Intervenção da Deputada
Odete Santos
Alteraração do Código de Processo Penal
12 de Outubro de 2000
Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados:
Em 1998 a Assembleia da República aprovou alterações ao Código do Processo Penal, que marcam já, nalgumas das suas disposições, a intenção de combater uma ( mas só uma, sublinha-se) das causas da morosidade da Justiça Penal.
Assim é que, relativamente ao adiamento de audiências, já
o artigo 333º do Código estabelece que, faltando o arguido, se
deve diligenciar pela sua comparência imediata, e só depois se
procede ao adiamento da audiência. O que sublinha o princípio
de que o adiamento é a última solução.
Também para obviar à morosidade processual a lei de 1998 introduziu
para casos de urgência ( e urgência é a iminência
de prescrição do procedimento criminal) a notificação
por via telefónica, sujeita a formalismos indispensáveis à
garantia da autenticidade do acto.
Relativamente a outro dos assuntos versados na presente lei de autorização
legislativa- a celeridade na fase processual da instrução- o
Código do Processo Penal já estabelece que o despacho de pronúncia,
encerrado o debate instrutório, é imediatamente lido, ou verbalmente
proferido e ditado para a acta. Consagrando embora a possibilidade de nas
causas complexas, o Juiz poder decidir no prazo de 10 dias.
Estas disposições umas da Lei de 98 e outras da versão
originária do Código, já sublinham o princípio
da celeridade e a excepcionalidade, por exemplo, da audiência de julgamento.
Passados 2 anos, constata-se que das disposições do Código
não foram retiradas as necessárias virtualidades.
E impõe-se que se diga que em muitos casos tal aconteceu, e acontece,
por não terem sido dotados os Tribunais dos meios humanos e técnicos
necessários a um bom andamento da Justiça Penal.
De facto, pelo menos no que toca a Tribunais sedeados em meios urbanos de grande conflitualidade, a acrescentar aos adiamentos por falta de arguidos ou de testemunhas, surgem adiamentos por falta de notificação, ou de notificação atempada dos intervenientes processuais, o que se deve à insuficiência de meios dos Tribunais. Quantas vezes as notificações aos arguidos são feitas sem a antecedência de 30 dias- contrariamente ao que o Código prescreve !
Quantas vezes o prazo para apresentar a contestação recai
no próprio dia da audiência ou mesmo em data posterior, tornando
inevitável o adiamento da audiência!
Quantas vezes os magistrados judiciais se não socorrem do artigo 333º
do Código, ordenando que através da custódia, se faça
comparecer o arguido logo na 1ª marcação, porque, verdadeiramente
assoberbados com processos marcaram vários julgamentos e diligências
para a mesma hora, e optam por realizar as diligências em que está
tudo presente.
Quantas vezes, em processos simples, não foi ditado imediatamente
para a acta, no encerramento do debate instrutório, o despacho de pronúncia,
porque o Juiz, com a instrução a seu cargo, teve de marcar para
o mesmo dia várias diligências de instrução, em
vários processos!
E cabe aqui dizer, a propósito da Instrução, que o Governo
do Partido Socialista deu um bom contributo para a morosidade processual ao
extinguir, em muitos Tribunais, os Juízes de Instrução,
decidindo-se pela acumulação da competência para a instrução,
nos Juízes que julgam.
Assim contribuindo para as delongas dos processos.
Solução que o PCP contrariou propondo a cobertura de todo o
país com Juízes de Instrução, dada a relevância
de tal magistratura na fiscalização do exercício do direito
de punir por parte do Estado.
Vêm estas reflexões a propósito desta alteração
legislativa, para que não possa solidificar-se a ideia de que as questões
sobre que se debruça a proposta estão no cerne da morosidade.
E de que problemas como a judicialização da crise social, e
a falta de meios técnicos e humanos à disposição
dos Tribunais, não são, de facto, os principais motores da morosidade
processual, e da crise da Justiça.
Extravasando um pouco a questão do processo penal, mas tendo a ver
com ela no tocante ás causas da morosidade, não é porque
as pessoas se furtam às notificações que nos processos
de falência os trabalhadores esperam 9 ou mais anos pela sentença
de verificação e graduação de créditos
e 12 e mais anos pelo recebimento dos seus créditos.
Vêm estas considerações para se assinalar que, em caso
algum, a crise da Justiça pode servir para entorses graves no processo
penal, que surgem aparentemente como necessários e justificados, face
à míngua de soluções para debelar a crise no seu
cerne, combatendo-se também dessa forma, a chicana processual.
O grande risco de algumas soluções que tocam com as garantias
de defesa, e que avançam sempre primeiro do que a dotação
dos Tribunais com meios eficazes, está no risco do confronto com as
alterações que podem ainda vir, e que podem ainda decorrer com
naturalidade e emergência, de razões de segurança e da
necessidade de eficácia musculada da máquina judicial.
O PCP está de acordo em alterar na lei processual penal os mecanismos
que tornam possível a ocorrência de expedientes meramente dilatórios.
Como a apresentação no rol de testemunhas dos nomes constantes
de toda uma lista telefónica, ou de todos os assinantes de um jornal.
A limitação do número de testemunhas com a possibilidade
de ser excedida, como vem permitido na proposta, não nos parece violar
as garantias de defesa.
De resto, diga-se em abono da verdade que é o abuso numa minoria de
processos mediáticos, na indicação de prova( e prova
entre aspas) que acaba por suscitar uma onda de indignação generalizada
a todos os arguidos em processo penal. Como se todos usassem de chicana processual.
E são comportamentos deste género que, não raro, ditam
outras soluções menos próprias de um processo penal da
Democracia, que acabam por recair sobre a generalidade dos cidadãos
.
Mas a supressão de mecanismos que se prestam à chicana, não
pode violar garantias de defesa( todas as garantias de defesa) conforme se
enfatiza no artigo 32º da Constituição da República,
nem as garantias de defesa previstas na Convenção Europeia dos
Direitos do Homem.
Porque se a Convenção Europeia estabelece que qualquer pessoa
tem o direito a que a sua causa seja examinada por um Tribunal num prazo razoável,
a verdade é que também estabelece que o processo seja equitativo.
E estabelece também que o acusado tem direito, no mínimo a ser
informado da natureza e causa da acusação e a dispor do tempo
necessário para a preparação da sua defesa.
Ora, o que vem proposto quanto à impossibilidade de adiamento de audiências,
com a consequente possibilidade de o Juiz alterar a ordem da produção
de prova, sem regras nem limites, viola as garantias de defesa, viola o direito
a um processo equitativo. Pode violar a própria presunção
de inocência. Pois que, se, por hipótese, faltar toda a prova
da acusação, serão de imediato ouvidas as testemunhas
de defesa. Surgindo o arguido a justificar-se em relação a uma
acusação que ainda não foi fundamentada. Só posteriormente,
com a marcação de novo dia, a acusação ouvirá
as suas testemunhas, depois de conhecer a prova da defesa. Este é um
grave entorse ao modelo de processo penal do regime democrático, que
nada pode justificar. Nem o prazo razoável para o exame da causa, já
que a decisão perderá a razoabilidade perante a possibilidade
de ser injusta.
Conexa com esta questão está a documentação
da prova da audiência determinada pela inversão da ordem da sua
produção, que se acabou de criticar. É que, com tal solução
se viola o princípio da imediação e da oralidade que
rege o processo penal.
Estas últimas questões prendem-se com uma presunção
absoluta, contida na proposta, de que o arguido que prestou termo de identidade
e de residência, foi informado da acusação e foi atempadamente
informado do dia da audiência, pela simples expedição
de uma carta não registada para a residência indicada pelo arguido
nos autos.
A presunção absoluta viola as garantias de defesa.
Todos sabemos que não é raro recebermos na nossa caixa do
correio correspondência de outras pessoas, mesmo correctamente identificadas.
E que a nossa correspondência aparece na caixa de correio de outras
pessoas.
Como pode, pois, concluir-se que com a presunção absoluta de
notificação, se cumpriu o dever de informação
atempada ( pelo menos com 30 dias de antecedência) do dia designado
para a audiência?
Isto apesar da declaração do funcionário dos correios,
ou até apesar de qualquer cota lavrada por funcionário judicial
indicando nos autos o local para onde foi expedida a notificação.
Mas dúvidas subsistem de que a mera passagem da presunção
absoluta a relativa, dada a impossiblidade, quase total, da prova de um facto
negativo- o não recebimento da correspondência- possa assegurar
uma das garantias de defesa- a da informação atempada do dia
da audiência por forma a poder preparar-se a defesa.
E servirá de justificação o afirmar-se que na grande
maioria dos casos a correspondência chega ao destino?
As garantias da defesa asseguram-se com a certeza de que um determinado arguido
foi notificado, e não com uma mera presunção absoluta.
De qualquer forma, parece-nos que a possibilidade que o Código contém-.
a de adiamento por duas vezes da audiência- é excessiva, havendo
que ponderar outra solução.
Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados
As alterações propostas não constituem a reforma de
fundo que porá a Justiça em dia.
Não é difícil mesmo adivinhar que algumas das alterações
possam vir a determinar incidentes e novas delongas.
O que verdadeiramente poderá adequar o sistema garantístico
ao prazo razoável do exame de uma causa, será a desjudicialização
dos conflitos sociais, formas alternativas de solução de conflitos,
o combate à conflitualidade social, o apetrechamento dos Tribunais
com os meios técnicos e humanos necessários.
Sem tal política, medidas restritivas de direitos surgem como inadequadas,
desproporcionadas e desnecessárias aos fins que dizem prosseguir.
Disse.