Jornadas Parlamentares do PCP
Intervenção de Jerónimo de Sousa,
Secretário-geral do PCP
Odivelas, 4 de Novembro de 2005
Camaradas:
Compreende-se hoje melhor o que queria dizer Manuel Pinho, actual Ministro da Economia, quando em Janeiro deste ano, antes das eleições, respondendo à falta de clareza do Programa do PS afirmava: “ Não está muito claro, porque não quisemos. Há coisas que são para fazer e não para falar”.
Declaração que decorridos oito meses de prática governativa do PS/Sócrates e perante a proposta de Orçamento de Estado para 2006 revela quanta enganosa premeditação se encobria atrás das promessas eleitorais de mais e melhores condições de vida para os trabalhadores e para o povo.
Apenas uma promessa, nestes oito meses de cruzada contra os trabalhadores e de outras camadas da população parece ser para cumprir: a de impedir a concretização de uma iniciativa que permitisse a imediata despenalização do aborto, mobilizando para tal a sua maioria absoluta na Assembleia da República, dando mais importância à forma do que ao conteúdo do seu compromisso eleitoral de promover a despenalização do aborto.
Não deixa de ser significativo que o PS se tenha permitido a uma manifestação da mais pura hipocrisia ao vir jurar fidelidade aos seus compromissos eleitorais para não rever a actual Lei do Aborto no preciso momento em que apresenta um Orçamento de Estado que é a antítese das suas solenes proclamações eleitorais.
Nem nesta matéria e perante o adiamento sucessivo de uma solução que resolva o flagelo do aborto clandestino, o PS e a sua maioria tem a coragem de romper com a direita.
Duas semanas após a apresentação da proposta de Orçamento de Estado para 2006, pensamos que tem toda a importância aprofundar e divulgar aquilo que são as principais medidas nela incluídas.
Daí a oportunidade da realização destas Jornadas Parlamentares centradas na discussão do primeiro orçamento apresentado pelo novo Governo do PS, momento decisivo para confirmar se, à vontade expressa pelos eleitores a 20 de Fevereiro, corresponde uma efectiva mudança de política, ou se, como o PCP tem vindo a afirmar e a vida a confirmar, estamos perante uma linha de continuidade com políticas anteriores que tanto prejudicaram o país e os portugueses.
Este orçamento foi envolvido na sua apresentação por uma enorme operação de propaganda para a qual contribuíam governantes, analistas económicos, comentadores, grandes empresários, no sentido de por um lado, garantir que este era o único caminho possível, e por outro, repetir até à exaustão a ideia avançada pelo Governo de que este era um orçamento transparente e sem truques, procurando assim distanciar-se dos orçamentos dos governos anteriores.
Com o passar dos dias algumas verdades foram vindo ao de cima e muito está ainda por dizer.
O orçamento que apregoa credibilidade assenta afinal a sua projecção de crescimento da economia numa previsão de crescimento das exportações de 5,8% que é pouco credível, sobretudo se tivermos em conta que este ano ela será de apenas 1,2% e que não se avançam razões para tal aumento.
A verdade é que não há qualquer elemento indicativo de recuperação da actividade económica e muito menos se vislumbra qualquer tendência de inversão no processo de contínuo agravamento da nossa balança comercial.
Como não se vêm neste orçamento razões que alimentem tal expectativa. Pelo contrário, não há nesta proposta de Orçamento qualquer resposta, quer com medidas, quer com investimento, à imperiosa necessidade de impulsionar o crescimento económico.
Desde que tomou posse que o governo tem vindo a anunciar, quase ao ritmo de um por mês, grandes planos e programas de investimento com o declarado objectivo de “estimular a economia”. Mas tais planos não passaram até agora de uma exposição de intenções com claros propósitos propagandísticos.
Enunciados em catadupa utilizando o velho truque de os projectar para toda e legislatura para impressionar, confirma-se que a sua apresentação era mais o resultado da necessidade política de fazer esquecer os aumentos de impostos e o ataque aos direitos dos trabalhadores do obter qualquer resultado prático ou de promover qualquer impacto na dinamização do investimento e do crescimento económico.
Do novo programa Prime aos PIN, os tais projectos de Potencial Interesse Nacional, do Programa de Investimentos em Infraestruturas Prioritárias (PIIN) ao Programa Nacional de Acção para o Crescimento e Emprego 2005/2008, até ao Plano Tecnológico mil vezes falado e sempre adiada a sua apresentação, não só não tiveram qualquer reflexo na dinamização da actividade económica no presente ano, como inexplicavelmente não têm, como seria de supor, qualquer expressão adicional ou significativa no investimento previsto no Orçamento para 2006.
Incompreensivelmente o que verificamos são abruptos cortes no investimento público (cerca de 25% a menos no PIDDAC) com expressão no território nas várias regiões do país, que só aqui no distrito de Lisboa significa um corte de 34,5% do investimento em relação a 2005, mas também ao nível da maioria dos programas sectoriais, onde não se salva sequer o programa de Modernização e Internacionalização da Economia.
Na realidade a “montanha de investimento pariu um rato”.
Acena-se com o crescimento do investimento para as actividades de Investigação
e Desenvolvimento (I&D), mais para alimentar e manter viva a chama de um
“choque tecnológico” que tarda a mover-se tão vazio
que ainda está, não só de acções concretas,
mas de orientações, medidas e calendarização. O
proclamado instrumento de excelência para o crescimento arrasta-se ao
mesmo ritmo do marasmo económico que vivemos.
E se assim é em relação a 2006 não é seguro que os programas e planos de investimento tenham no seu desenvolvimento para o horizonte da legislatura a concretização que se anuncia, dependentes que estão da difícil negociação para Portugal do novo Quadro Comunitário de Apoio 2007-2013. As propostas da Comissão Europeia, para uma Europa alargada, estão muito aquém das necessidades de promoção de uma efectiva “coesão económica e social” e significariam a ser aprovadas uma importante perda de fundos para Portugal.
O governo do PS negando apenas em palavras a sua obsessão pelo défice, não só corre o risco com a presente proposta de fazer regressar o país à recessão, como se enreda nesse círculo vicioso das medidas restritivas que, tal como no passado com o PSD, acabará por agravar o défice.
Talvez não seja por acaso que, mesmo antes de se aprovar a presente proposta de Orçamento, se esbocem já linhas de trabalho por parte do governo com o objectivo de assegurar um Plano C, para um próximo rectificativo, onde cabe o propósito já anunciado da possibilidade da revisão do modelo de financiamento da rede rodoviária, com a introdução de portagens nas SCUT, deixando cair mais um dos seus compromissos eleitorais.
Mas o Orçamento que se apregoa de credibilidade e transparência, afirmando não antecipar ou limitar receitas futuras do Estado, é afinal também o orçamento que prevê quadruplicar o montante das receitas de privatizações em 2006, sendo que até hoje o Governo não informou o país sobre as privatizações em concreto a fazer.
Mas já se está a ver que haverá mais privatizações no sector da energia – Galp, EDP, REN – dos transportes e apesar de o texto do orçamento não o dizer directamente, também da gestão da água.
E o que são estas privatizações se não o abdicar ou limitar instrumentos fundamentais de intervenção do Estado em importantes sectores da economia, no quadro de serviços e bens públicos essenciais à vida das populações, abdicando ao mesmo tempo de receitas de dividendos que estas empresas geram e que passarão a ser embolsados por privados. São afinal operações que prejudicam o interesse colectivo mas que da mesma forma lesam o Estado nos rendimentos que deixará de ter no futuro.
O orçamento que apregoa a transparência é o orçamento que, tendo sido escondido até depois das eleições autárquicas para que não se conhecessem as suas desastrosas opções, não cumpre a lei das finanças locais preferindo engordar o saco azul de distribuição arbitrária. Isto é, não cumpre as transferências com carácter objectivo e segundo os princípios da lei, para aumentar as verbas disponíveis para distribuição segundo critérios em que predominarão interesses políticos e partidários.
O orçamento que apregoa credibilidade, mantém a entrega dos novos hospitais ao sector privado, mas não explica porque é que no Hospital de Loures/Odivelas a verba prevista para entregar ao privado aumentou escandalosamente, provavelmente porque as propostas apresentadas pelos concorrentes superavam na maioria dos casos aquilo que está previsto gastar pelo orçamento.
Mas se há muitas coisas em que falta transparência, há coisas em que este orçamento é absolutamente transparente.
É um orçamento que vai continuara a aprofundar a divergência
com o crescimento médio da União Europeia;
É um orçamento de aumento do desemprego mesmo nas previsões
do governo, atirando para o baú do esquecimento os 150 mil postos de
trabalho prometidos.
É um orçamento que continua a apontar a restrição dos salários como suposta via para o reforço da nossa competitividade. Um orçamento que vai manter a linha de penalização de salários da administração pública, apontando o caminho aos patrões do sector privado, um orçamento da retirada de direitos e de acentuação da precariedade.
Aqueles que duvidavam dos nossos alertas, quando afirmávamos que o ataque aos trabalhadores da função pública era o primeiro patamar de um ataque mais global contra todos os trabalhadores dos outros sectores, têm neste orçamento e na intervenção conjugada da acção do governo e do grande patronato uma concludente prova.
Os apelos de Teixeira dos Santos à contenção salarial em uníssono com as grandes conferações patronais não configuram apenas um ataque aos rendimentos de todos os trabalhadores assalariados, mas a perspectiva de perpetuar um modelo de desenvolvimento assente nos baixos salários e a afirmação da competitividade da nossa economia à custa dos salários.
Digam o que disserem o que se prepara é uma segunda cruzada contra o trabalho assalariado e os fundamentos do nosso sistema de protecção dos seus direitos, mobilizando todos os recursos, dos ideológicos, à chantagem e à pressão com Fernando Ulrich e da Associação Portuguesa de Bancos na linha da frente a apontar o caminho do “ novo modelo social” que propõem para o futuro, com as suas propostas de despedimentos selvagens, de desmantelamento dos SAMS, de eliminação das garantias de progressão na carreira e do direito à remuneração corresponde.
Mas também com o recurso aos instrumentos do poder com o governo do PS a potenciar um novo assalto perspectivando a antecipação do período de transição de aplicação da nova fórmula de cálculo das pensões, a alteração das regras do subsídio de desemprego, o aumento dos impostos aos reformados com pensões superiores a 7 500 euros e com a proposta que mantém em carteira para aplicar no momento oportuno relativa ao aumento da idade da reforma para os trabalhadores do sector privado.
Uma persistente linha de ataque aos rendimentos do trabalho que se agrava com o forte aumento dos preços dos bens essenciais, dos transportes, dos impostos indirectos e dos juros que aprofundam ainda mais a injusta distribuição do rendimento nacional.
Mas este é também um orçamento que aponta para a contínua degradação da Administração Pública e para entrega de serviços públicos a privados com prejuízo e gastos acrescidos dos utentes.
Um orçamento que volta a não cumprir a Lei de Bases da Segurança Social nas transferências para o seu fundo de capitalização e retoma o discurso da insustentabilidade do sistema para cortar nos direitos e reduzir os ainda debilitados níveis de protecção social.
E se os cenários dramáticos da alegada falência da nossa segurança social estão de volta pela mão do governo de José Sócrates é preciso reafirmar que não só há soluções alternativas que garantam a sustentabilidade futura do sistema de segurança social, como tais soluções permitem assegurar um mais elevado patamar de protecção.
Ao contrário do que se propala não são as reformas que colocam em risco o sistema público de protecção social, mas o crescente desemprego, consequência das desastrosas políticas macroeconómicas submetidas ao pacto de estabilidade, os baixos salários e a sua subdeclaração, tal como a existência de uma elevada e florescente economia clandestina.
Mas também as políticas de subfinanciamento do sistema bem patente na dívida acumulada ao longo de décadas a que em meados deste ano ultrapassavam os 3 200 milhões de euros e à qual se associa a falta de cumprimento do Estado das suas obrigações de financiamento da Acção Social e dos regimes não contributivos.
Não se diga que o único caminho é o da degradação do sistema de protecção social. Assuma o PS, o seu governo e sua maioria, em coerência com a sua votação no passado de apoio à nossa proposta de Lei de diversificação das fontes de financiamento, nomeadamente a nova forma de contribuição das empresas para a segurança social com base no valor acrescentado bruto e estamos certos que o bem-estar de milhões de portugueses estará assegurado no futuro.
É por assim pensarmos que não deixaremos de confrontar a maioria com uma proposta no sentido de aumentar o abono de família para crianças e jovens, bem como a bonificação por deficiência, de forma a que esta importante prestação, tão atacada e degradada ao longo dos anos, se equipare ao nível de poder de compra a que correspondia em 1974, correspondendo a um aumento médio de 12% nas prestações referentes a crianças com menos de 1 ano e de 21,6% em relação às restantes.
Por fim, não podemos deixar de dizer que este é também um orçamento que aposta na manutenção dos benefícios fiscais à banca e à especulação bolsista.
Um orçamento em que se verifica que o Estado perde com as benesses do off-shore da Madeira 1200 milhões de euros. Um aumento para o dobro de 1999 para cá das perdas do Estado.
Montante que juntamente com os 2 mil milhões de euros que se estima o Estado perde também com as operações de branqueamento de capitais e em bem urdidos planos de fuga ao fisco, hoje alvo da investigação do nosso sistema judicial, quase reduziria a zero o valor do défice das contas públicas. O que se espera é que vá até ao fim a investigação em curso.
Num quadro em que tanto se exige aos trabalhadores e à generalidade da população e em que é o trabalho por conta de outrem a suportar a maioria da carga fiscal não podemos deixar também de apresentar uma proposta no sentido de tributar as mais valias que continuam a estar isentas de tributação. É inaceitável que muitos destes proveitos, na sua maioria de natureza especulativa, continuem a estar a salvo de qualquer taxação fiscal.
Nestas Jornadas Parlamentares escalpelizaremos estas e outras questões
da proposta de Orçamento de Estado e procuraremos denunciar as suas consequências
na vida dos portugueses e no desenvolvimento do país.
Mas nestas Jornadas Parlamentares apontaremos também os caminhos da nossa política alternativa, mostrando que é possível um orçamento diferente, que o país não tem de estar resignado ao cumprimento cego das orientações do défice, que pode ultrapassar a crise económica e social, que o desenvolvimento deve ser acompanhado por uma melhor distribuição da riqueza, por melhores salários e por reformas mais justas, que a defesa e melhoria da administração pública é essencial para servir melhor os cidadãos, aumentar a justiça social e potenciar o progresso geral de Portugal.