Criação de julgados de paz
Conferência de Imprensa
do Grupo Parlamentar do PCP
19 de Janeiro de 2000
A crise da Justiça é um facto, já há longos anos assinalado.
A crise da Justiça vem-se avolumando perante a inexistência de medidas de fundo que verdadeiramente a combatam.
E ficou dramaticamente comprovada com a ameaça de prescrição de milhares de processos criminais, entre os quais se conta o processo do Aquaparque.
O Governo tornou pública a adopção de medidas de excepção, com as quais afirma poder combater a crise.
Mas o próprio comunicado do Conselho de Ministros, anunciando as novas medidas, vem provar que não basta tomar medidas de excepção para aumentar o número de Juizes que acudam,transitoriamente, aos milhares de processos em atraso.
A experiência tem demonstrado que o aumento do número de Juizes nunca é suficiente para enfrentar as pendências acumuladas e o constante aumento de processos apresentados nos Tribunais.
Outras medidas, como as que retirariam ao Ministério Público competências na área da defesa dos Direitos dos Trabalhadores, apresentam-se sem outra repercussão prática que não seja o enfraquecimento do estatuto do Ministério Público e o enfraquecimento dos interesses que este, como defensor da legalidade democrática, representa.
Algumas medidas anunciadas são mesmo inconstitucionais.
O PCP sempre pugnou por reformas de fundo, e não meramente pontuais e ineptas para responder à necessidade de uma justiça célere.
Assim, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta hoje na mesa da Assembleia da República dois projectos de lei, visando dar consagração legal ao inciso constitucional que tornou possível a criação de julgados de paz.
O artigo 209º nº 2 da Constituição da República, depois da última revisão constitucional, dispõe o seguinte:
Podem existir tribunais marítimos, tribunais arbitrais e julgados de paz.
Nos trabalhos preparatórios da actual Lei Orgânica dos tribunais judiciais, chegou a estar consagrada, embora muito sumariamente, a existência de Julgados de paz na orgânica judiciária.
Contudo, a versão final da Proposta de lei submetida à Assembleia da República, viria a suprimir tal disposição.
Os julgados de paz tiveram já consagração legal na lei nº 82/77 de 6 de Dezembro-Lei Orgânica dos tribunais judiciais, a qual introduziu na orgânica Judiciária, tribunais de 1ª Instancia denominados Julgados de paz. O Decreto-lei 539/79 de 31 de Dezembro, pretendeu concretizar o que constava da lei orgânica. Timidamente, dando aos julgados de paz uma competência muito restrita, crítica que formulámos ao diploma quando foi sujeito a ratificação pela mão do PSD.
Contudo, apesar das justas críticas, o PCP votou favoravelmente a ratificação por entender que era urgente introduzir na orgânica judiciária os julgados de paz que representavam a proximidade da justiça em relação aos cidadãos, e eram uma via para a administração popular da justiça.
Mas a ratificação do diploma foi recusada.
E desde essa altura, nunca mais houve vontade política para dar consagração a uma inovatória forma de administração da Justiça.
Hoje, para além das razões que em 1979 nos levaram a defender a criação dos julgados de paz, razões acrescidas há para que se criem, com urgência, os Julgados de paz, com magistrados não togados.
Efectivamente a máquina judiciária está prestes a atingir a situação de ruptura.
São necessárias medidas de fundo que ultrapassam a transitoriedade das medidas aprovadas em Conselho de Ministros.
O PCP considera que a criação e a instalação de julgados de paz, que administrem justiça com um processo desburocratizado, com as formalidades essenciais para garantir o acesso ao direito, é uma medida de fundo que pode contribuir para a transparência da Justiça, tão denegrida pela incompreensível (para o cidadão comum) morosidade da justiça, no cerne da prescrição dos processos criminais.
Assim, o PCP apresenta hoje um projecto de lei que altera a lei 3/99 de 13 de Janeiro - lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais - por forma a que a mesma consagre, na divisão judiciária do território, a freguesia- em regra a sede do julgado de paz- e para que na orgânica judiciária se prevejam os julgados de paz como tribunais de 1ª instância, para além dos Tribunais de 1ª instância de comarca.
A criação dos julgados de paz será obrigatória e não facultativa.
Concretizando a introdução na orgânica judiciária dos julgados de paz, o PCP apresenta um segundo projecto de lei, estabelecendo a competência, a organização, o funcionamento, e as normas processuais no julgado de paz.
Do 2º projecto de lei, resulta, em síntese o que a seguir se refere.
O Juiz de Paz. Quem é e onde está.
O Juiz de Paz é um magistrado não togado, eleito pela Assembleia Municipal, que administra a justiça nas causas da competência do Julgado de paz para o qual foi eleito. Administra a justiça, em princípio na área da freguesia, podendo, no entanto, ter competência sobre várias freguesias agregadas, que constituirão um único julgado.
A criação de um julgado para uma única freguesia depende do preenchimento de um índice, que constará de diploma regulamentar, relativo a um mínimo de residentes e ao volume processual do Tribunal de Comarca relativo às matérias da competência do julgado.
Mas o julgadode paz pode ser desdobrado em mais do que um tribunal, por bairros, sempre que o volume processual o justifique, independentemente do critério do número de residentes.
Quem pode ser Juiz de Paz e como
Só pode apresentar-se ao concurso curricular aberto pelo Conselho Superior da Magistratura quem reunir cumulativamente os seguintes requisitos:
a) Ter a cidadania portuguesa;
b) Ter mais de 25 anos;
c) Ter licenciatura em direito;
d) Estar no pleno gozo dos direitos civis e políticos;
e) Não ter sofrido condenação nem estar pronunciado por crime doloso;
f) Ser cidadão eleitor.
O Conselho Superior da Magistratura analisará as candidaturas para apresentação à Assembleia Municipal dos candidatos aptos.
Mas, se de entre os candidatos, e ponderando a nota de curso, alguns tiverem prática judiciária por um período de, no mínimo, 5 anos, ou ainda forem eleitores inscritos pela respectiva freguesia ou por alguma das freguesias agrupadas, serão esses os candidatos aptos para se submeterem á eleição pela Assembleia Municipal.
O cargo de Juiz de Paz é exercido pelo período de 3 anos, renovável pelo Conselho Superior da Magistratura.
O Estatuto dos Juizes de Paz constará da regulamentação do diploma.
O que faz o Juiz de Paz
O Juiz de Paz, nos casos em que a lei não o impede, procurará sempre a composição das partes visando a resolução pacífica do conflito.
O Juiz de Paz tem competência em matéria cível e em matéria penal.
Em matéria cível:
O cidadão que até agora propunha acções nos tribunais de Comarca, ou em juízos de pequena instância cível, através de um processo burocratizado, para
- Cumprimento de obrigações pecuniárias que não excedam a alçada do Tribunal de Comarca,
- Obter indemnizações por dano cujo montante não exceda a alçada do Tribunal de Comarca,
- Entrega de coisas móveis cujo valor não exceda a alçada do Tribunal de Comarca,
passará a apresentar a causa perante o Juiz de Paz, através de um processo onde as formalidades estão reduzidas ao mínimo.
As injunções retiraram-se da competência do Juiz de Paz.
Passam também a ser apresentadas ao Juiz de Paz, em processo desburocratizado, as causas relativas a “Direitos e deveres de condóminos sempre que a respectiva Assembleia não tenha deliberado sobre a obrigatoriedade de compromisso arbitra, para a resolução de litígios entre condóminos ou entre condóminos e o administrador “.
O cidadão pode ainda solicitar ao Juiz de Paz que proceda à conciliação em sede não contenciosa de litígio (desde que se trate de “ vizinhos”) seja qual for o valor em causa.
E é também ao Juiz de Paz que passam a ser submetidos litígios entre proprietários de prédios confinantes relativos a passagem forçada momentânea, escoamento natural de águas, obras defensivas das águas, comunhão de valas, regueiras e valados, sebes vivas; abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes; estilicídio, plantação de árvores e arbustos, paredes e muros divisórios.
E se o cidadão tiver que intimar qualquer órgão da freguesia ou do município para poder consultar documentos, ou para lhe serem passadas certidões, deixará de fazê-lo na longínqua justiça administrativa, para apresentar o pedido no Julgado de paz, perto de si.
Será ainda o Juiz de Paz a julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processo de contra-ordenação, salvo o disposto nos artigos 87.º, 89.º e 90.º da Lei de Organização dos Tribunais Judiciais relativamente ás contraordenações laborais.
Deixa-se ao Governo a possibilidade de manter qualquer das competências nos juízos de pequena instância cível, se isso se justificar, ficando o Julgadode paz com a competência restante.
O Julgadode paz não tem competência em matérias reservadas a Tribunal arbitral.
E também não tem competência para acções de execução, mesmo que se trate de execução das suas próprias decisões. A lei de regulamentação deverá determinar qual o Tribunal que tem competência para aquelas acções.
O Julgadode paz só é competente para os processos instaurados depois da sua instalação.
E o que faz o Juiz de Paz em matéria penal?
Sempre que esteja em causa a aplicação de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, não poderá o processo criminal ser submetido ao Juiz de Paz.
Mas se o crime, a julgar em processo comum, for punido com uma pena de multa, ou com uma pena de multa alternativa á pena de prisão até 3 anos, o julgamento será feito pelo Juiz de Paz, se o Ministério Público do tribunal de comarca entender que deve ser aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade.
Mas o Juiz de Paz julgará ainda as pessoas detidas em flagrante delito por crime a que corresponda processo sumário, também se o Ministério Público do Tribunal de Comarca entender que lhes deve ser aplicada não a pena de prisão mas a pena de multa alternativa.
E o Juiz de Paz, para além de julgar contravenções e transgressões residuais, fará ainda o julgamento dos arguidos a julgar em processo abreviado, quando ao crime corresponda pena de multa ou quando o Ministério Público entender que ao arguido deve ser aplicada pena ou medida de segurança não privativas da liberdade.
E também fará o julgamento dos arguidos, quando se trate de processo sumaríssimo, quando se verifiquem as condições referidas na parte final do parágrafo anterior.
À semelhança do que se estabeleceu em matéria cível, deixa-se ao Governo a possibilidade de manter algumas das competências nos juízos de pequena instância criminal, ficando o Julgadode paz com a restante competência.
E de igual modo se estabelece que o Julgadode paz só é competente para os processos instaurados depois da sua instalação.
O cidadão perante o Juiz de Paz
Nas causas cíveis:
Estabelece-se um processo caracterizado pela simplicidade dos actos processuais.
Nele não poderá haver incidentes da instância que não sejam incidentes relativos á sua competência. Se for levantado qualquer outro incidente, o processo será remetido ao Tribunal de Comarca onde prosseguirá os seus termos.
A causa poderá ser apresentada por escrito em formulário a criar por Portaria, ou verbalmente.
Não é obrigatória a constituição de mandatário judicial, a não ser na fase de recurso e já no tribunal de comarca.
Não é obrigatória a apresentação de contestação escrita, podendo ser apresentada contestação oral no início da audiência. A contestação escrita deverá ser apresentada até ao início da audiência.
Apenas se admite a citação pessoal através de via postal registada e a citação por éditos.
O não comparecimento do Réu e simultaneamente a não apresentação da contestação determinam a condenação no pedido.
A citação por éditos- suprimem-se os éditos através de publicação em periódicos- determina a obrigatoriedade de realização da audiência.
Não haverá lugar a prova pericial, e se tal prova for requerida os autos são imediatamente remetidos ao Tribunal de Comarca onde prosseguirão os seus termos.
As testemunhas serão apresentadas pelas partes na audiência, não havendo lugar à sua notificação.
Não há produção de prova por carta rogatória ou precatória.
A sentença será resumidamente ditada para a acta- apenas a parte decisória- imediatamente a seguir ao termo das alegações; só excepcionalmente, quando a dificuldade da matéria o justifique, pode ser relegada para momento posterior, em prazo que não exceda os 10 dias.
Da sentença não poderá haver reclamação, mas da mesma cabe sempre recurso para o tribunal de Comarca.
A conciliação em sede não contenciosa, de litígio de natureza cível ainda não pendente em Tribunal, pode ser requerida verbalmente ao Juiz de Paz por uma ou por ambas as partes, desde que tenham domicílio na área da competência territorial do Julgadode paz, valendo como título executivo o acordo obtido quando a causa seja da competência do Julgadode paz. No caso contrário, o acordo lavrado em acta será como documento particular, equivalendo, a intervenção do Juiz de Paz, à intervenção notarial.
Na competência administrativa do Juiz de Paz seguem-se as regras do processo administrativo.
O cidadão perante o Juiz de Paz
Em processo penal
Só o julgamento cujas formalidades são reduzidas ao mínimo, corre perante o Juiz de Paz.
A instrução, quando requerida corre perante o tribunal de Comarca. O pedido cível é apresentado antes de os autos serem remetidos ao Julgadode paz.
As testemunhas são indicadas antes dessa remessa.
Nas participações apresentadas perante o Ministério Público do tribunal de Comarca, não há lugar a realização do inquérito, mas apenas á indicação da prova.
Da sentença há recurso para o tribunal de Comarca.
No julgadode paz poderá haver um representante do Ministério Público a nomear pelo Procurador Geral da República, aplicando-se-lhe, na parte compatível o Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.
O cidadão e os encargos da Justiça de Paz
No julgado de paz não há lugar ao pagamento de preparos, sendo as custas pagas a final.
O cidadão pode requerer, tal como nos outros tribunais, o apoio judiciário.
Havendo recurso, as custas são pagas no Tribunal de Comarca.
É conhecida a experiência de vários países (Itália, Espanha, Inglaterra, Bélgica, por exemplo), nesta matéria. Nalguns é já uma longa experiência.
Peca por muito tardia a introdução na nossa orgânica judiciária.
A lentidão da Justiça, enredada em múltiplos problemas, coincidiu com a falta de arrojo nas soluções, que tem caracterizado o poder político.
É tempo de operar a mudança.