Intervenção da Deputada
Odete Santos
Organização da Investigação Criminal
16 de Junho de 2000
Senhor Presidente
Senhor Ministro da Justiça
Senhores Deputados
A Proposta de lei sobre Investigação criminal, precisamente
porque abarca uma área de espacial sensibilidade em que o cidadão
se encontra perante o Estado e se confronta com o Estado, merece uma análise
aprofundada.
Estando em causa um modelo de investigação, um modelo que define
e limita poderes do Estado, que define e limita direitos liberdades e garantias
dos cidadãos, os contornos daqueles poderes e destes direitos na investigação
criminal, definem bem, e só por si, o sistema político. O nível
de realização ou irrealização da Democracia.
É por isso que toda a história do processo penal, da investigação,
da titularidade do exercício da acção penal, e da forma
de articulação da acção policial com as autoridades
judiciárias, sempre suscitou acesos debates.
Não fugirá a tal esta Proposta de lei.
Se é verdade que a proposta não oferece contestações
de fundo relativamente à forma como pretende formular as competências
para a investigação criminal dos vários órgãos
de polícia criminal, reservando para a Polícia Judiciária
a investigação criminal dos crimes mais complexos, é
também verdade que a parte restante da proposta de Lei não pode
deixar de suscitar fundadas dúvidas.
É que nessa parte, a proposta arrisca-se a beliscar o modelo processual
penal vazado no Código.
E assim, não se pode deixar de ponderar sobre a evolução
do modelo processual penal, sobre a evolução do Estatuto do
Ministério Público, sobre a sua conquistada e defendida autonomia.
É que alguns dos artigos da Proposta de lei deixam preocupações
e aparecem como potenciais geradores de conflitos entre uma autonomia ( a
do Ministério Público) consagrada na Constituição
e a assim chamada ( pela proposta de lei) autonomia dos órgãos
de polícia criminal, das forças policiais.
Podendo até questionar-se se alguns normativos não alteram o
modelo de investigação criminal constante do Código do
Processo penal.
Por exemplo: A subtil distinção, no preâmbulo da proposta
de lei, entre poderes de direcção e direcção,
reservando para o Ministério Público apenas a direcção,
isto é apenas a faculdade de emitir orientações genéricas,
parece não corresponder á directa orientação dos
órgãos de polícia criminal, pelo Ministério Público.à
possibilidade de o Ministério Público emitir instruções
específicas sobre a efectivação de quaisquer actos. Como
consta do Código do processo penal.
O Ministério Público tem a sua autonomia consagrada na Constituição
da República. E reforçada nos termos do seu Estatuto.
Entretanto, em termos da actividade investigatória, à medida
que se reforça a autonomia, têm sido retirados ao Ministério
Público os poderes de fiscalização daquela actividade
investigatória, quando não exercida no âmbito do processo
penal.
De facto, em 1992, através da alteração da lei Orgânica
do Ministério Público, foi-lhe retirada a competência
para fiscalizar a actividade pré processual dos órgãos
de polícia criminal.
Procedeu-se assim a um reforço dos poderes policiais, a uma diminuição
da área da dependência funcional das polícias relativamente
ao Ministério Público. A um reforço do Poder Político
em actividades de prevenção . Actividades em que os únicos
juizes da "idoneidade da notícia recebida, e da suficiência
ou insuficiência dos elementos registados "são as forças
policiais actuando apenas na dependência hierárquica do poder
político. Actividades que envolvem já actos investigatórios,
que colocam sob suspeita um cidadão, pelo tempo que será determinado
pela força policial. Alargou-se assim a possibilidade de uma relação
conflituante entre o poder e o indivíduo, precisamente porque aquele,
o poder político, fica á margem de qualquer controle.
As alterações introduzidas no Estatuto do Ministério
Público introduzidas em 1998, se vieram reforçar a sua autonomia,
não retomaram a redacção inicial da lei orgânica
de 1986. Ou seja: não se retomou a competência do Ministério
Público para fiscalizar a actividade pré-processual dos órgãos
de polícia criminal. O que não deixou de causar surpresa, já
que desde 1992, e por várias vezes, o Partido Socialista se insurgiu
contra o cerceamento de competências de fiscalização que,
segundo afirmou, melhor garantiriam os direitos liberdades e garantias dos
cidadãos contra a discricionariedade do poder político.
Neste percurso, os textos legislativos tornavam possível uma policialização,
e mesmo uma governamentalização da investigação.
O exemplo perfeito foi o da chamada lei anticorrupção, declarada
inconstitucional nas disposições que permitiam nas actividades
de prevenção actividades investigatórias à margem
de qualquer controle judiciário.
Mas em todo este percurso manteve-se na lei orgânica da Polícia
Judiciária a possibilidade de o procurador geral da República
inspeccionar a Polícia Judiciária.
Sabe-se que uma nova lei está em gestação. E já
se sabe que desaparecerá desta nova lei aquela competência.
Em todo este contexto, a proposta de lei de investigação criminal
não garante, nem quer curar de garantir, nas acções policiais
anteriores ao início do processo penal, outra fiscalização
que não seja a decorrente da dependência hierárquica dos
órgãos de polícia criminal, relativamente ao poder político.
Assim, pode dizer-se que a proposta de lei reforça o poder político
face aos cidadãos. Reforça a discricionariedade e enfraquece
as garantias dos cidadãos.
Se a este reforço do poder político na actividade pré-processual
dos órgãos de polícia criminal acrescer eventualmente
um reforço dos poderes policiais no âmbito do próprio
processo penal, podem concretizar-se preocupações já
antigas com a possibilidade de policialização e governamentalização
da instrução criminal.
Na análise que se faz não estão em causa, como nunca
o estiveram, pessoas, mas apenas o sistema.
O sistema de prevenção e de investigação que permita
conjugar a eficácia no combate á criminalidade com a garantia
dos direitos liberdades e garantias dos cidadãos face ao poder político..
Não nos parece que esta proposta de lei, nessa área, contribua
para o reforço de um sistema em que o Ministério Público
e o Juiz de Instrução são peças imprescindíveis.
Ao recuo para as fases preliminares do processo de um conjunto de garantias
destinadas a assegurar os direitos dos cidadãos ( vide Cunha Rodrigues-
Ministério Público in Dicionário da Administração
Pública) não pode responder-se com o alargamento da área
em que funciona a dependência hierárquica, com o alargamento
de uma fase policial sem outra fiscalização que não seja
a do poder político.
Nem com restrições á dependência funcional.
Estando em causa a defesa do interesse punitivo do Estado no combate á
criminalidade, mas também a defesa da liberdade, da honra e do património
dos cidadãos, impõe-se que ao reforço da autonomia do
Ministério Público corresponda o reforço dos seus poderes
de direcção e fiscalização das polícias.
Por isso nos vamos abster na votação da proposta. Ficando a
guardar os resultados do debate na especialidade.
Disse