Intervenção do Deputado
António Filipe

Criação do Observatório da Justiça

26 de Abril de 2000



Sr. Presidente,

Srs. Deputados

O PCP apresenta, hoje, a esta Assembleia a proposta de criação de um Observatório da Justiça, a funcionar precisamente junto deste órgão de soberania.

Todos sabemos a frequência com que acontecimentos relacionados com a área da justiça põem em causa, aos olhos dos cidadãos, a credibilidade do sistema judiciário que temos e reflectem problemas centrais, de fundo, que afectam este importante sector do Estado e do sistema político democrático. Aos olhos dos cidadãos, o sistema judiciário, moroso, dispendioso e de menor qualidade para as pessoas de menores recursos, favorece objectivamente as classe dominantes, os poderosos, o que afecta, consequentemente, a sua própria credibilidade. Temos repetidamente afirmado que os problemas de fundo que conduzem ao funcionamento moroso e ineficiente do sistema judicial não se resolvem com fogo de artifício mediático nem com uma deriva casuística, destinada a pregar alguns remendos num tecido já esburacado. A justiça precisa de medidas estruturais.

Esta é uma das áreas governativas onde mais problemas se avolumam e em que o discurso da pesada herança do governo anterior mais prolifera, apesar de, desde há muitos anos para cá, todos os ministros da justiça assumirem um estatuto mediático que lhes garante um enorme crédito junto de largos sectores da opinião pública.

No tempo em que o Ministro Laborinho Lúcio passeava o seu discurso pelos mais variados fóruns, aqueles que justamente denunciavam a inconsistência da sua política e vaticinavam o agravamento dos problemas do sector eram, no mínimo, acusados de maldizentes.

Durante os quatro anos em que o Ministro José Vera Jardim exerceu o cargo, não eram muitos os que se atreviam a prever que o ministro que lhe sucederia ficaria a braços com uma situação de autêntico colapso na administração da justiça.

Afinal, os que criticaram um e outro tinham razão e continuarão seguramente a ter razão, a avaliar pelo que ultimamente se tem visto, para não acreditar que a crise se resolva com medidas destinadas a reagir mediaticamente aos acontecimentos.

É um facto que as principais disfunções do sistema judiciário estão, em larga medida, diagnosticadas. A saber: a desigualdade no acesso ao direito e aos tribunais e na aplicação da justiça por razões económicas; o desconhecimento de muitos cidadãos - particularmente dos sectores sociais mais desfavorecidos - dos seus próprios direitos e dos meios para os fazer valer; a chocante impunidade da chamada criminalidade de colarinho branco; a proverbial insuficiência de meios com que se vêem diariamente confrontados todos os que desenvolvem uma actividade ligada ao aparelho judiciário, sejam agentes da Polícia Judiciária, sejam delegados do Ministério Público, sejam juízes, sejam funcionários judiciais; um sistema prisional sobrelotado e disfuncional, incapaz de cumprir uma função ressocializadora; enfim, uma situação de mal-estar latente entre os agentes judiciários. Estes problemas exigem respostas adequadas que não fiquem pela cosmética ou pelos fogachos mediáticos. Só com medidas estruturais se poderá ultrapassar a presente crise e estamos convictos de que é possível tomar essas medidas, desde que haja vontade e coragem política para tal.

Nos últimos anos, aumentou muito o recurso dos cidadãos aos tribunais, tal como aumentou muito o elenco dos direitos que é possível fazer valer por meios judiciais. Ao mesmo tempo, mantiveram-se ou agravaram-se fenómenos de exclusão social e pobreza e outras fontes de conflitualidade social, cresceu a sofisticação do crime e também a mediatização da justiça, todos eles factores de conflitualidade jurisdicional acrescida, não tendo sido dada, entretanto, a atenção devida à justiça nem as medidas correspondentes a este aumento do recurso aosmeios judiciais.

A preocupação com esta situação levou o PCP a incluir no seu programa eleitoral um conjunto de iniciativas visando contribuir para a resolução dos problemas da justiça em Portugal, do qual consta a criação de um observatório da administração da justiça junto da Assembleia da República, com a participação de elementos vindos dos tribunais e das instituições representativas dos profissionais da justiça, das universidades e da comunicação social, entre outras entidades. É essa a proposta que hoje aqui debatemos.

Não ignoramos a realização ainda há poucos anos de um valioso estudo sociológico sobre os tribunais na sociedade portuguesa, sob a responsabilidade de investigadores do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que tem sido designado por Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Tratou-se, nas próprias palavras dos seus responsáveis, de um primeiro passo na investigação sistemática sobre os tribunais portugueses.

Para além desse importante e inédito diagnóstico dos principais bloqueamentos do funcionamento do sistema judiciário, que se saúda e que é importante prosseguir, revela-se, do nosso ponto de vista, essencial que a Assembleia da República, com as vastas competências legislativas que detém em matéria de justiça, as possa assumir, recebendo o contributo de uma entidade independente, participada pelos mais directos e qualificados intervenientes no sistema, capaz de uma reflexão conjunta, independente e qualificada sobre a situação da justiça e sobre as orientações e medidas mais adequadas para resolver os problemas deste sector.

Será objectivo do Observatório que propomos assegurar a recolha e a sistematização de dados objectivos sobre a situação e o funcionamento do sistema judiciário e promover a reflexão sobre as medidas adequadas à resolução dos problemas da administração da justiça. Através de uma composição alargada a diversos participantes do funcionamento da justiça sob diversos ângulos, mas todos particularmente qualificados, o Observatório da Justiça estará em condições de assegurar, com base em elementos objectivos, melhores condições para o diálogo, a conjugação de esforços e a reflexão, necessários para a resolução dos problemas fundamentais que afectam a administração da justiça e para a apresentação das propostas e recomendações que se mostrem indispensáveis para atingir essa finalidade.

Do nosso projecto de lei, consta um elenco de entidades que propomos que estejam representadas neste Observatório.

Queria, no entanto, dizer que não temos uma visão fechada deste problema, já que pensamos que é fundamental que as personalidades que integram o Observatório tenham proximidade em relação aos problemas, tenham uma intervenção e um conhecimento directos dos problemas da justiça e reúnam condições de qualificação para poder fazer parte de uma entidade como esta.

Em matéria de funções, entendemos que este Observatório deverá elaborar estudos e relatórios globais ou sectoriais que entenda necessários para a prossecução das suas atribuições e que lhe possam ser, inclusivamente, sugeridos ou encomendados aprofundamentos de determinados temas que dele careçam.

Entendemos importante, e por isso o propomos, a existência de um relatório anual sobre o estado da administração da justiça a apresentar a esta Assembleia, por ela a ser apreciado, e que o próprio Observatório possa apresentar a este órgão de soberania as recomendações que considere pertinentes para resolver os principais problemas que detecte.

Finalmente, farei algumas observações relacionadas com o relatório elaborado no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. É um bom relatório, feito sob a responsabilidade do Sr. Deputado Narana Coissoró, que daqui saúdo pela qualidade do documento apresentado, que suscita alguns problemas sobre os quais vale a pena reflectir.

Em primeiro lugar, refere-se ao problema da co-existência e da complementaridade deste Observatório em relação a outros órgãos, como o Conselho Superior da Magistratura, outros conselhos superiores ou o Provedor de Justiça.

O nosso objectivo, ao apresentar este projecto, não é o de criar qualquer tipo de conflitualidade entre competências dos vários órgãos ou o de criar o esvaziamento de qualquer outro órgão já existente. Não pretendemos esvaziar de competências nada nem ninguém, nem conselhos superiores nem o Provedor de Justiça. Estamos certos, face à proposta que apresentámos, de que isso não acontece, mas, se se entender que alguma questão merece ser clarificada para salvaguardar integralmente as competências dos órgãos já existentes, estamos inteiramente disponíveis para que essa clarificação seja feita. O nosso objectivo é contribuir, nunca confundir, já que pretendemos acrescentar algo à justiça e nunca diminuir seja o que for.

Consideramos que esta proposta pode trazer uma contribuição positiva para a resolução dos problemas da justiça em Portugal e é precisamente esse o nosso único propósito.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Laurentino Dias

Fiquei espantado com a argumentação que o Sr. Deputado expendeu para justificar a oposição do Partido Socialista a este projecto de lei. Não creio que a sua objecção seja por se pretender criar um observatório, uma vez que a criação de observatórios sobre outros assuntos também relevantes não é inédito, e, seguramente, o Sr. Deputado não quererá dizer que a justiça é um sector menos relevante para não justificar uma observação atenta…
O Sr. Deputado vem dizer que não vale a pena criar um observatório, porque há uma entidade, a qual tem sido chamada Observatório, que se incumbe de estudar problemas relativos à justiça.

Bom, é evidente que se trata de um departamento de sociologia, numa universidade, que tem feito um trabalho muito meritório, mas esse trabalho não se confunde com aquilo que é proposto para este Observatório.
O que se propõe é um órgão de reflexão, um órgão de participação, e não apenas um estudo meramente académico, digamos assim, por muita importância e relevância que os estudos académicos tenham.
Portanto, estamos a falar de aspectos diferentes que não se excluem de maneira alguma.
O Sr. Deputado vem dizer: junto da Assembleia da República vade retro! Não pode ser!
Nesse caso, tenho de lhe lembrar que existem vários órgãos independentes a funcionar junto da Assembleia da República e nunca ouvi o Partido Socialista rebelar-se contra isso ou dizer que é inconstitucional.
Quando o Sr. Deputado vem dizer que uma proposta destas é inconstitucional, está a declarar a inconstitucionalidade, por exemplo, do Conselho Nacional de Educação, que é um órgão independente que funciona junto desta Assembleia, cujo presidente é, aliás, eleito por esta Assembleia, e eu nunca ouvi alguém dizer que esse Conselho é dispensável, apesar de haver muitos trabalhos e muitos estudos em matéria educativa, e muito menos ouvi dizer que é inconstitucional por funcionar junto da Assembleia da República.
Portanto, sou forçado a concluir que o Sr. Deputado encontrou justificações inconsistentes para que o Partido Socialista se oponha a que a Assembleia da República possa contar com um órgão qualificado para contribuir para uma reflexão sobre o estado da justiça e sobre as soluções para resolver os problemas.

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados

Nesta fase final do debate, queria contribuir para desfazer alguns equívocos que poderão ter ficado no ar relativamente ao conteúdo da nossa proposta. Digo isto porque um dos argumentos dos Srs. Deputados que intervieram, quer pelo PS, quer pelo PSD, quer pelo CDS-PP, foi o de que não valia a pena criar este Observatório; a intenção era boa mas não valia a pena, porque já há outra entidade que está a fazer isto hoje e pode continuar a fazer. Simplesmente, os Srs. Deputados não se entenderam sobre que entidade seria esta! O Sr. Deputado Nuno Melo diz que não vale a pena fazer isto porque há a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; o Sr. Deputado António Montalvão Machado diz que esta entidade poderia causar confusão com os Conselhos Superiores; e o Sr. Deputado Laurentino Dias diz que já há o Observatório da Justiça da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Portanto, há aqui um ponto em que vale a pena que nos entendamos: afinal de contas, o que aqui está proposto é parecido com o quê? Isto é uma comissão parlamentar? Isto é um departamento de uma Faculdade de Economia? Ou isto é um Conselho Superior? Não é, evidentemente, nenhuma dessas coisas! É diferente de tudo isso e não exclui nem conflitua com nenhuma dessas entidades. Não pretende ser uma comissão parlamentar; não pretende ser um Conselho Superior; não pretende ser um departamento de uma faculdade.
Já havia aqui uma razão, dado que os Srs. Deputados reconhecem que há mérito na proposta, pelo que valeria a pena que, num debate na especialidade, os Srs. Deputados pudessem contribuir para explicitar o que é que entendem, por forma a conseguirmos perceber o que é que a Assembleia da República poderia ganhar com a existência de uma entidade como a que propomos. Nós entendemos que poderia ganhar muito.
Pensamos que o trabalho que é feito, designadamente pelo Observatório Permanente, assim chamado, da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, é um trabalho muito meritório, tem contribuído muito para um melhor diagnóstico da situação da justiça e do funcionamento dos tribunais em Portugal e pensamos que é muito importante que esse trabalho possa continuar e que todos nós possamos beneficiar dele. Mas o que nós propomos é uma estrutura completamente diferente: propomos que a Assembleia da República possa ter junto de si uma entidade que tenha a participação e a contribuição de quem conhece por dentro o funcionamento do sistema judiciário, e que essa entidade possa reunir a contribuição e conjugar a reflexão, não de cada uma dessas entidades de per si, mas recolher o conjunto dessa contribuição e aquilo que seja possível recolher da contribuição que cada um deles possa dar para encontrar as melhores soluções para os problemas da justiça. Pensamos que, com isso, não só ganhava o sistema judiciário, mas ganhava muito esta Assembleia, que tem uma competência decisiva, vasta e importantíssima em matéria legislativa e responsabilidades enormes quanto àquilo que, do ponto de vista legislativo, seja necessário e importante fazer para resolver os problemas do sistema judiciário, que todos reconhecemos serem muitos.
Entendemos que esta é uma proposta construtiva, é uma proposta séria e que, de facto, valia a pena que a Assembleia da República reflectisse sobre tudo o que poderia ganhar com a existência de uma entidade como esta, que não exclui nem conflitua com nenhuma outra - seria uma aquisição, não seria um elemento nem de conflito nem de duplicação de algo já existente.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Narana Coissoró

Creio que a questão não é da confusão que possa haver em relação à forma de trabalhar que é própria desta Assembleia e a de um Observatório como o que propomos - são lógicas de funcionamento completamente diferentes. Pensamos que a Assembleia da República, com as suas competências e a sua forma própria de funcionamento, poderia beneficiar com a actividade deste órgão, designadamente através da importância que poderia ter a elaboração do relatório anual que nós propomos que o Observatório faça e apresente à Assembleia da República para que esta possa, efectivamente, debater, tecer as considerações que entenda e aprofundar alguns temas. E isto não seria para retirar trabalho aos Deputados mas, sim, provavelmente, para melhorar a qualidade do trabalho que aqui fosse feito. Portanto, tratar-se-ia de uma contribuição que a Assembleia recolheria e que, evidentemente, também se poderia traduzir no melhoramento da qualidade do trabalho aqui realizado.
Assim sendo, pensamos que não há conflitualidade alguma e que todos ganharíamos com isso, assim como a Assembleia ganha com a apreciação dos relatórios que são apresentados sobre a situação do País em matéria de segurança interna, quando eles são convenientemente apresentados, ou com a apreciação do relatório que o Provedor de Justiça também apresenta a esta Assembleia - aliás, há o relatório geral e relatórios parcelares com muita importância. Por exemplo, o relatório sobre a situação nas prisões portuguesas apresentado pelo Provedor de Justiça foi de grande importância para que esta Assembleia pudesse aperceber-se da realidade concreta do sistema prisional. São contributos como estes que, em nossa opinião, este Observatório poderia muito qualificadamente dar, recolhendo contributos diversos.
É verdade que propomos um Observatório com uma lista relativamente vasta de entidades, embora haja a previsão no nosso projecto de lei de formas mais flexíveis de funcionamento, para que ele possa ser, de facto, operacional. Isto porque julgamos que um órgão destes só ganhava com um entrecruzar de opiniões e com a recolha do maior número possível de experiências. Foi, pois, com este objectivo e com este propósito que previmos uma participação tão alargada quanto possível, dentro da operacionalidade que é necessária para este Observatório.