Abertura da campanha do Referendo "Pelo
Sim à despenalização da IVG"
Intervenção de Carlos Carvalhas
16 de Junho de 1998
I
No momento em que partimos para a curta mas exigente campanha do referendo à despenalização do aborto, queremos saudar sinceramente, por cima de todas as fronteiras partidárias e de todas as outras linhas divisórias, todos aqueles que, tal como nós, sentem o imperativo de consciência, de lutar com tenacidade pela vitória do "Sim" como forma incontornável e não mais adiável de responder a um problema cuja sobrevivência mancha e deslustra a nossa vida colectiva nas vésperas da passagem para o novo milénio.
Com especial apreço, queremos saudar nomeadamente todas as mulheres e homens, de maior ou menor notoriedade pública, de quadrantes muito diversos incluindo membros do PCP, que deram vida ao Movimento "Sim pela Tolerância" ou que hoje o integram por todo o país, certos de que o seu esforço, a sua generosidade e a sua acção unida representarão uma importantíssima contribuição para a vitória do "Sim".
Com este acto de hoje, inicia-se a anunciada intervenção do PCP na campanha deste referendo, com a sua voz própria, com as suas próprias posições e argumentos, num exercício inquestionável das suas responsabilidades na vida nacional e assumindo uma incontestável linha de coerência em relação a uma causa e a um combate que poucos se atreverão a negar tem no PCP há muito tempo o mais destacado e persistente protagonista político.
Dizendo isto, não vale a pena fingir que não sabemos que, em torno deste referendo, de vez em quando alguns, possuídos por um súbito, ilimitado e desproporcionado deslumbramento pelos movimentos de cidadãos, passaram a contestar ou a exprimir reservas à intervenção dos partidos.
Como o PCP é praticamente o único grande Partido que anuncia uma intervenção própria e empenhada pelo "Sim" neste referendo, já se está a ver a quem é que se dirige aquela contestação ou reservas.
Por uma vez, repetimos de novo a este propósito: os motivos de admiração, estranheza ou escândalo não podem estar no facto de o PCP intervir na campanha, antes só podem estar no facto de outros partidos abdicarem de assumirem de forma clara e transparente as suas responsabilidades perante os cidadãos.
Não é o PCP que tem de explicar porque é que faz campanha neste referendo. São os outros que têm de explicar porque não a fazem.
E não podemos deixar de anotar que as explicações até agora dadas não só não são satisfatórias como se revelam perfeitamente capciosas.
Na verdade, alguns outros partidos alegam que não intervêm oficialmente na campanha porque o que estaria em causa diria sobretudo respeito à "consciência individual", pelo que não se justificaria uma posição de partido.
Mas, meus senhores, será que o artigo do Código Penal que prescreve a pena de prisão até 3 anos para as mulheres que recorram ao aborto caiu do céu aos trambolhões ou será que lá está porque houve partidos que o votaram ou houve partidos que não o deixaram tirar? E, nesse caso e nessa altura, para estes partidos o assunto já não era de "consciência individual"?
E mais: então há um partido – o PS – que apresenta e vota a favor um projecto-lei de despenalização e há outros dois partidos – o PSD e o PP– que votam contra e, nessa altura, para uns e para outros onde é que estava a questão da "consciência individual"?
Na Assembleia da República, podem votar a favor ou contra uma lei mas depois, no referendo em que se vai decidir da sorte de que antes defenderam, já não têm posição.
Decididamente, o absurdo parece não ter limites.
Mas o pior é se é o calculismo que não tem limites, como seria o caso desses partidos terem optado por uma atitude e por formas indirectas ou directas de intervenção que lhes permitam, em caso de vitória, virem dizer que toda a gente sabe que lutaram por ela e, em caso de derrota, virem dizer que toda a gente sabe que tais partidos não tinham posição oficial.
Pela nossa parte, aqui estamos de corpo inteiro nesta campanha, prontos a compartilhar tudo quanto o resultado final trouxer mas com a esperança de podermos chegar ao fim da campanha com a consciência tranquila, não apenas porque marcámos presença ou porque cumprimos o nosso dever, mas sobretudo porque demos honestamente o melhor do nosso esforço nesta batalha de esclarecimento para um voto esclarecido, o voto pelo SIM.
II
Por muito que não queiramos – e não queremos – amalgamar todas as personalidades ou grupos que fazem a campanha pelo "Não", por muito que queiramos – e queremos – respeitar democraticamente as opiniões alheias, não é possível deixar de continuar a combater algumas mistificações e truques que unem todas as componentes da campanha do não.
E a primeira, a mais deliberada e pertinaz mistificação é o esforço que todos os dias desenvolvem para fazer crer que o referendo se destinaria a apurar quem é pelo aborto ou contra o aborto ou que o referendo se destinaria a que cada indivíduo exprimisse o seu juízo ou a sua opinião pessoal sobre o aborto.
E perante a cansativa persistência desta mistificação e deste truque, não há outro remédio se não repetirmos, até que nos doa a voz, que a verdade incontestável é que os portugueses neste referendo não vão decidir se o aborto em si mesmo é óptimo, péssimo ou assim-assim, o que vão decidir é se se mantém a pena de prisão até 3 anos para as mulheres que recorram ao aborto ou se se acaba com essa injusta e obsoleta penalização. O que vão decidir é se as mulheres devem continuar a ser empurradas para o aborto clandestino ou se podem passar a realizar uma interrupção da gravidez, até às 10 primeiras semanas, em condições de segurança e assistência médicas.
A segunda mistificação e o segundo truque, um e outro filhos de uma incomensurável desonestidade intelectual, é a tentativa persistente de fazer crer que é o Sim no referendo ou uma lei de despenalização que ficarão responsáveis pelo que chamam de "atentado" e "crime" contra o "direito à vida", que ficariam responsáveis pelo que chamam a "eliminação de um ser humano"!
E perante esta segunda mistificação, não há outro remédio se não repetir, até que a voz nos doa, não apenas que o aborto está aí na nossa sociedade desde os tempos mais remotos e não vai ser inventado por nenhuma lei, que uma lei de despenalização não obrigará ninguém a abortar, e sobretudo que o aborto clandestino nunca suscitou as indignações, as campanhas, as mobilizações e as ameaças que só desfilam e se sobressaltam quando se discutem projectos de despenalização.
E de tal forma assim é, e de tal forma todos sabemos que se não houvesse uma lei de despenalização aprovada e um referendo em curso, todos os inflamados campeões do "Não" estariam tranquilamente a tratar das suas vidas e a ocupar-se de outros assuntos, ainda que, por via do aborto clandestino e do que denominam "a eliminação de um ser humano", não lhes faltassem, em coerência, motivos para que interviessem com força e veemência.
A terceira mistificação que une as diversas componentes da campanha pelo não é a falta de coragem, por razões tácticas, em assumirem explicitamente as consequências do que dizem.
Como já vimos, quando não usam expressões mais fortes, falam sempre do aborto como um "crime" e como a "eliminação de um ser humano".
Mas, depois, por puro medo das consequências de agredirem e hostilizarem directamente todas as mulheres que em Portugal em algum momento das suas vidas recorreram ao aborto, nunca têm obviamente a coragem de lhes chamar criminosas, ou de reclamar que sejam presas ou condenadas e alguns até se desfazem em meigas palavras de compreensão e compaixão pelas mulheres que já abortaram.
Pode ser que consigam iludir alguém, mas a nós não nos enganam: a violência maior que cometem está na caracterização que fazem do aborto e é essa caracterização que transporta consigo uma injusta acusação contra as mulheres, sempre dentro de uma linha para acentuar a sua culpabilização, para aumentar a sua angústia e a sua incomodidade.
E digam eles as boas, santas e meigas palavras que disserem, a verdade é que todos aqueles que se comprazem na manipulação e no uso e abuso mórbido e chocante de imagens de fetos, esses é que cometem a acção indigna e o crime imperdoável de pretenderem criar ou reavivar nas mulheres que já abortaram um terrível sentimento de culpa retroactivo.
A essa violência, a essa agressão e a essa arma hedionda de culpabilização – que nenhuma estatística pode medir – nós chamamos, pura e simplesmente, desumanidade e falta de escrúpulos.
E é essa desumanidade que também precisa de ser derrotada e de levar uma expressiva lição no dia 28 de Junho para que, entre muitas outras coisas, acabe esta situação absurda que alguns desejam manter, de ser o Estado laico a punir e a condenar aquilo que até os mais zelosos guardiões de certos princípios declaram absolver e perdoar no confessionário.
Referindo-nos à campanha do "Não", é ainda necessário uma alusão directa ao principal corpo de argumentos que estão sendo usados pela corrente que é integrada pelos principais dirigentes do PSD e do CDS-PP.
Para lhes dizer que, por favor, não nos digam a nós que o é que é preciso é melhorar as condições de vida, exterminar a pobreza e ou apoiar os pobres, enfim combater certas causas sociais do aborto, porque esse é o nosso combate de todos os dias e de sempre, e raramente vimos ao nosso lado e sobretudo sem demagogia, os que agora se afirmam tão preocupados com esse ângulo do problema, antes quase sempre os vimos na defesa da conservação dos privilégios, da defesa dos poderosos e da mais gritante insensibilidade social.
E, por favor, também não nos digam a nós que a grande linha de enfrentamento do problema do aborto, enquanto fenómeno de massas, está na generalização do planeamento familiar, da educação sexual e das medidas de protecção da maternidade, porque foi graças à nossa iniciativa e sob o nosso impulso que em 1984 se aprovaram importantes medidas legislativas nessas áreas que, por sinal, em dez anos de governo, o PSD bem pouco se preocupou em concretizar plenamente, antes pactuando com as pressões conservadoras interessadas em sabotar tais avanços.
Em suma, não nos digam nada disto a nós, porque a nós não nos enganam pela simples razão de que, na boca de muitos dirigentes do PSD e do PP que fazem campanha pelo não, tudo isto são argumentos de recurso, de conveniência e de circunstância para proteger a sua atitude de fundo a favor da manutenção da penalização do aborto e, consequentemente, da sobrevivência do aborto clandestino com tudo o que tragicamente significa.
E, por fim, também não venham alguns dos mais conhecidos dirigentes ou deputados do PSD e do PP jogar a carta de lembrar que o aborto já está despenalizado em casos de violação, de mal-formação do feto, de perigo de vida para a mulher, exactamente porque não têm qualquer autoridade ou legitimidade para usar esse facto como argumento a favor das suas teses.
Em primeiro lugar, porque se agora não contestam nem põem em causa esse avanço legal, então é porque o "direito à vida" que tanto proclamam afinal pode ceder perante outros valores a proteger e afinal não é para eles próprios tão sagrados quanto o apregoam.
Em segundo lugar, e sobretudo, porque se em Portugal esse passo legislativo mínimo e elementar já foi dado, e foi realmente dado em 1984, foi graças aos votos do PCP e do PS – e nessa altura incluindo o voto favorável do actual Primeiro-Ministro – já que então tanto o PSD como o PP votaram contra aquilo que hoje é um dos seus principais argumentos ao serviço da sua campanha pelo não.
III
A doze dias de uma votação popular que terá sempre um grande significado e profundas consequências, não é naturalmente tempo de olhar para trás, porque todo o tempo é pouco para construir a vitória do sim que é necessária para combater o aborto clandestino, proteger a saúde e dignidade das mulheres, afirmar o valor de uma maternidade e paternidade conscientes e responsáveis.
Mas, exactamente para que não se perca mais tempo, não é possível deixar de fazer uma breve referência ao tempo, ao muito tempo que em Portugal já perdemos em matéria de despenalização do aborto.
Na verdade, se repararmos bem, a lei aprovada na generalidade em 4 de Fevereiro deste ano na Assembleia da República (e cuja sorte vai ser decidida neste referendo em consequência de uma conhecida pirueta do PS) aproxima-se muito das soluções legislativas apresentadas pelo PCP em 1984 e que então foram chumbadas, apesar da existência de uma folgada maioria de deputados do PCP e do PS.
Lembrando este facto incontroverso, impõe-se a conclusão de que o progresso legislativo que agora podemos estar em vias de alcançar já podia ter sido alcançado há 14 anos, com o que se teria poupado a sociedade portuguesa a 14 anos de persistência do aborto clandestino de grande dimensão, com o que se teria poupado a milhares e milhares de portuguesas a muita dor, muita indignidade e muitos sofrimentos.
Já chega de tempo perdido e, por isso, é agora o tempo de, com coragem e inteligência, virar esta página sombria da vida das mulheres portuguesas e da nossa sociedade.
Sabemos que, tal como nós, há muitos democratas que não perdoam a sabotagem que foi feita da aprovação final da lei e que sempre discordaram da realização deste referendo.
Mas é preciso dizer-lhes, que havendo referendo como há, agora o nosso dever é tudo fazermos para o vencer, sob pena de, pela nossa abstenção e desinteresse, favorecermos os opositores da lei de despenalização.
Sabemos que há constrangimentos, aliás compreensíveis, de muitos cidadãos em falarem deste assunto, mas a todos é necessário dizer que nem o referendo nem a nossa intervenção têm o propósito de invadir áreas legitimamente reservadas da vida dos cidadãos e que, no centro do referendo e da nossa campanha, o que está é sobretudo um grave problema de saúde pública, uma situação ofensiva da dignidade das mulheres, um problema social e humano que não devemos ignorar e que, independentemente do sexo e da idade, a todos diz respeito.
Sabemos que os resultados positivos de sondagens podem levar muitos cidadãos a pensar que a vitória do sim está automaticamente garantida e, por isso, há que lembrar aos que comodamente se deixarem tocar por excesso de confiança que não devem ser ignorados ou desvalorizados os meios de pressão de que a campanha do não dispõe e que só o trabalho e o esforço é que podem garantir a vitória do sim com uma activa e massiva mobilização para o voto de todos os que apoiam a despenalização do aborto.
Pela nossa parte, inserimos a nossa intervenção a favor desta grande e justa causa em toda a vasta e longa luta que há muito travamos pela afirmação dos direitos das mulheres na família, no trabalho e na sociedade, pela resposta decidida aos seus problemas e aspirações, pela construção de uma sociedade mais justa e liberta de opressões, humilhações e chantagens que são incompatíveis com a dignidade humana.
A doze dias do voto no referendo sobre a despenalização do aborto, o PCP e os comunistas portugueses testemunham perante o país o seu sólido empenho em lutar pela vitória do sim, pela vitória da tolerância sobre a hipocrisia, pela vitória da coragem de enfrentar o aborto clandestino sobre o cinismo e insensibilidade da sua conservação, pela vitória do humanismo, da liberdade e da responsabilidade sobre as coacções de um conservadorismo bolorento e cruel.
Este é o nosso compromisso de honra. Um compromisso para cumprir numa batalha para ganhar.