Também fico à espera da deliberação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias, que deve estar em acta, estabelecendo que o prazo de consulta pública devia ser reduzido para
20 dias.
Por último, V. Ex.ª, Sr. Ministro, esqueceu-se de dizer que em 1987 o Partido Socialista, em declaração
de voto, congratulou-se por causa das férias judiciais terem ficado como ficaram: dois meses apenas, coincidindo
com as férias escolares — para tanto, basta consultar os números do Diário da Assembleia da
República. Ora, gostava de perguntar por que é que, estando os juízes, os representantes do Ministério
Público e os funcionários judiciais de férias na segunda quinzena de Julho, o cidadão, já desprotegido
perante a justiça, vai ver os seus prazos correr e, possivelmente, precludir alguns direitos por estar longe e
não ter cumprido os prazos.
(...)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Sr. Ministro da Justiça e demais membros
do Governo:
Creio que é importante lembrar a afronta que constituiu para todos os operadores judiciários
e para os cidadãos em geral, visto que ninguém gosta de ser tomado por tolo, a forma como o Sr. Primeiro-
Ministro, no dia 29 de Abril, nesta Assembleia, colocou o problema das férias judiciais. Nessa
ocasião, disse o Sr. Primeiro-Ministro, em declarações que ficaram registadas no Diário da Assembleia da
República, que os tribunais estão fechados dois meses por ano.
Ora, para além de isso ser mentira, para além de ser falso, essas afirmações levaram a
que, lá fora, toda a gente começasse a dizer que, de facto, isto era um «bodo aos pobres» e que os operadores
judiciários tinham privilégios, o que é natural, visto que foi o próprio Primeiro-Ministro quem começou
por tratar este assunto como se de um privilégio se tratasse, dizendo que estes operadores tinham mais
férias do que os trabalhadores normais. Esta afirmação também está no Diário da Assembleia da
República.
Esta questão dos privilégios tem sido, muitas vezes e em várias ocasiões, brandida para
coarctar direitos às pessoas, objectivo que esta proposta de lei leva a cabo. Este é o primeiro ponto que
importa salientar, sendo conveniente lembrar que foi também neste sentido que se pronunciou a Ordem dos
Advogados, profissionais do foro que representam os cidadãos nos tribunais.
Ora, a segunda quinzena de Julho — período que, de acordo com a proposta do Governo, deixa de ser
de férias judiciais — é, geralmente, o tempo em que os magistrados e os funcionários judiciais gozam os
seus dias de férias, porque o mês de Agosto não chega. Para alguns tribunais, aliás, nem mesmo a segunda
quinzena de Julho chega!
Digo-lhe que não chegam! As contas foram feitas e o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues
estava presente na reunião da 1.ª Comissão onde o Conselho Superior de Magistratura e do Ministério
Público, por exemplo, apresentaram as contas que fizeram constar do parecer que entregaram.
Não me engano, não! O Sr. Deputado gosta muito de misturar as coisas, mas é preciso
que isto fique claro!
Eu vou dizer-lhe, Sr.ª Deputada Celeste Correia, como é que os cidadãos são prejudicados
por esta medida. O que sucede é que, com a aprovação desta proposta de lei, na segunda quinzena de
Julho os prazos continuarão a correr para os cidadãos. Um cidadão pode estar no gozo de férias, mas pode
ter de interrompê-las por causa de uma citação, ou, pior, nem sequer ter conhecimento de que houve essa
citação, vendo, assim, precludir o prazo que continuará a correr nessa segunda quinzena. Os cidadãos
correm o risco de deixar passar os prazos para, por exemplo, deduzir um pedido de indemnização cível
num processo crime por estarem a gozar férias. Os cidadãos podem ser obrigados a interromper as suas
férias ou, pior, podem não conseguir cumprir a obrigação de indicar um rol de testemunhas nessa segunda
quinzena de Julho. Os cidadãos, muito provavelmente, não verão qualquer audiência marcada para essa
altura, mas, se tal acontecer, correm o risco de interromper as suas férias e de, chegando ao tribunal, ver a
audiência adiada porque as testemunhas estão a gozar férias e não comparecem.
O Sr. Ministro não respondeu a uma pergunta que coloquei logo de início e que procurava saber se esta
proposta beneficia os cidadãos. É que, de facto, não é assim que se criam benefícios para os cidadãos que
recorrem à justiça, pese embora o facto de esta medida ter sido anunciada no dia 29 de Abril como algo de
grandioso, dois dias depois de o País ter sido confrontado com a notícia de que tinha acabado o prazo de
prisão preventiva num processo que corria em férias. Como tal, aquilo que o Sr. Primeiro-Ministro veio fazerà Assembleia nessa altura foi, de facto, uma afronta, continuando a querer enganar os cidadãos.
Por que é que os senhores não tomam outras medidas, essas, sim, capazes de beneficiar os cidadãos,
como a de reduzir as custas judiciais? É que o valor elevado destas custas tem afastado da defesa dos
seus direitos nos tribunais de trabalho muitos trabalhadores. Por que é que não alteram a lei do apoio
judiciário que hoje apenas se aplica aos indigentes e pouco mais?
Por que é que não levam a cabo as reformas relacionadas com a burocracia dos tribunais
com a qual se vêem confrontados os magistrados e os funcionários judiciais?
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Parece, agora — pelo que ouvi ao Sr. Deputado Ricardo Rodrigues —,
que o estudo invocado pelo Governo não é importante. Mas, se foi o Sr. Ministro que falou nesse estudo
desde o início, é natural que queiramos saber que «unidade de medida» foi usada para chegar a este
aumento de produtividade de 10%.
Não há, contudo, qualquer estudo credível neste sentido.
Para além disto, Sr. Ministro, há uma outra afronta que foi hoje continuada por V. Ex.ª, pois, de acordo
com um mapa que aqui tenho, há países em que os magistrados têm mais férias do que os magistrados
portugueses. Estou a lembrar-me, por exemplo, da Itália, onde há 45 dias de férias funcionais e não apenas
judiciais. Em Itália, há 30 dias de férias judiciais e os magistrados têm 45 dias de férias funcionais, pois,
como eles terão o problema da justiça resolvido, podem dispor de um sistema deste género. Em Portugal,
todavia, tal não é possível.
Sr. Ministro, convinha que V. Ex.ª explicasse aos cidadãos os atrasos que se vão verificar nos
despachos saneadores e nas sentenças, pois era durante o período de férias que os juízes levavam a cabo
tais actos. Convinha que o Sr. Ministro explicasse tais demoras aos cidadãos, pois nem os juízes nem os
advogados terão tempo para estudar as acções mais complicadas durante as férias judiciais.
Já ultrapassei o tempo de que dispunha, mas não posso deixar de dizer que a Ordem dos Advogados
tem razão quando, no parecer que nos deu, demonstra que os cidadãos são prejudicados. Por isso digo
que esta proposta é uma afronta para os cidadãos, por tentar convencer os portugueses de que vai ficar
tudo resolvido, quando não vai.
Por último, gostava de reafirmar que está provado, pelos elementos constantes deste dossier, que o processo de consulta pública não respeitou os termos legais, conforme disse na interpelação à Mesa que efectuei
no início da sessão. Na realidade, mesmo que o despacho em causa tivesse sido claro, nem sequer o
prazo mínimo de 20 dias foi, neste caso, respeitado. Para mais, se o que hoje vai ser aprovado por VV.
Ex.as sobre o estatuto da aposentação é inconstitucional, há ainda uma clara violação do direito à
negociação colectiva no que toca aos artigos relativos às férias judiciais. De facto, alteram-se os direitos
dos magistrados em relação ao gozo de férias e, de acordo com a Lei n.º 23/98, de 26 de Maio, esta é uma
matéria que tem de ser objecto de negociação colectiva, o que não aconteceu. Essa é outra das
inconstitucionalidades constantes deste processo.
Por fim, diria que as casas não começam a ser construídas pelo tecto ou que, pelo menos, não se
coloca um tecto sobre uma casa com traves-mestras que estão a esboroar-se. Era necessário ter tomado
outras medidas para, depois, analisarmos esta questão das férias judiciais.
(...)
Votação final global do texto de substituição sobre a proposta de lei n.º 23/X
O debate sobre a proposta de lei n.º 23/X demonstrou que o Primeiro-Ministro:a) Anunciou a redução das férias judiciais como uma medida estruturante ao combate à morosidade da
justiça e como fundamental para o aumento da produtividade dos tribunais;
b) Fez o anúncio de uma forma afrontosa para todos os operadores judiciários, pois quis convencer os
cidadãos de que os tribunais estavam encerrados durante os dois meses de Verão para gozo de férias de
magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais e advogados, que teriam
então um regime de férias de privilégio relativamente ao normal dos cidadãos (dois meses);
c) Anunciou que, com a redução, haveria um aumento de produtividade de 10% de acordo com um estudo
do Ministério da Justiça, estudo que, insistentemente solicitado pelos Deputados, não foi apresentado
pelo Ministro da Justiça;
d) Fez o anúncio num momento particularmente crítico, quando dois arguidos em prisão preventiva
foram restituídos à liberdade por se ter esgotado o tempo de prisão (apesar de o processo correr seus
termos em férias judiciais);
e) Induziu com facilidade a opinião pública no erro de assacar as culpas aos operadores judiciários pelo
regime de privilégio (aliás, inexistente) relativamente às férias, dado que entre o facto referido em d) (ocorrido
em 26 ou 27 de Abril) e a afirmação de que os tribunais estavam encerrados durante dois meses de
Verão mediaram 2 ou 3 dias(a sessão na Assembleia foi em 29 de Abril).
O debate demonstrou ainda:
a) Que, pela impossibilidade de gozo das férias durante o mês de Agosto de todos os operadores
judiciários, a 2.ª quinzena de Julho será a de um vazio nos tribunais, continuando, no entanto, em curso os
prazos que impendem sobre os cidadãos, os quais apenas se suspendem no mês de Agosto;
b) Que a 2.ª quinzena de Julho terá de ser necessariamente afectada ao gozo de férias dos magistrados
e funcionários, mas serão os cidadãos as vítimas da redução das férias, pois nessa 2.ª quinzena haverá
prazos que terminam, apesar das férias normais dos cidadãos (como prazos de contestação, prazos para
apresentação de acusações, de pedidos de indemnização, de arrolamento de testemunhas, todos eles prazos
que levam à preclusão de direitos se não forem atempadamente cumpridos).
Mas o debate demonstrou, ainda, que a Assembleia da República não cumpriu o dever de organizar a
consulta pública nos termos legais, para dar cumprimento à alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e à alínea a) do
n.º 2 do artigo 56.º da Constituição.
De facto, estamos na presença de legislação de trabalho, uma vez que, através da proposta de lei, se
altera o regime de gozo de férias de magistrados e de funcionários judiciais.E é a Lei n.º 23/98, de 26 de Maio,
que, na alínea d) do artigo 6.º, claramente estabelece que o regime de férias é legislação do trabalho,
tanto mais que até é matéria sujeita à negociação colectiva.
Sendo assim, aliás de acordo com o artigo 146.º do Regimento da Assembleia da República, a
Comissão competente promove a apreciação do projecto ou proposta pelas comissões de trabalhadores e
associações sindicais, para efeitos da alínea d) do n.º 5 do artigo 54.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º
da Constituição.
Sendo certo que o n.º 2 desse artigo se refere que aquelas entidades podem pronunciar-se no prazo
que a Comissão fixar, a verdade é que o Código do Trabalho, aliás invocado na separata da Assembleia da
República — artigo 524.º a 530.º da Lei n.º 99/2003 — fixa o prazo de 30 dias para a consulta pública, o
qual só poderá ser reduzido para 20 dias, se o autor da publicação justificar a urgência na redução do prazo
para 20 dias.
De acordo com a resposta à interpelação do PCP, sobre a existência de qualquer despacho onde se justifique
a urgência na redução do prazo, o que resulta do processo legislativo é o seguinte:
1 — Não houve qualquer deliberação de qualquer comissão para redução do prazo de consulta pública.
2 — Houve, sim, um ofício subscrito pelo Vice-Presidente da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias,
dirigido ao Sr. Presidente da Assembleia da República sugerindo a redução do prazo.
3 — Do despacho do Sr. Presidente da Assembleia não consta qualquer declaração de concordância
com a redução do prazo, nem qualquer fixação do prazo em 20 dias, e muito menos qualquer justificação
para tal redução.
4 — A separata foi publicada a 8 de Julho; logo, o prazo de consulta pública foi de apenas 19 dias (nem
sequer 20) uma vez que, nos termos do artigo 279.º do Código Civil, o dia 8 não se conta.
Assim, por incumprimento das normas legais (aliás, invocadas na separata) relativas à participação das
associações sindicais na elaboração da legislação de trabalho, o diploma padece de inconstitucionalidade.
Mas é claro, também, que houve violação do direito à negociação colectiva, previsto na Lei n.º 23/98, de
26 de Maio.
Com efeito, nos termos do já citado artigo 6.º, a alteração do regime de férias é objecto de negociação
colectiva.
O diploma altera claramente o regime de férias de magistrados e de funcionários judiciais.
Logo, o Governo deveria ter procedido à negociação do diploma, nesse aspecto, com as associações
sindicais, na forma estabelecida pela Lei n.º 23/98.
Se se considerar não haver normas com incidência orçamental, o processo a seguir deveria ser o estabelecido
no artigo 7.º da Lei n.º 23/98.
E para haver negociação antes do dia 1 de Setembro, deveria ter havido acordo com as associações
sindicais na abertura do processo negocial.
Nada disso foi cumprido pelo Governo. Nem houve, consequentemente cumprimento das fases posteriores
de negociação previstas no artigo 7.º atrás citado.
Assim, o diploma é também inconstitucional por violação do direito à negociação colectiva previsto no
artigo.
A Deputada do PCP, Odete Santos.